I
O dia amanhecia na Grécia. O sol encontrava, furtivo, uma janela entreaberta. Iluminando o interior do quarto com sua luz ainda fraca, deparou-se surpreso com dois gêmeos deitados na mesma cama, repousando. Esta seria deveras uma cena incomum entre gêmeos, mas não entre aqueles em especial.
Durante os últimos dez anos, eles dormiam juntos. Apenas dormir seria, a bem da verdade, um eufemismo. Eles faziam muito mais do que isso, mas sem alardes: atos proibidos numa sociedade como a atual. Excetuando esta peculiaridade, ambos eram irmãos como quaisquer outros.
Els tinham vinte e seis anos de idade, e moravam sozinhos. Os pais viram-nos crescer, passar pelos quinze, dezessete, vinte anos sem uma única namorada ou sequer flerte. Foi aos vinte e três anos que, de maneira abrupta, Kanon, o mais jovem deles, deciciu propor algo ao irmão.
- Saga... veja bem, já estamos adultos e cuidamos, juntos, de nosso próprio negócio. Temos de tomar um rumo, não acha?
- Rumo...? Mas Kanon, eu pensei que...
- Ora, Saga! Sei que você é corajoso e conseguirá superar o primeiro choque em sair da casa de nossos pais. Ademais... eu sempre estarei a seu lado.
- Não... não está se referindo a... mulheres, Kanon?
- Seu bobo, é claro que não! O único episódio que tive com uma mulher foi o referente a Juliana, e não quero viver algo semelhante outra vez. Você sabe, Saga, que sou muito feliz com você...
O mais jovem tomou o rosto de seu gêmeo e beijou-o de leve nos lábios.
- Então não foi um capricho da adolescência, uhn?
- O nosso amor? Claro que não. Como você mesmo disse naquele dia, Saga, há sete anos atrás... o que vivemos é muito mais do que a mera e simples paixão. Se Camões disse que amor é fogo que arde sem se ver, creio que o nosso jamais carecerá de combustível!
Os gêmeos riram, beijando-se mais uma vez, porém com um pouco mais de intensidade.
- E aí, Saga? Aceita vir morar comigo?
- Claro que aceito.
Assim foi a saída da casa dos pais, de maneira rápida e sem maiores "traumas". A mãe de ambos não fez muita objeção, afinal já eram homens, mas decidiu conversar com eles sobre um assunto o qual já era pertinente em sua mente há algum tempo.
- Meus filhos, é realmente muito bom que sejam irmãos bastante unidos. São uma bênção para mim; responsáveis, já formados no ensino superior, dirigentes da própria empresa e também das próprias vidas. Sinto-me uma mãe muito feliz. Mas... cá entre nós, meus filhos... eu... gostaria que saíssem desta casa para morar com uma moça cada um...
Pronto. Kanon já demonstrava sinais de impaciência, pois estava cansado de ser cobrado em relação a mulheres pelas pessoas desde a puberdade, e agora até sua mãe o fazia. Saga, o mais controlado dos dois, resolveu fazer um "meio-de-campo":
- Olha, mãe... não é melhor que eu e meu irmão experimentemos "viver no mundo" por nós mesmos, antes de morarmos com outra pessoa? Afinal de contas, nós dois nos conhecemos desde sempre, sabemos bem quais são as necessidades um do outro... saberemos guiar-nos sozinhos.
- Eu sei, Saga! É claro, mas... a questão a meu ver é que vocês são unidos demais, se querem saber.
Os gêmeos fitaram surpresos sua progenitora, receosos de que ela estivesse desconfiando da chamada "relação incestuosa" de ambos.
- Qual o problema com isso? - Kanon redargüiu - Já pensou se eu e Saga brigássemos feito cão e gato? Aí sim seria ruim, não?
- É que, Kanon querido, veja... você e seu irmão nunca tiveram uma... namorada. A união de vocês pode atrapalhar o surgimento de uma garota na vida de vocês.
- Quem disse que eu preciso de uma garota, mãe?!
- Kanon, olhe como fala com a nossa mãe...
- Mas é verdade! Eu preciso de uma namorada?! Pensando bem, acho que não!! Estou bem sendo "celibatário" mesmo, para quê?!
- Meu filho, sei que não tenho direito de interferir em sua vida pessoal, nem na de seu irmão. Já estão crescidos o suficiente. Mas... eu desejo netos! E netos são obtidos com... mulheres!
- Ora, mãe! O mundo já está tão abarrotado de gente, todos se acotovelando por um lugar ao sol...
- Kanon... - Saga tentava conter o ímpeto do mais novo.
- ...não acha que é um tanto quanto egoísta desejar um neto, sendo que a verdadeira vontade de seus filhos não é esta?!
- Kanon!!
- Deixa, Saga. Seu irmão está me dizendo a verdade. Se querem permanecer indeterminadamente solteiros, ambos... a decisão é de vocês, não minha. Bem! Vão em paz, meus filhos, e sejam prósperos.
Ainda temendo um pouco desagradar a mãe, ambos foram para seu próprio apartamento. O início foi um tanto complicado, como é todo começo. Ambos revezavam-se para cuidar da loja de roupas a qual eles haviam aberto em sociedade apenas aos vinte e dois anos, usando como entrada de capital parte da própria herança. Felizmente o negócio ia bem, apesar das eventuais dificuldades com funcionários, burocracias, etc.
Como não tinham a mínima condição de conciliar o serviço secular com o doméstico, chamaram uma moça indicada pela tradicional empregada da casa dos pais. Era uma pessoa de bastante confiança mas por outro lado eles temiam que, ao ela inevitavelmente ter de arrumar certos objetos pessoais deles, pudesse entrar em contato com alguma "pista" do relacionamento "mais-que-irmãos" de ambos.
- Vai ser complicado, Kanon. Ela vai ver que não trazemos mulher pra cá. Aos vinte e três anos os caras geralmente pegam tudo o que aparece em matéria de conquistas femininas. Além do mais, verá a cama de casal. E quando nós... você sabe... quando nós fizermos amor... deixaremos "vestígios" na cama.
- É só trocarmos os lençóis nós mesmos, logo em seguida. E lavarmos eles também. Além do mais, se ela descobrir, o que tem? Deixa ela! Já somos maiores de idade, não estamos forçando ninguém...
- Ai, Kanon! Você é tão inconseqüente! Tenha visão de longo alcance! Se nossos clientes, fiéis ou não, souberem como na verdade nos relacionamos, podem simplesmente abandonar a loja e ir comprar em outro lugar! Nada os obriga a continuar lá! É perigoso mexer com tabus, mano.
- Não esquente tanto a cabeça. Faremos de tudo para não "dar na vista", e tudo vai ocorrer bem. Você vai ver!
O mais velho dos gêmeos admirava o otimismo do companheiro. Sempre despreocupado e "cuca-fresca", mesmo perante os piores problemas! Era quase uma rocha, a bem da verdade.
E de fato, durante três anos conseguiram manter as aparências, até mesmo para Laila, a doméstica. Mulher de seus trinta anos, Laila tinha alguma experiencia em casas de família, e sempre optava pela política da "boa vizinhança": se um conflito pudesse ser resolvido pela não-violência, era isso que ela fazia. Como os irmãos possuíam um temperamento fácil, as coisas entre eles coriam bem.
Problema mesmo foi quando foram comprar a cama.
- E agora, Kanon? Dois irmãos encomendando uma cama de casal? No mínimo os funcionários vão estranhar.
- A gente não precisa dar maiores detalhes! Suponhamos que eu vá sozinho pra loja. Não vai ser necessário dizer que é pra nós dois. Eles que pensem que sou casado...
- Hum... não é má idéia. Podemos tentar.
E assim foi. Kanon apresentou-se na loja, junto com seu pedido. Um atendente mais curioso que os outros olhou furtivamente para a mão esquerda do gêmeo de Saga, e não encontrou aliança. Pensou em várias coisas, dentre elas que ele não era casado oficialmente, mas poderia co-habitar com alguma namorada.
No dia da entrega da cama, porém, ambos os gêmeos encontravam-se em casa... e o responsável pela mesma seria aquele funcionário observador. Reparou no irmão idêntico ao comprador, no único quarto de dormir da residência... e na ausência de uma cama de solteiro. Como quem não quer nada, perguntou:
- Hum... vocês dois moram sozinhos?
Percebendo com perspicácia o ardil do outro, Saga adiantou-se em responder:
- Não! Tem a esposa de Kanon também. Eu, ainda "solteirão", vim me pendurar nos dois!
- E... a sua cunhada não encontra-se em casa
- Ah... ela... ela está aqui sim! Laila, querida! Venha cá!
O primogênito puxou uma encabulada moça de seu serviço doméstico para fazer papel de consorte de Kanon.
- Ah... eu... - gaguejava ela, sem saber o que dizer.
- Não se envergonhe diante do entregador, minha linda! - disse Kanon, tomando-a pela cintura e beijando-lhe a face direita - Veja a nossa cama! Gostou dela?
- Eu... gostei, sim! É... é muito bonita, muito bem... escolhida...
A essa altura, o "futriqueiro" já estava com sua curiosidade quase saciada. Porém...
- Bem, senhor... é... como é mesmo o nome do senhor?
- Kanon.
- E o do seu irmão?
- Saga.
- Bem, senhor Kanon... no dia em que quiser uma cama de solteiro para seu irmão, nossa loja está à disposição!
- Ah, não! - redargüiu Saga, de modo displiscente - Não precisa! Eu adoro dormir no sofa!
- Seja como vocês desejarem.
Assim que o vendedor e seus ajudantes saíram, os irmãos suspiraram de alívio.
- Que cara chato! - exclamou Kanon, cheio de desgosto e com uma expressão de "saco cheio" no rosto - Daqui há pouco ia querer saber a cor da nossa cueca!
- Deixa, Kanon - respondeu Saga - Pelo menos ele já foi embora.
- Bem... senhores... - declarou Laila a eles - Não é por nada, mas... a maioria das pessoas realmente estranharia saber que dois irmãos... dormem na mesma cama.
- É um hábito antigo nosso, Laila. E eu não consigo ver nenhum mal nisso. Não é, Saga?
- ...não há mal. Nós somos... irmãos, qual o problema?
- Cada um com sua mania - finalizou distraidamente a doméstica, voltando em seguida para seus afazeres.
Mais tarde, quado o expediente da empregada já havia acabado, Kanon lamentou-se para o irmão:
- Que droga! Até a Laila fazendo comentários suspeitos sobre nós!
- É o preço que pagamos... - suspirou Saga, um tanto quanto desalentado - Não ligue, Kanon. Pense que será melhor morarmos sozinhos. Antes tínhamos a necessidade de nos escondermos da família toda. Agora é só da empregada... e neste exato momento não há ninguém em casa para nos flagrar...
O mais velho abraçou seu belo gêmeo carinhosamente, depositando um leve beijo em seus lábios. Kanon sorriu.
- Vem, Saga. Vamos estrear a nossa cama nova.
Os irmãos beijaram-se profunda e amorosamente, enlaçando seus corpos de maneira lenta e tépida. Em seguida. de mãos dadas e corações unidos, foram até o quarto e por conseguinte à cama de ambos.
- Hum... macia! - exclamou Kanon a contento - Acho que escolhi bem o colchão. E você, Saga o que achou?
- Se você gostou, como eu não gostaria?
Ambos riram e trocaram um beijo novamente. Eram homens feitos, mas o amor pleno que sentiam era tão forte quanto aos dezesseis anos.
- Te amo, Saga...
- Eu também te amo, irmãozinho.
Os gêmeos trocaram mais algumas carícias, decidindo enfim por despirem-se, para sentirem melhor a textura da pele um do outro. No entanto, apesar de continuarem se acarinhando, não houve contato sexual propriamente dito. Eles apenas permaneceram juntos, sentindo o calor e o carinho que um nutria pelo outro desde sempre. Afinal, aquela era a base do relacionamento de ambos... e o sexo era apenas mais uma forma de reafirmá-la.
Foi assim também três anos depois, àquele fatídico dia, quando o sol levantou-se e encontrou ambos na cama de casal, dormindo tranqüilamente.
To be continued...
OoOoOoOoOoOoOoOoO
Olá!
Enfim, outubro está sendo um mês de imensa inspiração
para mim! Já é a quinta fic só esse mês.
Outro dia eu estava pensando na fic a qual mais gostei de
fazer, a "Muito mais que paixão", e pensei em como
os gêmeos reagiriam a essa "paixão" dez anos
depois. Pra escrever foi um passo! Este capítulo
inicial foi um flashback. Quem leu deve ter percebido que fiz uma
regressão para explicar como eles foram morar sozinhos. A
seguir, a cena do "sol" continuará. Beijos a
todos e todas!
