Ele apoia precariamente o cigarro entre os dedos médio e anelar enquanto aplica o rímel em seus cílios alongados artificialmente. A cinza do cigarro cai em cima da paleta de sombras, já desfalcada de mais da metade de seu arsenal, e na ânsia de limpar a sujeira, acaba borrando as pálpebras.

- Merda! – solta ele, entre dentes.

Ele olha para a imagem refletida no espelho, e o que vê continua sendo um estranho, mesmo depois de todo esse tempo. Uma mecha de seu cabelo castanho está saindo da touca que ele usa para que os cabelos não atrapalhem na hora da maquiagem. Os cabelos são bonitos e sedosos. A única coisa que ele acha bonita em si, talvez com exceção dos olhos esmeralda. Todo o resto é simplesmente alheio a ele; o rosto de uma puta desconhecida e triste, que provavelmente levara uma vida difícil. Mesmo se esforçando ele não consegue conter o choro, e acaba arruinando de vez toda a maquiagem, quase finalizada.

A situação era difícil. Conchita, a dona daquela espelunca na qual ele atendia seus clientes, juntamente com o circo de horrores de prostitutas, travestis e transexuais – vistos sempre como sua concorrência, ainda que forçassem um clima de camaradagem - já avisara que, caso ele não desse um jeito de conseguir mais dinheiro, teria de sair do cubículo que ousava chamar de quarto, no andar de cima – um cômodo que mal cabia sua cama, um guarda-roupa pequeno e uma penteadeira parcialmente comida pelos cupins, que sustentava um espelho rachado em um canto.

Ele apaga o cigarro em uma xícara com um resto de café frio que havia bebido parcialmente horas atrás. Pega um algodão cheio de demaquilante e suspira.

- Vamos lá, Roxanne. Vamos começar tudo de novo – fala para a imagem refletida no espelho. – Agora vê se não erra, sua puta descuidada.

-.-:-.-

Ele fuma um cigarro de cravo, encostado na vitrine de uma loja de roupas. A loja está fechada, pois passa da meia-noite. A rua é iluminada fortemente em um tom alaranjado que sempre o lembrava de um cenário. Nada parecia real com aquela luz, e lá estava ele, representando sua peça mais uma vez. Era a sua noite de ir para as ruas. Uma vez por semana, alguém do La Manzana ¹ - um nome razoavelmente bom para uma espelunca com aquela que Conchita mantinha – tinha de conseguir clientes nas ruas. Era o tempo das vacas magras, e a clientela aparecia cada vez com menos frequência.

Algumas vozes soavam ao longe, mas se aproximavam aos poucos. Um vento gelado passou por ele, que se abraçou, tentando diminuir o frio. As roupas tinham de ser curtas, afinal de contas seu atrativo era o corpo. Ele possuía 1,95m de altura e um porte musculoso que contrastava fortemente com seus trajes femininos. Naquela noite usava uma meia arrastão e um vestido minúsculo de um tecido vagabundo qualquer, mostrando a cinta liga. Inacreditavelmente, conseguia se equilibrar em um salto 15. Os cabelos castanhos caíam como uma cascata pelas suas costas nuas.

Olhou preocupado para a esquina à sua direita, pois as vozes agora estavam perto, e ele pôde perceber que ao menos três homens bêbados se aproximavam de onde estava. Bêbados eram sinal de problema, e não de oportunidade de faturar, como muitos pensavam. Só quem vivia na madrugada conhecia as regras. A maioria dos clientes sempre estava sóbria, pois vinham dirigindo até o lugar conhecido como "Rua das Princesas", um nome engraçado para uma rua que durante o dia era qualhada de lojas de ferragens, autopeças e artigos para a casa, mas que à noite oferecia sexo por um preço razoável, isto é, para quem ousasse se aventurar por aquele lugar. À direita – de onde as vozes estavam vindo – ficava uma rua com um grande tráfego, a qualquer horário, porém alguns passos depois, na rua das princesas, o mundo silenciava, cheio de rumores secretos e promessas de aventuras perigosas.

Agora ele já podia vê-los. Três homens bêbados vindo diretamente em sua direção. Eles trajavam jaquetas de couro e Jeans escuros. Algo brilhava na ponta de seus coturnos, talvez fosse metal. Esse, definitivamente, não era um bom sinal.

Ele se encolhe contra a vitrine da loja, mas não passa despercebido.

- Ei gostosa! – grita um deles – Não tá com frio, não?

- Vem cá que eu te esquento, docinho– falou o outro, rindo.

- Se vocês morarem por aqui, a gente pode se aquecer rapidinho – diz ele, com um sorriso de lado. Não podia demonstrar que estava com medo. Isso seria um convite à violência gratuita, ele sabia.

O terceiro deles, o mais calado, olha para ele e cospe no chão.

- Tá querendo enganar quem, sua bichinha? Acha que alguém vai acreditar que você é mulher?

- Oh, não. Claro que não. Tem gente que gosta, se é que você me entende – diz ele, levando a mão até a virilha. – Ele não deveria provocar. Era grande, mas eles estavam em três. As palavras simplesmente saíram de sua boca, mas ele já se arrependia de tê-las dito.

Agora os três estavam bem próximos dele, a menos de três metros, quando o que havia falado primeiro tirou algo brilhante do bolso.

- O que vocês acham de aumentar o sorriso na cara desse veadinho?

- Ou talvez cortar algumas partes. Aposto que ele até iria gostar se a gente fizesse o servicinho pra ele. – Que tal? Quer virar mulherzinha de vez?

Ele tremia de frio e de medo. Sabia que um dia algo assim aconteceria, e ainda assim insistia em não andar armado. O cara com o canivete estava mais próximo, brandindo a arma e fazendo-a reluzir com aquela luz alaranjada. Uma buzina soa na rua paralela, sobressaltando os quatro, mas ele sabe que essa é a única chance e se agarra a ela. O cara com o canivete, que havia virado o rosto na direção do som é surpreendido com um chute na virilha. Se abaixa na mesma hora, se contorcendo de dor. O Canivete foi parar do outro lado da calçada – fora do alcance de qualquer um deles.

Ele acha que finalmente vai começar a ter um pouco de sorte, mas os outros homens não perdem tempo e avançam para ele. Um deles lhe acerta um soco na boca e quando ele se abaixa, por reflexo, o outro lhe desfere uma joelhada que deveria quebrar seu nariz, mas por sorte o cálculo foi impreciso e acerta sua testa, cortando seu supercílio. A dor vem como uma explosão, enchendo sua vista de pontos pretos. Ele consegue acertar um deles no estômago, mas não com força suficiente.

O homem que havia lhe ameaçado com o canivete ainda está fora de circulação, mas um outro conseguiu recuperar o canivete e sorri pra ele, cheio de malícia, avançando em sua direção.

- Agora você vai se dar mal, sua bichinha nojenta. Vou te deixar com um sorriso de orelha a orelha! – e falando isso avança na direção dele, desferindo golpes às cegas. No começo não conseguiu acertar nada, mas em determinado momento acerta uma das coxas do outro, abrindo um buraco na meia arrastão, que logo ficou vermelho.

Ele gosta disso. Na verdade está completamente excitado com a situação, o volume já se formando em sua calça. Ele pretende continuar a diversão com a sua putinha, mas de repente a rua é inundada pela luz alta de faróis e o barulho incessante de uma buzina. Isso o desorienta e ele corre. Seus outros dois companheiros já sumiram de vista.

-.-:-.-

Dean voltava de uma reunião aborrecida com um dos sócios de sua companhia. Estava extremamente cansado, mas, só de pensar em chegar em casa e encontrar sua mulher dormindo, ou com a costumeira dor de cabeça, foi tomado pelo desânimo e por um impulso repentino. Diminuiu a velocidade quando a avenida deu acesso à Rua das Princesas, à direita, e seguiu naquela direção, freando bruscamente com a cena que encontrava: Havia uma moça alta parada em frente a uma loja um homem mal encarado tentava desferir golpes nela com algo que parecia um canivete, enquanto outro gritava, incentivava e falava coisas obscenas; um terceiro se apoiava na lateral de um dos prédios, resfolegando.

Ele demorou um tempo pra entender a cena e juntar as peças. Ainda assim impediria que algo acontecesse se fosse possível. Ele nunca havia bancado o herói, e nem sabia como fazê-lo, mas resolveu seguir um impulso: acelerou o carro e chegou o mais próximo possível deles, buzinando e fazendo os pneus derraparem. Todos eles olharam assustados para o carro, imóveis por um momento, mas saíram correndo no momento seguinte, ameaçando voltar para "pegar essa bichinha e cortar fora seu brinquedinho assim que a encontrassem novamente".

Dean desce do carro com o coração acelerado pela mistura de medo e adrenalina e correu em direção à moça. Ao reparar melhor percebe que na verdade trata-se de um rapaz travestido de mulher, nada incomum naquela rua àquela hora da noite. Estende a mão para ajuda-lo a se levantar. Sua mão é agarrada por uma mão forte, que contrasta com as unhas curtas de cor cereja.

Ele repara no rapaz à sua frente, especialmente em seus olhos, que demonstram claramente medo e uma gratidão profunda, e de repente é tomado por uma onda de ódio pelos agressores daquela pobre criatura. Como alguém era capaz de machucar uma pessoa com aquele olhar suplicante? Que tipo de monstros eram essas pessoas?

- Esses filhos da puta te machucaram – diz ele entre dentes, reparando no corte feio na perna do rapaz. A boca estava cortada e sangrava; seu olho direito estava inchado devido ao corte no supercílio.

A visão de todos aqueles ferimentos no rapaz era horrível, quase como uma daquelas histórias que os jovens contam ao redor da fogueira em um acampamento. A diferença era que os monstros em questão eram reais e humanos. Se é que podia chamar de humano alguém capaz de algo assim.

Dean continuou, como o rapaz não dissesse nada:

- Você está coberto de sangue. Precisa ir ao hospital, vem que eu te levo.

Ajudou o rapaz a entrar no carro, não se importando a mínima com as manchas de sangue que imediatamente se agarraram ao banco do carona. Rasgou a fralda da camisa social azul que vestia e fez um torniquete na coxa do outro, que apesar de cerrar os punhos, não reclamou da dor.

Dean já dirigia rapidamente para longe daquele lugar quando o rapaz falou pela primeira vez:

- Você salvou a minha vida.

Apesar de não dizer as palavras claramente, Dean percebeu que a frase era carregada de gratidão. Uma gratidão que não poderia ser expressa através de um simples "obrigado". Percebeu isso e deu um sorriso leve, olhando rapidamente para o rapaz ao seu lado.

- Não precisa exagerar. Aposto que se fosse um só você faria picadinho dele. Você já reparou no seu tamanho?

O rapaz deu uma risada fraca, fazendo em seguida uma careta de dor e levando a mão ao abdômen.

- Eu estou um pouco tonto...

Os olhos de Dean foram parar rapidamente nos do rapaz, demonstrando preocupação e, talvez devido a todo aquele stress, talvez devido a um delírio repentino, o rapaz pensou já ter visto aquele par de olhos verdes, com seus cílios longos como os de uma garota, aquelas sardas... Mas foi um momento fugaz, pois no momento seguinte o mundo saiu de foco e finalmente escureceu.

Dean ficou apavorado e dirigiu rapidamente para o hospital mais próximo. Não poderia deixar esse rapaz morrer, não depois de tê-lo salvo. Havia quem dissesse que, ao salvar a vida de alguém, você se torna responsável pela pessoa por toda a vida. Podia parecer bobagem, mas ele acreditava nisso. Não deixaria esse rapaz morrer.

Acelerou ainda mais até que finalmente enxergou as luzes de um hospital. Estacionou seu Impala rapidamente e deu a volta no carro. Abriu a porta e viu que o rapaz estava branco como cera, enquanto o banco do carro estava ensopado de sangue. Aquela visão o encheu de uma força que até então ele desconhecia. Alçou o rapaz nos braços, uma tarefa que até então parecia praticamente impossível, e o carregou até entrar no hospital.

- Preciso de ajuda! Esse rapaz vai morrer se não for atendido agora mesmo! – berrou a plenos pulmões assim que adentrou o hospital.

As pessoas olhavam para a cena, apontavam e abriam a boca com expressões idiotas de surpresa e escárnio. Ele não ligava para nada disso, só precisava que o rapaz fosse atendido.

Dois enfermeiros vieram correndo até ele com uma maca e o rapaz foi conduzido por um corredor de portas duplas, sumindo de vista. Dean sentou em um dos bancos desconfortáveis, aguardando o desfecho daquela noite. O destino do rapaz agora estava nas mãos dos médicos, ele nada podia fazer além de esperar, e assim o fez.


¹ A Maçã. (N. do A.)


E aí, o que achou? Críticas construtivas são sempre bem-vindas!