SHIBA SORA
Sora não aguentava mais correr. Devia fazer pelo menos uma hora desde que deixou a casa dos shinigami Visored e acabou encontrando um insistente hollow pelo caminho. O certo era ter voltado pelo trajeto que fez para chegar ao Urahara Shop, mas o hollow fez questão de desviar o seu caminho. Agora, não sabia mais em que ponto da cidade de Karakura estava, e a cada brecha que encontrava enquanto fugia do cavalo com máscara, olhava para o alto para tentar se situar. Urahara Kisuke havia dito que para cada cidade havia um shinigami designado. Onde estava o responsável por Karakura?
Os Visored haviam dito que não raramente os hollow possuíam aparência de animais, um buraco no meio do peito e uma máscara de crânio. Este de agora era notadamente um cavalo, porém, andava sobre as duas patas traseiras, o que para Sora era bizarro, porque era como se os "braços" do animal não possuíssem real serventia, uma vez que possuía cascos no lugar de mãos ou garras; a não ser a função de esmagar suas vítimas com fortes golpes dados de cima para baixo ou de um lado para outro, como um martelo ou um pilão de moer. Eram "braços" que pendiam, pesados e rigidamente quase retos, de cada lado do corpo equino. Na cara, uma máscara de crânio no formato de uma cabeça de cavalo, e uma franja de crina. O buraco, no entanto, ficava no pescoço, não no peito como o descrito pelos Visored.
Como se recusava a andar sobre as quatro patas como todo cavalo normal, o hollow era lento e desengonçado, o que dava ao jovem Shiba oportunidades suficientes para recuperar um pouco do fôlego e aliviar o peso das costas. Ainda bem que ele possuía algum condicionamento físico, fruto de suas caminhadas, corridas e lutas corporais com Ganju, ou todo aquele peso já o teria feito desistir de correr há algum tempo. Acabou chegando a um beco sem saída, então resolveu virar-se para encarar o monstro:
— Certo, agora chega! – apontou um dedo acusador para o hollow-cavalo, para um efeito mais intimidador – Já perdeu a graça esse jogo de Daruma-san*!
O hollow virou um pouco o focinho alongado de lado, uma vez que aparentemente não podia enxergar bem o que estava à sua frente, e sua voz saiu, aguda e áspera:
— Garoto delicioso, a sua alma tem um cheiro ótimo!
— Me deixa em paz!
— Eu o esmagarei e o devorarei!
O monstro equino correu em sua direção, parando apenas para fazer um forte movimento horizontal com um dos "braços", desenhando uma meia-lua no ar ao destruir a cerca de uma casa logo ao lado. Alguns pedaços de madeira destruídos voaram na direção de Sora e ele instintivamente cruzou os pulsos em frente ao rosto para se proteger; então lembrou que não estava mais em um gigai e que a diferença entre a composição de seu corpo e a do mundo humano o permitia não ser afetado fisicamente por nada dali que fosse lançado na sua direção. Aproveitou a vantagem para tentar subir no muro logo atrás de si para fugir. Era acostumado a subir nas árvores das florestas que cercavam Rukongai, então possuía certa habilidade de escalação, mas a escalada foi sofrida. Ouviu – e sentiu através dos pequenos tremores no chão – a aproximação determinada do cavalo-mascarado-que-se-recusava-a-andar-nas-quatro-patas e se apressou em chegar ao topo do muro para saltar dali, acabando por cair com as mãos apoiadas no chão, devido ao impacto e o peso não suportado por seus joelhos. Não soube como aquilo foi possível, mas o hollow conseguiu escalar com igual habilidade o mesmo muro, logo se encontrando agachado no topo.
— Vou te devorar! – saltou sobre Sora e este precisou virar de barriga para cima para evitar ser violentamente pisado por patas enormes de cavalo-monstro.
— "Vou te devorar", "vou te devorar"; é só isso o que você sabe falar?!
O chão dos dois lados de seu corpo havia rachado e afundado um pouco com o peso e o impacto das patas traseiras do hollow. Àquela pergunta o monstro não respondeu, apesar de ter aberto a boca. Naquele momento Sora descobriu que o hollow possuía algo como uma segunda boca: esta era uma versão menor de sua própria boca principal, e por algum motivo bizarro se situava dentro da boca maior. Uma esfera de energia vermelha começou a se formar sobre a língua do cavalo, vinda de sua "boca interna". Não havia outra escolha. Em sua mente, o Shiba conjurou o mais rapidamente possível um encantamento. Esticou o braço direito à frente do corpo, mantendo a palma daquela mão aberta, e apoiou a mão esquerda no pulso do braço estendido:
— Hadou nº 31, Shakkahou!
Jurou ter visto os olhos demoníacos do cavalo se arregalarem antes da esfera vermelha de poder espiritual, disparada por sua mão, estourar no peito dele e repeli-lo. O hollow bateu com as costas na parede do muro destruindo-o parcialmente, e parecia incrédulo.
— Não me obrigue a repetir isto! – explicou se levantando e deixando sua bagagem no chão e posicionando os braços do mesmo jeito que os posicionou para lançar o kidou, ameaçando fazê-lo novamente – Você é bem chato, cara! Não se aproxime de mim: tem mais de onde veio esse!
— Impossível...! Como fez isso? – o monstro se levantava de maneira desengonçada.
— Segredo. Mas agora você já sabe que é melhor não se meter comigo. Para trás!
— Maldito...!
Vendo o cavalo mascarado correr novamente na sua direção, intencionando devorá-lo, Sora rapidamente conjurou outro encantamento em sua mente: desenhou no ar, com ambas as mãos, um triângulo amarelo-brilhante de cabeça para baixo:
— Bakudou nº 30, Shitotsu Sansen!
Três feixes de luz amarela foram lançados, cada um de uma ponta do triângulo, e o cavalo-monstro foi jogado para trás novamente. Dois feixes pregaram os ombros do hollow o prendendo efetivamente no muro parcialmente destruído atrás de si, e o terceiro o pregou na altura da barriga.
— Já disse para desistir de mim! – alertou.
Pensou nas outras almas que o hollow poderia perseguir e devorar se simplesmente o deixasse ali e fugisse, então decidiu que iria tentar dar um jeito naquele cavalo bípede feio e teimoso, mas ao se virar, deu de cara com um shinigami de expressão cômica e cabelo black power.
— Um momentinho, rapaz! – o homem ergueu um dedo indicador para Sora, e então desembainhou a espada que trazia consigo – Primeiramente, obrigado por deter este hollow.
O viu avançar no monstro com a espada brandida, e em uma questão de segundos o cavalo teve sua máscara cortada ao meio, o que provavelmente foi a razão de ele ter se desintegrado em seguida. Assoviou.
— Ele foi desintegrado!
— Não é nenhum espetáculo – achou que o cara de cabelo engraçado faria uma expressão séria e lhe daria um sermão, mas ele simplesmente assumiu uma postura cômica de quem se achava o máximo – É uma façanha que somente nós, os deuses da morte, temos o poder necessário para realizar!
— Que bom, mas eu já sei de quase tudo sobre vocês – ergueu um polegar para o shinigami e o viu fazer uma expressão de intriga.
— Então, você sabe sobre nós? – a mudança de expressão para uma ainda mais dramática deixou Sora desconfortável.
— Mas não sou seu inimigo, ok? – procurou gesticular com ambas as mãos para elucidar o que dizia, então ergueu um dedo indicador: – A propósito... Vocês são os responsáveis por guiar as almas à Soul Society, certo? Bem, eu sou um espírito, e estou perdido. Se puder me ajudar, eu agradeceria muito.
— Um espírito perdido que sabe da Soul Society e sobre os shinigami, e ainda é capaz de usar kidou? Preciso fazer um relatório sobre isso para o Capitão...
— Eu deveria me preocupar? – os olhos verdes de Sora focalizaram o bloquinho retirado de dentro das vestes do deus da morte para as anotações do tal relatório.
— Acredito que não. Você foi algum tipo de médium quando vivo?
— "Quando vivo"? Não sou um ser morto! Pareço morto para você?
Os olhos do shinigami black power se arregalaram como quem estava ainda mais chocado com o que via:
— Quem é você, garoto?
— Shiba Sora. Muito prazer! – respondeu forjando alegria, e estendeu uma mão para cumprimentar: – E você, como se chama?
— Kurumadani Zennosuke – retribuiu o aperto de mão, mas sua expressão era de intriga – 'Tá falando sério?
— Seríssimo!
— Filho de...?
— Shiba Kuukaku!
— E como nunca ouvi falar de você?
— Como vou saber? – seu tom era de naturalidade, mas ele estava começando a ficar realmente chateado com o assunto, visto que não começara ali.
— Até o que sei, Shiba Kuukaku nunca foi vista com alguém... – ele mordeu o lábio inferior – Aliás, ninguém sequer a vê, quem dirá acompanhada.
— Ninguém de Seireitei – corrigiu.
— Justo.
— Gostei de você – sorriu, agora genuinamente.
— Por quê? – o rosto de Kurumadani rapidamente assumiu uma tonalidade avermelhada.
— Reagiu diferente dos outros. Menos chocado. Nem teve receio de falar sobre o assunto.
Zennosuke pigarreou, então balançou a cabeça para disfarçar o rosto corado:
— Sabe como é, eu sou um cara com muita experiência nessa vida de shinigami. Nada mais me impressiona!
Sora uniu as mãos atrás da cabeça num gesto descontraído e perguntou:
— Então, Zennosuke, você vai me ajudar a voltar para casa?
Fora o estranhamento de ter que responder a perguntas para preenchimento de uma ficha técnica a respeito de sua própria pessoa, Sora não achou desagradável a interação com o shinigami responsável pelo monitoramento de Karakura. Zennosuke era um cara legal. Cômico, do tipo que claramente gostava de contar vantagem e de aparecer, mas que no fundo estava sempre disposto a ajudar e dar o seu melhor. As perguntas que respondeu eram do tipo triviais, como por exemplo, seu nome, idade, onde nasceu, como e com quem aprendeu kidou, quem era sua família. Não viu nada demais em responder a tais perguntas simples, mas muitas vezes omitiu detalhes em suas respostas, ou modificou eventos ou informações conforme a conveniência. Sabia que algumas coisas Kuukaku não iria gostar de saber que ele contou a um shinigami. Por exemplo, sobre a relação que havia entre a Família Shiba e a Guarda Distrital, e o real motivo pelo qual ele veio ao mundo humano. Por falar nisso, será que a Seireitei já sabia da existência da Guarda?
— Eu vou te ajudar a retornar à Soul Society, mas vai ter que ser do jeito difícil, já que você não é alguém que vivia neste mundo e morreu, além de não ser um shinigami.
— Você fez um relatório sobre mim. Pensei que alguém viria me escoltar – ergueu uma sobrancelha.
— Não creio. O Capitão é um sujeito bem tranquilo. Não acho que o verá como uma ameaça.
O tal Capitão parecia ser um cara bem gente boa; será?
— Esse Capitão... Quem é ele?
— Capitão da 13ª Divisão de Proteção da Soul Society, Ukitake Juushirou! – o shinigami falou com orgulho, como se a sua divisão fosse a melhor ou a mais famosa de todas.
Ukitake. O homem que foi o superior do irmão mais velho de Kuukaku, Shiba Kaien, quem Sora não chegou a ter a oportunidade de conhecer. Não ouviu coisas ruins, de fato, a respeito daquele Capitão em específico, mas sabia que ele de alguma forma incomodava a sua família. Que tipo de superior apenas envia uma única subordinada sem patente para entregar o corpo do seu segundo em comando após a tragédia ocorrida com Kaien? Aparentemente, Kuukaku e Ganju tinham razão em sentir raiva.
— O cara que foi o capitão do meu tio Kaien.
— Shiba Kaien – Zennosuke levou uma mão ao peito – Um dos melhores tenentes que essa divisão já teve. Grande cara! Todos o admiravam, garoto.
— É, eu sei disso.
O shinigami mordeu o lábio inferior.
— Tenho certeza de que sua morte não foi em vão – disse após um minuto de silêncio estranho entre os dois.
Sora não teceu mais comentários, mas no fundo acreditava naquelas palavras, então assentiu.
— Bom! – disse com energia a fim de dissipar o clima estranho – Você tem que verificar se não aparecem mais hollow e eu preciso ir para casa.
Sorriu. Tal gesto surtiu o efeito esperado no shinigami black power.
— Vou abrir um portal para você – acenou para o garoto o seguir – Trate de atravessar o Dangai o mais rápido possível.
Sora apanhou suas coisas, recolocou-as nas costas, e logo acompanhava o shinigami de perto.
— Devido ao Kototsu. A minha mãe me falou dele, mas não o vi em nenhum momento na primeira vez que atravessei o Dangai.
— Ele não aparece sempre. Deve saber que de tempos em tempos ele reaparece para fazer a "limpeza" – virou para Sora quando os dois estavam em um ponto afastado da cidade, um pequeno templo.
— Ele absorve ou esmaga qualquer coisa que estiver no caminho, algo assim.
— Sim, e espero que tenha levado isso a sério quando a sua mãe lhe disse, porque se estiver achando que é algum tipo de história para assustar crianças, no momento em que o vir será tarde demais para pensar em começar a correr! Assim que o portal se abrir, corra. Corra como se não houvesse amanhã! E não olhe para trás. Você vai cair em algum ponto da Soul Society, mas não sei precisar onde.
A verdade era que Sora realmente achou que era algum tipo de história para deixa-lo amedrontado e assim evitar que ele se desse o luxo de ficar enrolando no lugar de se apressar para fazer o que tinha que fazer.
— Vocês não atravessam o Dangai para ir e voltar da Soul Society?
— Nós sim, mas possuímos uma equipe de monitoramento para nos garantir uma passagem mais rápida e segura. As almas humanas são enviadas direto daqui com a zanpakutou. Mas você é um intruso – piscou um olho ao que apontava um dedo para Sora.
— Quando nos veremos de novo? – retribuiu a piscada exibindo todos os dentes em um sorriso amistoso.
— Hein?
— Ué, para comermos alguma coisa, conversar, qualquer coisa – viu o shinigami corar pela segunda vez, então riu: – Cara, alguma vez alguém já foi legal com você?
— Não, digo! – ele balançou a cabeça – É claro que já fui tratado com muito respeito assim antes! Mas... Não esperava isso de um Shiba.
— Vou falar bem de você para a minha mãe, eu prometo – ergueu dois dedos em um "v" de vitória.
Uma vez dentro do Dangai, Sora se viu novamente naquela passagem escura e meio asquerosa que era o Precipício do Mundo. As paredes pareciam feitas de carne: eram um pouco viscosas e um pouco macias, e possuíam ramificações que se estendiam até o chão, mas eram escuras, num tom roxeado. Seguindo as instruções do shinigami Kurumadani Zennosuke, foi correndo na direção do outro extremo da passagem, que daria em algum lugar na Soul Society. Desta vez, no entanto, ele pôde ouvir uma espécie de ronco vindo das profundezas do túnel. Tal ronco rápida e gradualmente ficava mais alto, então ele ousou olhar para trás enquanto corria. O Kototsu se aproximava a uma velocidade incrível e perigosa. Sora, que começou a corrida quilômetros à frente dele, rapidamente ia sendo alcançado.
Então aquele era o tal Kototsu, o lixeiro do Precipício do Mundo. Era tão grande e rápido que o garoto entendeu imediatamente o perigo de não se apressar em caso de o ver. O pânico o fazia esquecer de todo o peso que carregava nas costas, ainda que não conseguisse correr tão rápido quanto se estivesse livre de qualquer tipo de bagagem. Não podia ser alcançado por aquela coisa de jeito nenhum, mas suas pernas estavam pesadíssimas, resultado do extremo esforço físico. Kidou! Tinha que haver algum para ajuda-lo naquele momento. Vasculhou freneticamente em sua biblioteca mental a lista de kidou que havia aprendido com Kuukaku em busca de algo que pudesse salvá-lo do Kototsu. Aquela coisa podia ser destruída ou impedida de avançar? Sora não tinha como ter certeza. Se ele tentasse atacar o Kototsu e seu ataque falhasse ou não fosse tão efetivo, a parada para a conjuração do kidou poderia custar-lhe a vida. Olhou para frente e viu que a saída estava próxima, mas o lixeiro do Dangai certamente o alcançaria antes que ele conseguisse chegar lá. Em um momento de desespero, ele teve uma ideia e resolveu arriscar. Após uma conjuração mental rápida, virou-se para o Kototsu e gritou:
— Bakudou nº 37, Tsuriboushi! – fez surgir uma grande almofada em forma de estrela, feita de reiatsu, que se formou entre Sora e o Kototsu, presa por cordas de reiatsu que se prendiam às paredes do Dangai.
A real utilidade daquele kidou era amortecer quedas ou segurar objetos ou pessoas que estivessem caindo, mas ele não estava caindo. O jovem Shiba pensou na possibilidade de a estrela macia poder servir para manter o Kototsu longe dele, para dar tempo de ele fugir ou utilizar um segundo kidou, ou para servir como complemento para o efeito de um segundo kidou. Assim que o grande corpo espiritual encostou na almofada de reiatsu e começou a estica-la com violência fazendo as cordas que a seguravam se romperem, o garoto imediatamente viu que ela não iria segurá-lo ou retardá-lo. Aparentemente serviria apenas para evitar que o lixeiro monstruoso chegasse a encostar diretamente em sua pele durante o empurrão, façanha que, aliás, só duraria alguns segundos. Com as duas mãos estendidas para o Kototsu e já sentindo a almofada de cinco pontas encostando primeiramente em suas mãos e rapidamente em toda a parte da frente de seu corpo, o empurrando para trás com a força do Kototsu, usou um kidou normalmente conjurado com apenas uma das mãos:
— Bakudou nº 8, Seki!
Como Sora havia pensado, o bakudou de repulsão não era forte o suficiente para deter e muito menos repelir o Kototsu, mas a lógica que usou ao invoca-lo pareceu fazer sentido, pois estava funcionando: uma vez que o alvo não poderia ser repelido, por ser muito maior e mais pesado ou mais forte que ele, o feitiço se voltaria contra o feiticeiro, então quem seria repelido seria o próprio conjurador do kidou, pela força do kidou somada à força do alvo que ele não era capaz de repelir. A almofada de reiatsu estourou e Sora sentiu uma força muito grande o lançar para longe do Kototsu, jogando-o com violência para o fim do túnel. Como o impacto o atingiu um pouco de mau jeito nas duas mãos, Sora sentia seus pulsos imediatamente doerem. Mas, aquela foi uma contusão que valeu a pena: ele praticamente voou rumo à saída do Dangai, e logo se via voando pelo céu alaranjado de um final de tarde em Rukongai. Uma vez que não havia mais nenhuma força para impulsioná-lo ou mantê-lo no ar, começou a cair. Lembrou-se da pequena asa mecânica de morcego que Kuukaku o deu, uma invenção de Urahara, e a puxou estendendo-a para ativá-la. A asa cresceu e serviu de asa-delta para ele pousar em segurança, só que havia peso extra dessa vez, então não houve um pouso 100% seguro. A sorte de Sora foi ter caído sobre grama macia. Lá ficou deitado, respirando fundo por longos minutos. Estava esgotado.
Seu corpo precisou de alguns minutos de descanso para ter força suficiente para ficar sentado. Verificou sua grande mochila improvisada para ter certeza de que nada caiu durante a "luta" contra o Kototsu. Ainda bem: nada havia sido perdido. Mas ele estava exausto demais para ficar de pé. Deixou-se cair de costas e dormiu ali mesmo, na grama.
Acordou de sobressalto já se sentindo aflito por talvez ter dormido demais. Quanto tempo passou dormindo? Alguns minutos? Horas? Seu estômago roncava e ele já imaginava Kuukaku furiosa por ele ter chegado após as nove da noite. O céu estava escuro, mas não havia como saber se já era ou não madrugada. Pensou em ir passar a noite em qualquer outro lugar para chegar na residência de sua família bem cedo no dia seguinte, só para não dar à mãe o desgosto de vê-lo chegando tarde da noite, mas pensou no quanto ela deveria estar preocupada porque, de fato, ele passou muito mais tempo no mundo humano do que o esperado. Culpa do Cara de Texugo, o tal Urahara Kisuke, mas ela não aceitaria isso como desculpa. Uma vez decidido o que faria, suspirou e se levantou determinado a ir para casa mesmo. Sentiu suas pernas tremerem em um sinal de que ainda não estava totalmente revigorado, mas reuniu toda a sua coragem e recolocou as encomendas de Kuukaku em suas costas para começar a caminhada.
Havia caído em alguma floresta dos arredores de Rukongai, mas não tinha como saber em qual das quatro regiões estava, então buscou informações no Distrito 80. Por sorte ele havia caído exatamente na floresta do Rukongai Norte: dava para notar imediatamente, ao chegar naquele 80º Distrito, que ele, apesar de pobre como os das regiões Sul, Leste e Oeste, possuía alguma organização e aparente prosperidade. Sentiu-se instantaneamente aliviado por saber que andaria menos e feliz porque, aparentemente, as atividades da Guarda Distrital afinal surtiam efeito em um bairro tão miserável. Não se demorou muito ali porque não queria deixar Kuukaku esperando por mais tempo, e no final acabou chegando em casa antes do tio Ganju, o que para Sora foi uma surpresa. Significava que havia conseguido chegar antes das nove da noite.
— Sora-sama! – um dos dois criados gêmeos, Shiroganehiko, o saudou assim que o reconheceu – Graças aos céus, o senhor está de volta!
Sorriu para o homem com alegria, apesar da fome e do cansaço nas pernas:
— Ei, eu estou bem!
— Todos sentimos muito a sua falta! Kuukaku-sama ficará satisfeita!
Os irmãos Shiroganehiko e Koganehiko haviam contribuído para a educação de Sora juntamente com Ganju e, claro, Kuukaku. Da mesma forma que eles haviam cuidado da matriarca da família desde muito nova, eles atuaram como professores particulares de Sora. Foi com a ajuda deles que condicionou o corpo para aprender kidou. Um espírito não-shinigami jamais poderia executar magias se não estivesse fisicamente preparado para isso. Era necessário um bom controle da reiatsu.
— Eu queria comer antes... – resmungou quando o som de seu estômago ecoou.
— Não mesmo, nada de comer antes de ver Kuukaku-sama! – o homem o direcionou rumo ao aposento principal da líder da Família.
— Mas estou exausto! Acho que não vou nem conseguir dizer "oi" 'pra ela!
— Shiiiu, vou anunciar a sua chegada!
O viu se ajoelhar mais à frente no corredor, diante da porta de correr que dava para a sala de estar de Kuukaku, e o ouviu falar em alta e boa voz:
— Kuukaku-sama!
— Fale.
— Sora-sama acaba de voltar!
— Deixe-o entrar.
Sora suspirou e entrou quando Koganehiko arrastou a porta de correr deixando-a aberta para que ele passasse. Pegou novamente sua pesada bagagem e fez questão de pô-la no chão diante de Kuukaku de modo a indicar o quanto estava pesada. O som das portas de correr sendo abertas novamente pôde ser escutado e o garoto viu seu tio correr na sua direção:
— SORA, DESGRAÇADO!
— GANJU...! – abriu os braços para um abraço, mas o mais velho se jogou sobre ele e os dois caíram juntos, Ganju por cima de um Sora ofegante.
— "Ganju", nada!
— "Ganju"! –nunca teve o hábito de chama-lo "tio", mas pelo nome mesmo, uma forma afetuosa e única de tratar: – O mundo dos humanos é muuuito legal!
— Quem se importa? Deixou a onee-sama preocupada!
— Você é quem parece morto de preocupação!
— Que merda você 'tá dizendo, fedelho?!
Os dois ficaram rolando no chão, de um lado a outro, em uma pequena luta corporal, e Sora notou que Kuukaku estava calada e estática, os observando com uma expressão pensativa. Ela sempre ficava daquele jeito quando estava se recuperando de algum susto muito grande, normalmente relativo ao filho ou ao irmão mais novo. Perdeu a luta desta vez, claramente sem forças para disputar o mano-a-mano com Ganju.
— Ah, qual é! – reclamou o mais velho – Você 'tá molenga hoje! Foi tão ruim assim a viagem?
— Vocês não vão acreditar! – pôs-se sentado com uma expressão enérgica e determinada – Nem sei por onde começar!
— Antes... – a matriarca da Família Shiba ergueu um dedo indicador, finalmente quebrando o próprio silêncio – Vai tomar um banho e comer. Conheço-o, e parece mais que acabou de voltar de uma guerra. Andou usando kidou.
— Quatro ao todo.
— De que nível?
— Um hadou número 31, um bakudou número 30, um bakudou número 37 e um bakudou número 8.
— Fraco. Ficou exausto só com isso? – Kuukaku arqueou uma sobrancelha.
— Mas não foi só isso! – protestou.
— Precisa treinar mais! – quando ela ficou de pé, ele logo previu o que ela faria, e de fato, Sora foi pego e puxado para perto dela pelas vestes: – Amanhã, bem cedo, quero você pronto lá fora com Koganehiko e Shiroganehiko, entendeu?
— Sim, mãe...
SHIBA KUUKAKU
Kuukaku não gostava de demonstrar aflição, mas foi incapaz de evitar transparecer alívio ao ver Sora novamente em casa. Ainda bem que os ryoka já haviam deixado a Soul Society fazia dois dias. Ela preferia contar a ele tudo o que aconteceu no intervalo de tempo entre a sua partida da Soul Society e o retorno do mundo humano com calma, e de preferência sem que ele conhecesse, pelo menos por enquanto, o primo humano. Para ser sincera, Kuukaku não sabia como iria explicar Kurosaki Ichigo para Sora. Do jeito que o conhecia, Sora poderia ter a ideia de ir atrás do que não lhe dizia respeito, e isso poderia metê-lo em sérios apuros. Não. Nada de "primo Ichigo" por enquanto. De repente era mais seguro, até para o próprio Ichigo, não saber, por hora, do seu parentesco com os Shiba.
É claro que a atual chefe da Família Shiba havia reconhecido de cara aquele rosto despreocupado e personalidade rebelde que ela conhecia tão bem e que outrora havia pertencido a seu irmão mais velho. Até as caretas de Ichigo eram as mesmas de Kaien, e a forma como ele zombava quando sentia que havia ganhado em algo. O que a preocupava era não saber de que forma Ganju foi atingido pela aparição daquele jovem tão idêntico ao aniki que um dia admiraram tanto. Ele não comentou nada a respeito do "shinigami de merda" que havia conhecido e de certa forma firmado uma amizade, e provavelmente fugiria do assunto mesmo que ela o batesse para que admitisse. Será que estava tudo bem mesmo?
— Estamos de volta! – anunciaram Koganehiko, Shiroganehiko e Sora, simultaneamente, ao retornarem para o almoço, no dia seguinte.
Ela assentiu e aproveitou a oportunidade:
— Sora, podemos falar?
Quando os gêmeos se retiraram para deixar os dois a sós, Sora já parecia pensar no que havia feito dessa vez para merecer um puxão de orelha.
— Foi alguma coisa que fiz?
— Você fez algo?
— Err... Não? – uma gota escorreu pela testa dele.
— Então, fique quieto e escute.
— Sim, senhora.
Suspirou antes de falar, o que ela acabou concluindo consigo mesma ter sido desnecessário. Não estava prestes a dar uma notícia trágica, certo?
— Sawachika virá aqui hoje.
É claro que não era uma má notícia: os olhos de Sora brilharam.
— Sawa está vindo 'pra cá?! Como soube disso?
— Ela passou aqui ontem de noite, quando você já havia ido dormir. Pediu desculpas pelo incômodo e foi embora – revirou os olhos.
— E por que só me contou isso agora? – ele ergueu uma sobrancelha.
— Estava ocupada, acabei esquecendo.
— Com aquele canhão que vai construir?
— Não é um canhão, é um propulsor!
— O que é um propulsor? – o silêncio e o olhar que Kuukaku fez propositalmente foram suficientes para Sora entender que não era de sua conta – Mas então, como sabe que Sawa virá hoje, se ela não passou o recado?
— Está mesmo dizendo que a sua mãe conhece mais a sua amiga do que você próprio?
O garoto sorriu e se pôs de pé num único pulo:
— Temos visita para o almoço!
— É, eu acho que sim. Tenha modos, Sora. Uma garota está vindo almoçar com você...
Dizer aquilo enquanto sorria com certeza o deixaria vermelho, e de fato, foi o que aconteceu. Era unânime fazer piadas com a amizade de longa data de Sora e a tal Sawachika. Não que realmente parecesse haver algum tipo de romance juvenil entre aqueles dois, apenas era divertido vê-lo corar.
E como Kuukaku havia previsto, "Sawa" voltou a visitar os Shiba, poucos minutos depois de Sora ter corrido para tomar um banho e ficar pronto para o almoço. Com exceção do óbvio fato de ter ficado mais alta e mais curvilínea, aquela garota não mudou quase nada desde a última vez que brincou com o único filho da matriarca dos Shiba. O rosto era basicamente o mesmo rosto de boneca de antes, com grandes olhos de íris púrpura escuros, realçados por cílios moderadamente longos. O cabelo era liso e de um tom de azul que dava para confundir com preto, sendo somente quando os expunha ao sol que eles revelavam a tonalidade azulada. Antes, os mantinha próximos da altura dos ombros, agora, eles estavam notadamente mais longos e presos em um rabo-de-cavalo alto. A franja permanecia irregular, tanto quanto seu temperamento de quando era criança. Custava acreditar que aquela menininha mal-humorada que estava sempre com Sora em Rukongai havia sido selecionada e amadrinhada por Shuuya Junko. Pelo pouco que Kuukaku conhecia daquela mulher, Shuuya não escolhia aprendizes novos se estes não tivessem algo realmente útil para lhe oferecer. De acordo com o que se dizia por aí, tratava-se de uma recrutadora experiente de jovens lutadores de rua, e, curiosamente, também de gueixas. Se a Seireitei acreditava estar sempre por dentro de quem eram os melhores arruaceiros do Rukongai Norte, eles provavelmente nunca ouviram falar de Shuuya Junko.
— Com licença – para Kuukaku, Sawachika tinha uma maneira de falar polida e agradável, digna de uma ojou-sama**.
— Bem-vinda de novo, Sawachika - ouviu os passos apressados de um Sora semi cambaleante vindo de dentro da casa e sentiu vontade de batê-lo por chegar na sala parecendo um javali selvagem.
— Sawa!
— Sora.
A garota tranquilamente balançou a cabeça como quem pedia para ele não se incomodar ou tentar explicar nada, porém sua expressão era de quem na verdade estava perdido quanto a como deveria se portar diante de nobres da Soul Society. Ou melhor, ex-nobres. Kuukaku não fez questão de prestar atenção nos cumprimentos e conversas do filho com a amiga de infância durante a refeição. Assim como fazia quando Ganju trazia seus amigos em casa, ela preferia deixa-lo à vontade com suas visitas. Não era da sua conta os assuntos que provavelmente tinham para conversar. E ai de Sora ou de Ganju se algum dia resolverem não mais retribuir tal sensibilidade. Por outro lado, havia muitas perguntas que a líder da Casa Shiba queria fazer àquela garota, principalmente em se tratando da mulher que atendia pelo sobrenome Shuuya. O problema era o contexto para fazê-las. Se havia oferecido apoio à Guarda Distrital, certamente não era por acreditar de verdade que eles estavam ali apenas para prover o bem maior ao Rukongai. Era bem lógico que havia mais de um objetivo envolvido, pois o que parecia era que aquelas pessoas oriundas da grande Cidade dos Espíritos Errantes estavam promovendo um verdadeiro levante contra a Cidade dos Deuses da Morte, o que significava que, mais cedo ou mais tarde, a existência da organização viria à tona e os shinigami tomariam alguma providência.
Ergueu uma sobrancelha quando Sora e Sawachika seguiram juntos para o lado de fora da casa, após a refeição, mas provavelmente eles iriam apenas se despedir. E, aliás, Ganju estava extremamente atrasado para o almoço! Cerrou os punhos, irritada, no exato momento em que a chegada do irmão mais novo foi anunciada por um estrondo que habitualmente indicava que ele havia acabado de ser arremessado contra as portas de sua própria residência por uma javali irritadiça chamada Bonni-chan.
— Nee-san, perdão!
Ganju, aquele idiota!
— Onde estava?
— Tentando montar a Bonnie-chan, nee-san! Ela resolveu fugir de mim! – arrastou-se até conseguir chegar aos pés da irmã – Perdoa-me!
Revirou os olhos. Tudo bem. Bonnie-chan era realmente um javali difícil de lidar. Desde sempre, até antes de sua morte, só Kaien conseguia se impor com aquele animal.
— Levante-se daí e coma. Eu vou dar uma saída.
— Sim, nee-san! Cadê o Sora?
— Ele não está lá fora?
— Eu o teria visto, nee-san – viu a testa dele ficar azul, mas ela nada fez.
— Deve ter ido passear com aquela menina, então.
— Que menina?
— Ono Sawachika. A garota do Distrito 80.
— "Sawa"-chan?!
Ergueu uma sobrancelha, mas não se manifestou. Simplesmente gesticulou indicando que iria sair e o deixou lá para almoçar sozinho. Precisava ver uma pessoa naquele exato momento; Sora e Ganju podiam esperar. Pôs a capa que costumava vestir juntamente com um par de getas*** de sola retangular e adentrou o Rukongai rumando um certo estabelecimento comercial, uma farmácia onde costumava ir quando precisava se encontrar com pessoas importantes.
ONO SAWACHIKA
Sawa não se considerava uma celebridade ou alguém que estava acima de nenhum morador do Rukongai, mas sabia que o cuidado com a aparência e a postura adotada quando estivesse andando em público eram fundamentais para que as pessoas entendessem que ela estava ali para servi-las da melhor maneira. Há muito tempo havia deixado de ser só mais uma criança maltrapilha e com tendência a vandalismos para fazer parte do que as pessoas começaram a chamar por elas mesmas de Guarda Distrital. Os guardas funcionavam como uma força policial de Rukongai, e se diferenciavam dos lutadores de rua porque, apesar de andarem armados, existiam justamente para evitar a violência entre os moradores. Não eram um órgão oficial, que tivesse sido fundado pela Seireitei ou pela Central 46, mas uma organização pensada e mobilizada pelos próprios espíritos residentes do Rukongai, uma vez que aqueles que residiam na cidade dos Shinigami pareciam ocupados demais para se preocupar com a segurança e a qualidade de vida fora dos seus limites territoriais. Sawachika sabia, também, que havia objetivos maiores na Guarda Distrital além do de manter a ordem em Rukongai, e não duvidava que as pessoas também já soubessem ou ao menos desconfiassem disso.
Frequentemente confundida com um rapaz, não exatamente por androginia física, mas devido à sua frequente falta de graciosidade feminina e a preferência por quimonos masculinos, ela já era, porém, uma mulher, e talvez isso explicasse o motivo de se sentir desconcertada ao ver o brilho naqueles olhos verdes que ela reconhecia tão bem como sendo de Sora apenas por terem-na visto. Ele ainda a estimava tanto assim, depois de anos sem se verem por ela ter decidido se dedicar ao treinamento militar? Kuukaku também não parecia ter guardado algum mínimo de mágoa da jovem – talvez fosse o tipo de mãe que não costumava tomar as dores do filho, ou será que só estava sendo educada em recebe-la tão polidamente? –, mas o seu olhar era sugestivo, como quem tinha algo a dizer e ainda não podia.
— Sawa!
— Sora.
Sentiu a face aquecer, então lutou para não ficar vermelha e ao mesmo tempo manter a neutralidade. Ser recebida com tanto entusiasmo era desconcertante.
— Vamos comer! – ele a convidou.
— Com licença – assentiu e o seguiu para dentro após deixar os calçados do lado de fora, entrando apenas de meia, para a sala onde fariam a refeição.
A residência dos Shiba, apesar de estranhamente decorada, era muito maior e aconchegante que qualquer outra casa que Sawa já tivesse visitado em seu Distrito ou nos distritos vizinhos. Eles podem ter sido afastados da alta nobreza da Soul Society, mas ainda possuíam riquezas, sem dúvidas. Não foi à toa que Sora foi sequestrado quando criança por uns marmanjos que queriam cobrar um alto preço por seu resgate; bandidos não fazem isso se não tiverem a certeza de que haverá um bom pagamento. Sawachika reparava nos objetos da casa, e quase todos continham estampado o redemoinho, o símbolo da Família Shiba. Este mesmo redemoinho podia ser visto na maioria das vestes utilizadas por Kuukaku, Ganju e Sora, as vezes até pelos dois empregados da família também, os gêmeos Koganehiko e Shiroganehiko.
— Milagres acontecem! – Shiba Sora comentou assim que se sentou para comer – Pensei que tivesse se cansado de mim.
— Eu não "enjoei" de ninguém – uniu as sobrancelhas – Só tomei uma decisão e quis levar a sério. Só isso.
— É, você disse. Mas não achei que estivesse falando sério; éramos crianças!
— Você ainda é criança – revirou os olhos.
— É uma questão de tempo a minha voz mudar, ok?!
— Esperamos. Algumas mulheres falam mais firmemente que você.
Fato é que era impossível não sentir vontade de fazer piadas com ele. Parecia que os Shiba possuíam o dom de suavizar e bem humorizar qualquer tipo de conversa e ocasião. Sawa havia chegado desconcertada, e já se sentia à vontade para fazer brincadeiras, quase que magicamente.
— Agora me diz: o que te fez lembrar de mim?
— Um colega da Guarda me disse que você tinha voltado de uma viagem. Disse que você foi ao mundo humano.
— Aah...
— Então eu vim para saber mais sobre o outro mundo.
— O mundo humano é incrível, mas não sei por onde começar.
— Pelo começo – ele riu com a sugestão óbvia.
— 'Tá, "pelo começo"...
Escutou toda a história com mais interesse do que o pretendido. O mundo dos humanos parecia mesmo muito interessante; ainda que parecesse bastante com a Soul Society em diversos aspectos, era, sem dúvidas, um mundo e uma dimensão diferentes. Sora falava com tanta naturalidade dos shinigami que conheceu que nem parecia que sua família não ia com eles. Ele era neutro: nem a favor dos deuses da morte, e nem contra. Isso não a incomodava ou diminuía a sua vontade de falar com o garoto. Verdade era que ela sentia saudades. Ainda era muito jovem e precisava portar-se como um homem adulto; não que tivesse se arrependido de ter escolhido servir Rukongai, mas precisar de uma desculpa para se dar ao luxo de visitar um amigo de infância lhe soava tentador, como se quisesse retornar aos tempos de criança.
— Sora, esses shinigami. Por que eles estão vivendo no mundo humano?
Ele uniu as mãos atrás da cabeça e suspirou:
— Sinceramente? Não sei. Mas acho que não tem importância saber. Eles pareciam satisfeitos vivendo como humanos. Talvez apenas se cansaram da Seireitei.
— Ou, talvez, estão se escondendo da Seireitei. Podem ter feito algo de errado.
— Será? – as sobrancelhas ligeiramente alongadas dele se uniram – Eles não me pareciam criminosos.
— Nem todos os criminosos têm cara de criminosos.
— Mas eles eram legais! Que tipo de criminoso te acolhe na casa dele? – os olhos verdes do jovem Shiba se voltaram para Kuukaku quando ela apareceu na sala, o que chamou a atenção de Sawa também – Pensei que não viria comer com a gente.
— 'Pra variar, o seu tio inútil ainda não chegou, e pelo visto vai demorar a mostrar as caras.
— Acha que aconteceu alguma coisa?
— Se aconteceu, ele se vira. Vaso ruim não quebra – a chefe da família se sentou para acompanha-los na refeição, e deixou os gêmeos a servirem como os bons empregados que eram.
Sawachika observava a cena em silêncio e sem demonstrar nenhum tipo de sentimento em relação à mordomia na qual vivia a mulher que sabia ser a mãe de Sora. Ela era a dona daquela casa e de todos os outros possíveis bens associados, e era, oficialmente, a líder do Clã. Era seu direito ter empregados e ser servida por eles, certo? Sawa é que sempre foi pobre e nunca teve moradia e comida decentes, pelo menos até se juntar à Guarda Distrital. Lembrava de Sora ter contado que Shiroganehiko e Koganehiko estavam em sua família desde a infância de Kuukaku, Kaien e Ganju, e que, juntamente com um parente próximo, algo como um primo, "Kyou", foram os únicos servos que lealmente permaneceram servindo à Família desde a sua queda. A relação dos Shiba com a Família Ootsuka ia além de mera relação entre patrões e empregados, ou mestres e servos, principalmente quando se sabia que Kuukaku havia sido casada com Ootsuka Kyousuke. Quantos nobres se casavam com seus empregados?
Agradeceu a refeição que lhe foi gentilmente servida e estava prestes a se despedir quando Sora a convidou para dar uma volta. Não foi um convite direto e claro, eles simplesmente se levantaram conversando, e de repente já estavam caminhando pela varanda da casa. O Shiba pediu que ela contasse como era a vida de um lutador a serviço da Guarda Distrital, mas havia muita coisa que não podia ser dita a alguém que não era de dentro. Além disso, apesar de Shiba Kuukaku ter se manifestado a favor dos propósitos da Guarda, eles estavam cientes de que ela não era uma apoiadora confiável. Seria necessário uma considerável prova de lealdade para a mulher dos fogos de artifício ser considerada uma aliada de fato. No entanto, Sawa se perguntava se não devia a Sora um mínimo de confiança, da mesma forma que ele lhe depositou a dele ao contar sobre os Visored. Ele sabia que a Guarda Distrital era contrária aos shinigami e não teria contado a respeito daqueles que viviam no mundo humano se não a considerasse sua melhor amiga. Por hora, porém, ela morderia a própria língua. Um ponto que achava interessante a respeito da pessoa de Shiba Sora, e que também a fazia dar para trás quanto ao quanto ele podia ser perigoso para os assuntos da Guarda Distrital, era o fato de, apesar de nunca ter recebido treinamento militar, Sora ser capaz de sentir a presença dela e a distinguir da de outras pessoas, assim como ela própria podia sentir e distinguir a dele. Este era o indicativo de um espírito evoluído, alguém que posteriormente poderia causar problemas.
Shuuya Junko, a mulher a quem Sawachika serviu pessoalmente como guarda-costas, dizia que as almas mais evoluídas da Soul Society possuíam naturalmente a habilidade de sentir a presença de outros espíritos, mas somente os shinigami a refinavam. O erro deles, no entanto, era achar que seriam, para sempre, os únicos detentores do conhecimento necessário para evoluir as habilidades dessas almas. Havia uma disputa, obviamente não oficial, entre a Seireitei e a Guarda Distrital, no recrutamento de lutadores de rua talentosos, pois eram esses lutadores as almas que normalmente possuíam o potencial necessário para atingir o patamar de deuses da morte. E é claro que, por enquanto, eram os shinigami que estavam na frente. Sawa se perguntava até quando a Guarda continuaria desconhecida por eles. Não era uma questão de tempo a Seireitei os descobrir e resolver eliminá-los? Será que eles estariam prontos para um confronto desse tipo?
— Sawa?
Ela piscou os olhos púrpura algumas vezes antes de voltar a encará-lo, lembrando-se que estavam caminhando juntos e despreocupadamente naquele momento.
— 'Tá tudo bem? – um gota imaginária pendeu da cabeça dela ao ver o garoto acenar com a mão bem próximo de seu rosto, como se para ver se ainda estava acordada – Te fiz a mesma pergunta já duas vezes, mas vou repetir: quer ver o que eu trouxe do mundo humano?
— Desculpe – balançou a cabeça - O que você trouxe do mundo humano?
— Vamos voltar!
Foi impossível evitar sorrir o resto do dia. A eterna e inexplicável energia de Sora era contagiante, e, se dependesse da vontade de Sawachika, ela teria continuado ali, apreciando o momento de entretenimento e reencontro com o melhor amigo de infância por mais tempo, mas sabia que precisava retornar ao trabalho. Já até previa as piadinhas e indiretas que Seinosuke poderia fazer ao vê-la retornando. Deixou a casa dos Shiba se despedindo polidamente de Shiba Kuukaku e o agora presente Shiba Ganju. Sora acenava para a garota como quem a convidava para voltar ali no dia seguinte. Mas Sawa não retornaria tão cedo.
SHIHOUIN YUUSHIROU
A parte mais chata de ser um nobre para Yuushirou... Era ser um nobre. Não que ele sentisse vontade de largar tudo, ou tivesse aversão à suas origens aristocráticas. Mas o mero fato de não poder mais ver a irmã porque não podia deixar sua posição como 23º líder da Casa Shihouin para ir em busca de alguém que supostamente havia deixado propositalmente a Soul Society, o incomodava. Yoruichi foi oficialmente declarada desaparecida, e em seguida, deserdada. Desta forma, o único herdeiro do clã agora era Yuushirou. E apesar de muito jovem ainda, ele assumia a responsabilidade de Guardião do Armamento Divino. Não havia tempo ou espaço para novas amizades com gente de sua idade, e nem para procurar saber de sua tão adorada irmã mais velha, quem ele mal pôde conhecer e conviver. Havia algo pior que isso? Com uma personalidade descrita por todos como formal, mas simpática e até afetuosa quando o assunto era Yoruichi, Yuushirou treinava ao máximo para tentar provar que podia ser tão forte quanto diziam que a Shihouin mais velha era, de modo que o fato de ser um garoto considerado doce não passasse a impressão de ser fraco ou medroso. Um guardião não podia ser frágil ou hesitante! Quem sabe um dia ele poderia, até mesmo, salvar sua irmã.
Já estava pronto para fugir de casa pela primeira vez quando se lembrou de pesar os prós e contras disso. Se abandonasse o seu posto, ainda que por míseros 20 minutos, algo muito grande poderia acontecer, e poderia não ser bom para a Soul Society. O Armamento Divino, como todo e qualquer item de valor imensurável, podia ser usado mesmo sem a autorização da Central 46: bastava que fosse por quem possuísse o conhecimento e poder necessários para acessá-lo e manuseá-lo. Alguém provavelmente como Capitão Ukitake, que suplicou ao jovem Shihouin para que o permitisse usar alguns itens de sua família para impedir a execução de Kuchiki Rukia. Se Yuushirou não sentisse que a causa era realmente nobre – afinal, Ukitake não era o tipo do oficial de alta patente e confiança que iria mexer com objetos perigosos se realmente não havesse outra forma de evitar uma injustiça –, ele teria ousado confrontar o capitão, ou ao menos notificaria o Comandante Yamamoto ou a Central de que o Armamento estava correndo algum risco. No fim, sentiu que fez a coisa certa ao ter permitido a ação suspeita do capitão: Ukitake era um homem tão sensato que dificilmente faria alguma bobagem, e gentil o suficiente para se prontificar em assumir toda a culpa do "furto" e uso não autorizado de itens da Família Shihouin ainda que tudo desse errado, promessa que cumpriu sem hesitação. Com a traição e fuga dos Capitães Aizen, Ichimaru e Tousen, a segurança acerca do Armamento Divino precisou ser duplicada, mas Yuushirou não achava que eles voltariam à Soul Society tão cedo. Não seriam loucos!
Como conhecia todos os atalhos de sua própria casa e da Seireitei, sabia ocultar sua reiatsu, e acima de tudo, era ágil e veloz, pré-requisitos básicos para quem tinha como principais competências o shunkou, o hakuda e o shunpou, ele sabia como proceder caso quisesse desaparecer das vistas de todos por alguns tempos. Fugir era uma tarefa relativamente fácil para o 23º líder da Casa Shihouin, bastava não ser seguido por algum desconfiado que por um acaso também fosse bom com artes marciais... E talvez não fosse, afinal, uma má ideia sair um pouco de casa. Não pretendia ir embora para sempre e nem se demorar – deixou uma carta para avisar que não foi sequestrado nem que estava deixando tudo para trás –; todo mundo, afinal, merecia respirar um pouco. Além de que, havia alguma chance de ele descobrir algo a respeito do paradeiro de mais de 100 anos de sua irmã se fizesse uma visita aos Shiba. Deixou o sentimento de culpa pelo abandono do dever de lado e partiu rumo ao Rukongai.
Uma vez fora dos limites da Seireitei, Yuushirou refletia consigo mesmo a respeito do que era o Rukongai: ele nunca antes esteve lá, como um desconhecido qualquer. E a julgar pela aparente calmaria do Distrito 1, imaginou que todos os demais fossem semelhantes. Certamente, um ingênuo equívoco. À medida que se adentrava os distritos, o cenário claramente se deteriorava. De onde o jovem Shihouin morava, era fácil imaginar um cenário homogêneo da sociedade espiritual. No entanto, ao que parecia, as pessoas do Rukongai eram diretamente dependentes da proximidade com a cidade dos shinigamis. Não eram só as casas que pareciam ficar cada vez mais simples à medida que se rumava o Distrito 80: a forma como as pessoas se vestiam e se portavam também decaía. Até que Yuushirou se via na divisa entre a Seireitei e o Distrito 80, graças ao shunpou, no distrito que ele calculou ser, aproximadamente, o 40. Se perguntava se deveria continuar a sua busca pela casa da Família Shiba, ou se o melhor seria parar para descansar. Ainda bem que ninguém era capaz de reconhece-lo ou identifica-lo como um nobre, menos uma preocupação. Já não bastava ter que se preocupar com o tempo em que já estava fora de casa e se estava indo na direção correta.
E como todo bom aventureiro, estava munido com dinheiro, alguma comida e muda de roupa para caso acontecesse alguma coisa com a que estava usando. Enquanto fazia um rápido almoço num estabelecimento de udon****, começou a ouvir conversas a respeito de uns rumores de que "a Guarda Distrital" estava avançando além do Distrito 50, ou seja, conquistariam o 49º, e logo logo estariam ali, no 41. Yuushirou se perguntava quem eram esses tais guardas distritais. Nunca havia ouvido falar. A Seireitei sabia desse pessoal? Seria algum serviço ultrassecreto encabeçado e administrado de longe pela Central 46? Ou poderia ser alguma subdivisão da Onmitsukidou que ele ainda não conhecia?
— Parece que até já começaram a enviar homens para rondar o Distrito 48. Vai ser uma questão de alguns dias chegarem aqui!
— Você acha?
— Sim, dizem que esses caras reformaram todos os distritos a partir do 50, para melhor!
— Então espero que cheguem logo aqui, porque se formos depender da Seireitei...
— Com licença... – Yuushirou sentiu a necessidade de pedir a informação: - Mas quem são esses guardas distritais?
— Hum? Você nunca ouviu falar da Guarda Distrital? Acabou de chegar?
— Sim – mentiu – Eu sou do Distrito 1.
— Aaah...! – o outro homem da conversa começou a rir – É claro que tinha que ser do Distrito 1. Vocês nunca sabem de nada do que acontece no Rukongai!
— A Guarda Distrital, amiguinho... – o primeiro homem prosseguiu: - É um grupo de espadachins que, inicialmente, atuava no último distrito do Norte. Pelo que disseram, depois de transformarem o 80 em um lugar decente 'pra se viver, de uns tempos 'pra cá, eles começaram a expandir as suas áreas. Ao que parece, eles querem o que os shinigami nunca moveram um dedo 'pra providenciar: fazer de Rukongai um lugar melhor.
Ouviu aquelas palavras com profunda desconfiança, mas assentiu e agradeceu bem educadamente pela informação, fazendo parecer estar alegremente impressionado. Uma força policial pensada e administrada por espíritos de Rukongai? Será que isso era realmente uma resposta ao suposto descaso dos shinigami? Ou alguém estava planejando assumir o controle de Rukongai, para bater de frente com a Seireitei? Bem, talvez não passasse apenas de um bando de malucos. Afinal, quem era louco de desafiar a Gotei 13? Em todo caso, Yuushirou abusou novamente de suas habilidades com shunpou para chegar o mais imediatamente possível no distrito de número 49, onde aparentemente os guardas haviam chegado. Não parecia estar havendo nada demais ali; os guardas por acaso andavam uniformizados? Se sim, deveria ser fácil localizá-los nas ruas ou becos. Mas talvez realmente não passassem de lutadores de rua querendo fazer justiça com suas próprias mãos. Provavelmente, usavam roupas comuns típicas dos arruaceiros de Rukongai, em farrapos.
Duas figuras, no entanto, chamaram a atenção de Yuushirou. Andavam lado a lado tranquilamente enquanto eram tratadas pelos moradores locais como se fossem aparições. As pessoas praticamente abriam espaço para a dupla passar quando os notavam. Estreitando os olhos para melhor reparar neles enquanto se abaixava sobre o telhado de uma casa, a fim de não ser facilmente notado, pôde perceber que eram um casal. Uma garota com um longo rabo-de-cavalo negro, alto, e um homem aparentemente jovem também, mas não tanto quanto ela. Ambos se vestiam de maneira parecida, com quimonos que quase podiam ser descritos como "de bom gosto". Conversavam. Na verdade, ele conversava com ela, aparentemente lhe contava algo interessante, mas ela não parecia muito interessada. Ou talvez não gostasse de conversar com ele. Sequer erguia o rosto para o olhar como faria qualquer pessoa interessada pela troca de palavras. Aqueles dois eram, então, "guardas distritais", justiceiros?
Sentiu um arrepio ao notar que tanto de um quanto do outro emanava reiatsu, isto é, eles possuíam pressões espirituais elevadas se comparadas às das outras almas que habitavam o Rukongai. Eram o tipo de alma que sem sombra de dúvida sentia fome, e, se devidamente treinada, podia se tornar um shinigami. O jovem homem de cabelos negros que também usava um rabo-de-cavalo alto, porém curto e em corte reto, e que tinha um sorriso alegre, quase contagiante, o notou em cima do telhado, o que fez Yuushirou puxar o rosto para trás e se deixar cair de costas. Naturalmente, ele não cairia daquela forma tão banal, mas seus instintos o alertavam que o melhor era desaparecer do campo de visão daquelas duas pessoas, e quanto menos eles achassem que o Shihouin era capaz de lutar, melhor, por enquanto.
GLOSSÁRIO
*Daruma-san: o Jogo do Banho. Este jogo envolve a convocação de um espirito que irá perseguir os participantes todos os dias, sendo o objetivo final o de escapar.
**ojou-sama: princesa, senhorita.
***geta: calçado japonês semelhante a chinelos e tamancos. São um tipo de sandália com base de madeira alta, muito usadas em épocas de chuva para se manter os pés secos.
****udon: tipo de macarrão grosso, feito de farinha. Normalmente servido como sopa, em caldo quente à base de dashi, shoyu e mirin.
