Série Draicon

Livro 02 - Amante inimigo

A mulher que tentou matá-lo era sua verdadeira companheira...

Depois de quase ser assassinado pela companheira que lhe foi destinada, o homem-lobo Damián Marcel Draicon a persegue até Nova Orleans e descobre que ela foi infectada por um feitiço mortal: seu corpo está lentamente se transformando em granito.

Se não encontrar rapidamente a cura Jamie será aprisionada para sempre dentro da pedra, com seu espírito vivo, mas preso por toda a eternidade.

Jamie Walsh odeia e teme Damián, pois acredita que ele assassinou seu irmão, mas deve trabalhar em conjunto com o líder dos lobisomens para encontrar um livro perdido de magia que contém a cura que vai salvá-la. Quando iniciam a busca pelo livro sabem que estão lutando contra o tempo e contra os terríveis Morphs, que usarão a magia negra que contem o livro para eliminar os Draicon para sempre...

CAPITULO 01

«Antes fui presa e agora sou caçador», pensava Damián Marcel enquanto procurava por toda Nova Orleans à mulher que tinha tentado matá-lo. A companheira que lhe estava destinada. Jamie Walsh. Sua draicara.

O aroma do rio próximo o golpeou como uma bofetada. Damián elevou o nariz ao vento e aspirou o ar do Mississippi. Ao fim tinha voltado para casa.

Mas a sensação era agridoce: já não tinha lar algum. Aquele lugar já não o era. Era uma maldita tumba que ameaçava tragá-lo.

Tentou concentrar-se na paisagem, resistindo em transformar-se em lobo. Nova Orleans era conhecida por sua predileção para o sobrenatural, mas um lobisomem rondando o bairro francês poderia assustar os turistas. Esboçou um triste sorriso ao imaginar.

De repente o assaltou o aroma. Um aroma de madressilva e mulher. Dilatando as aletas do nariz, esforçou-se por apanhar aquela esquiva fragrância. Estendeu as mãos e tocou o ar como se estivesse acariciando a macia pele de uma mulher.

—Jamie. —Murmurou— Jamie, chéri. Pode fugir, mas não se esconder. Te encontrarei.

Amaldiçoou em francês quando perdeu o aroma. Em algum lugar daquele matagal de becos, cheios de lojas e locais noturnos, tinha conseguido esconder-se dele.

Afundou as mãos nos bolsos da calça, indiferente aos turistas.

Do outro lado da Praça Jackson, sentado em uma cadeira dobrável à sombra de uma frondosa árvore, um pequeno pintor enchia de cores uma tela. Em um banco na varanda um músico arrancava lastimosas notas de um banjo, acompanhado por um saxofonista. A música refletia bem o sombrio humor de Damián.

Nova Orleans ainda seguia lutando por recuperar-se dos efeitos do furacão Katrina, mas o Bairro fervia de música, álcool, sabor e magia. A magia que Damián levava no sangue. Magia branca, dos draicon.

E magia escura, dos morpb. Esboçou uma careta. Os morpb, antigos draicon que se voltaram malignos, podiam adotar a aparência de qualquer animal. Matavam sem piedade e logo absorviam a energia de suas vítimas. Jamie tinha se unido aos morpb para aprender sua magia, mas Damián a despojou de seu poder com um feitiço. Tinha-a deixado escapar no Novo México, consciente de que precisava estar sozinha e que depois poderia encontrá-la facilmente. O risco não era grande, uma vez que há uma semana atrás tinha matado Kane, o líder dos morph. Damián recordava bem a voz angustiada de Jamie:

—Me libertarei do seu feitiço, Damián. Nunca me terá.

Uma pontada de arrependimento lhe atravessou o peito, seguida de outra de desejo. A pequena Jamie, com seu delicioso rosto em forma de coração, sua pele delicada, quase translúcida, e seus enormes e expressivos olhos cinzas. Seus suaves e quentes lábios sob os seus...

Acelerou o passo, varrendo a multidão com o olhar. O sol arrancava reflexos do velho sax do músico. Ao passar a seu lado, o pintor lhe lançou um triste olhar. As palavras que pronunciou o fizeram deter-se em seco.

—Ouviu o uivo do lobo?

Sobressaltado, voltou-se para olhar o pintor. Estudou suas têmporas encanecidas e sua roupa velha, quase uns farrapos, manchada de tinta; suas fundas bochechas e seu nariz largo e afiado. O tipo estava pálido e magro como um fantasma.

—Há dito «lobo», senhor?

O homem o olhava com os olhos protegidos por seus grandes óculos de sol.

—O loup garou nunca fais dodo no bayou, mon frére. Joga uma olhada ao quadro. Interessante, non?

«O homem lobo nunca dorme no bayou, meu irmão» era o que lhe havia dito. Instantaneamente alerta, Damián contemplou a pintura: um lobo uivando à lua cheia, perto de uma cabana de madeira. Assaltou-o uma sensação de familiaridade. Olhou ao homem, mas não conseguiu identificá-lo. Por um instante, sentiu bater as asas da esperança; seria possivelmente um membro de sua antiga manada? Teria sobrevivido ao menos um?

—Mon frére? Quem trabalha duro não dorme nunca. Por favor, joga uma olhada a isto... — pediu-lhe o homem.

Mas a esperança morreu em seguida. Fazia muito tempo que todos seus irmãos estavam mortos. Não podia permitir-se distrair-se com suas lembranças. A vida de Jamie era sua prioridade. Aquele homem simplesmente tinha reconhecido seu acento e tinha tentado simpatizar com ele com a única intenção de lhe vender um quadro. O tipo não era mais que o que parecia: um artista meio morto de fome tentando sobreviver.

De repente captou sua atenção um aroma familiar, que lhe recordou imediatamente sua infância.

—Desculpe. — murmurou.

Varreu a zona com o olhar até posar em um velho de aspecto decrépito que estava carregando um grande cubo vermelho até uma pequena mesa de madeira.

—Caranguejos! —gritou o vendedor— Caranguejos do rio!

Damián se dirigiu diretamente para ele. Os caranguejos de cor cinza se agitavam no fundo do cubo. Vendo-os, lhe fez água na boca.

As lembranças o invadiram: lembranças de quando se internava no cristalino arroio, recolhendo caranguejos para a comida. Seu estômago se queixou: necessitava a energia da carne crua. Tirou dinheiro de sua carteira e pagou ao homem, que lhe guardou os caranguejos em uma bolsa de plástico.

—Crus são melhores. —lhe disse— Todo o sabor está na carapaça.

—Eu sei.

Damián se dirigiu ao Moon Walk, o passeio à beira do Mississippi. Ali, oculto dos olhares dos curiosos, abriu a bolsa e foi devorando os caranguejos. Quando foi tirar o último, algo maior que os outros, viu que não se mexia, mas sim estava estranhamente quieto. Possivelmente estivesse morto...

Dispunha-se a comer-lhe quando se deteve em seco. O caranguejo abriu a boca e vaiou:

—Draicon.

Alarmado, soltou-o. Era um morph. O caranguejo começou a agitar-se e a trocar de forma antes inclusive de cair ao chão. Damián fechou os punhos, esperando.

O caranguejo arrebentou multiplicando-se em um exército deles. Alguns se afastaram. Damián se concentrou em esmagá-los com o pé, rápido como o raio. Mas... onde estava o anfitrião?

Ao ouvir uma espécie de risada a suas costas, voltou-se rapidamente... mas não antes de sentir uma lacerante dor em um flanco. O morph, em sua forma humana, tinha-lhe cravado algo. Damián necessitou de toda sua energia para manter-se em pé.

Imediatamente elevou os braços e duas largas adagas apareceram em suas mãos. O morpb se equilibrou para ele, com a faca procurando seu peito.

Damián se colocou de lado e continuou esquivando-se enquanto o estudava. A criatura era rápida, mas ele era mais. De repente o morpb começou a trocar. Suas mãos se transformaram em garras e umas largas presas substituíram seus amarelados dentes.

—É muito tarde, draicon. Sua draicara está morrendo. Seu feitiço não funcionou.

Aquilo conseguiu distraí-lo. O morpb se aproveitou e lhe aplicou um golpe. Damián se recuperou justo quando a criatura começava a mudar de novo. Sabia que, com outra forma animal, seria mais difícil matá-lo, assim não perdeu tempo. Lançou-lhe um chute que o fez cair de joelhos, e a seguir soltou as adagas e saltou em cima dele. Imediatamente lhe golpeou a mão contra o chão, obrigando-o a soltar a faca.

Apertou-lhe a terceira vértebra cervical, o suficiente para lhe provocar uma insuportável dor sem matá-lo. A dor lhes roubava a energia e suspendia seus processos de metamorfose.

—Me diga, maldito covarde. Por que não funcionou meu feitiço?

O morpb chiava, negando-se a falar. Damián aplicou uma maior pressão.

—Pára, pára. — gemeu, com a espuma lhe correndo pela boca.

—Fala.

—Conseguiu atrasar o efeito da magia escura, mas nada mais. Seu sangue... está se espessando. — o morpb se revolveu, tentando liberar-se.

Com um grunhido, Damián lhe afundou o polegar no pescoço. A criatura não cessava de gemer.

—Oh, por favor, pára essa dor... —suplicou— A magia negra está dentro dela, convertendo-a... em pedra.

Consternado por aquela revelação, Damián o soltou. Ao ver que o morpb tentava escapar, retorceu-lhe um braço detrás das costas.

—Quero detalhes. Agora. Ou te romperei até o último osso do corpo.

—O feitiço de Porfirio... usa-se muito pouco. Não p-podemos absorver a energia da vítima. Demos a ela magia escura, e quanto mais magia escura tenha em seu interior, mais rapidamente funcionará. Em questão de s-semanas, converterá-se em pedra. Em pedra viva...

A mente de Damián estava trabalhando a toda velocidade.

—E não podem desfazer o feitiço, certo? — retorceu-lhe ainda mais o braço.

—N-não — soluçou o morpb— Nada pode detê-lo. Só o Livro Oculto de Magia.

Damián o soltou de repente e recolheu suas adagas. Já era tempo de terminar com aquilo.

O morpb se levantou e voltou a lançar-se contra ele, com seus traços convertidos em uma careta de raiva. Damián lhe cravou então as duas adagas no peito.

Depois de contemplar impassível sua agonia, empurrou o corpo para o rio. Antes inclusive de tocar a água, desintegrou-se em cinzas.

Olhou sua ferida; se curaria sem problemas graças a sua magia. Com um gesto de sua mão, trocou imediatamente de aparência. Sua rasgada camisa de seda, sua calça de linho e seus sapatos de pele se viram substituídos por uma camiseta negra, uns desbotados jeans e umas botas de motorista.

Encolheu seu estômago ao recordar as palavras do morph. Tinha ouvido antigas lendas sobre o feitiço de Porfirio. As vítimas apresentavam ao princípio sintomas de letargia. Comiam qualquer coisa que pudesse lhes dar energia, especialmente açúcar. Mas não assimilavam a comida. Choravam lágrimas doces, e o sangue se espessava nas veias, voltavam-se cinza, seus órgãos internos começavam a petrificar-se... Era uma morte horrível.

—Merde — resmungou.

Voltou correndo à praça onde tinha comprado os caranguejos, em busca do vendedor. O tipo tinha desaparecido. Tinham-no enganado. O vendedor também devia ser um morph.

Jamie, morrendo... e os morph se transformando pela cidade? Que diabos estava acontecendo? Estariam por toda parte, disfarçados de humanos? Nem sequer sua potente magia draicon podia reconhecê-los naquela forma.

Ele ergueu o nariz e cheirou, tentando traçar o rastro do vendedor ... quando de repente ele virou-se para o cheiro: o aroma de madressilva e da mulher flutuando no ar. Jamie.

Tinha que encontrá-la. Em questão de semanas, estaria morta. Ou, pior ainda, convertida em pedra. Em estátua viva. Virou-se, enchendo os pulmões daquele aroma Agora era mais forte... abriu passo entre um grupo de turistas que desfrutava da música do tocador de banjo.

O remédio estava no Livro de Magia. Aquele oculto texto de magia branca e negra, de dez mil anos de antiguidade estava carregado de segredos. O pai de Damián o tinha oculto para que não caísse em poder dos morpb. Cada setenta anos era necessário um feitiço para mantê-lo ativo.

Se Damián não encontrasse logo o livro, Jamie morreria em meio de uma atroz agonia. «Prometo-te que te salvarei, minha adorada draicara, embora seja quão último faça na vida», pronunciou para si. Com seu instinto de lobo alerta, seguiu o rastro do aroma de Jamie.

Quanto podia chegar a perder uma pessoa na vida? Perguntou-se Jamie Walsh. Muito. Seres queridos, por exemplo. Ela tinha perdido seus pais. E seu irmão. E agora estava perdendo também sua própria força, sua própria magia.

Sentia-se aturdida, morta por dentro, como se tivesse apagado sua chama interior. Apoiou-se em um poste para recuperar o fôlego. Um frio cortante lhe atravessava a camiseta. A caminhada até a loja de alimentação nunca a tinha fatigado tanto. Baixou ao chão a bolsa de plástico e esfregou as mãos nas pernas das calças dos jeans. Era como se levasse pesos de chumbo nos pés. E não tinha ninguém a quem recorrer, ninguém que pudesse ajudá-la.

Não: a solidão estava bem. Sozinha, suas possibilidades de sobreviver eram maiores. Não necessitava de ninguém.

Um aroma familiar a assaltou de repente. Um aroma de água fresca e a especiarias. Fortes. Sensual. O inimigo: Damián. A adrenalina começou a bombear por suas veias. Olhou a seu redor, mas só viu turistas desfrutando da ensolarada tarde. Fazendo um esforço, continuou andando para sua casa.

A casa de seu irmão Mark, perto da praça Jackson, não despertava nenhuma suspeita. Abriu a grade e fechou o ferrolho. Suspirando de alívio, chegou ao jardim interior, deixou as compras sobre uma das mesas de ferro forjado e se sentou.

Rodeada de muros centenários, sentia-se a salvo naquele refúgio. Ninguém a encontraria ali... exceto possivelmente Damián. Um calafrio lhe percorreu as costas. O que faria se chegava a encontrá-la? De que maneira a castigaria?

«Tentou matá-lo», recordou-se. O que quereria o draicon dela? A resposta era clara: sexo. A excitação sexual e o medo se confundiam quando pensava em Damián, no seu corpo duro e musculoso. Tinha lhe roubado a virgindade, e agora quereria convertê-la em sua companheira. Daria-lhe caça e não retrocederia até encontrá-la: até arrastá-la para sua cama para afundar-se entre suas coxas e possuí-la de novo.

Excitava-se só de pensar... esforçou-se por colocar aqueles pensamentos a um lado para concentrar-se em sua sobrevivência. Naquele momento era como uma fortaleza sem defesas, exposta a Damián. Ele, que desejava seu corpo, apoderaria-se também de seu espírito e a levaria consigo, em qualidade de companheira, com sua manada de ferozes homens-lobo. Não ficavam mais armas além de sua vontade, sua guelra.

Depois de subir as escadas e guardar as compras na cozinha, passou ao salão e se aproximou de um velho escritório coberto de computadores, móveis e outros aparelhos. Tirou um laptop e um aircard e os guardou em sua mochila. Sem perder tempo voltou a sair para dirigir-se a Petite Maison, artigos de vodu.

Mama Renee conhecia o secreto mundo dos seres sobrenaturais, como os morpb e os draicon. O tinido de uma campainha de bronze anunciou sua entrada. De um lado se elevava o altar a Marie Laveau, com dezenas de velas acesas em memória da antiga sacerdotisa vodu. Jamie se dirigiu a um quarto e bateu na porta fechada. Foi Mama Renee quem abriu.

—Chére! —exclamou, abraçando-a.

—Trouxe um presente. Eu comprei uma placa wireless e conectei ao telefone para que você possa se comunicar com sua neta. Já é hora que entre na era da informática. Leva duas décadas de atraso...

Aquela antiga brincadeira arrancou um sorriso de Mama Renee enquanto aceitava o presente. Mas em seguida os soltou para fazê-la entrar na cozinha, onde a convidou a um chá de ervas. Um grande gato negro se enredou entre suas pernas. Jamie se agachou para acariciá-lo.

—Arquimedes está ficando gordo e são. — Comentou. Recordava bem o aspecto que tinha quando Mark e ela o encontraram, todo ossos e pele, no alpendre de uma casa destroçada pelo furacão Katrina.

—Seu irmão e você trabalharam muito duro para resgatar a esses pobres animais e lhes buscar um lar. Se não tivesse sido por vocês, teriam morrido. Mark era uma pessoa maravilhosa, carinhosa e com um grande coração, como você. O mundo perdeu muito com sua morte.

De repente se sentiu afligida por uma insuportável sensação de solidão. Mark a resgatou de uma infância traumática. Ele era quão único tinha. «E você o matou, Damián. Você assassinou meu irmão». Sentiu um nó na garganta. Ela tampouco era muito melhor. Ao fim e ao cabo, tinha tentado matar seu antigo amante...

—Algo aconteceu. — comentou Mama Renee, escrutinando seu rosto — Vejo escuridão em seus preciosos olhos. Mas também vejo a luz, esforçando-se para sair.

Consternada, Jamie explicou tudo.

—Tem algo, uma poção, qualquer coisa que possa combater o feitiço de Damián? —pediu-lhe desesperada.

Renee tomou brandamente uma mão e estudou sua palma. Sacudiu a cabeça.

—Carinho, não há magia que possa rebater isso. Necessita a fonte. É uma magia muito poderosa.

—Tenho que recuperar a minha.

Aproximou-se do açúcar. Só depois de comer várias colheradas, bebeu um gole de chá.

—Jamie, quantas vezes tenho que lhe dizer que isso é perigoso, e não só para ti, chére? Olhe o que te fez a magia escura.

—Mas era a única magia que tinha... e agora desapareceu —deixou a xícara sobre a mesa e se abraçou, estremecendo.— Me sinto tão... tão perdida e tão sozinha. Quando consegui aquele poder, por fim pude me sentir minimamente cômoda em minha própria pele... embora odiasse a maneira em que o consegui. Cada vez que me sentia culpada, procurava usar os poderes para me recordar o benefício que supunha. Não necessitava de ninguém. Tinha a magia. Mas agora... — acrescentou, triste— Agora já não sei quem sou. É como se não encaixasse com ninguém, como se me tivesse perdido...

—Mas os morpb lhe acolheram. —repôs a mulher, irônica— Te fizeram se sentir um deles, não? Era isso o que queria?

Jamie estremeceu, recordando a sensação do mal infiltrando-se em sua alma.

—Sei que me utilizaram e odiei o que me fizeram. Mas o poder... Oh, Renee, não pode imaginar isso! Pela primeira vez, senti-me normal. Tinha que me vingar e o mal era o único caminho. Mas agora estou perdida de novo.

—A vingança só traz escuridão. —suspirou a mulher— Por que quis se vingar de Damián? Por que tentou matá-lo?

Jamie mordeu o lábio. Mama Renee era a única pessoa em que podia confiar.

—Quero que me jure por sua vida que não dirá a ninguém.

A mulher pareceu surpreender-se, mas ao final assentiu.

—Vi como matava a meu irmão.

—Non, chére, os jornais disseram que o mataram uns assaltantes. A polícia só o identificou porque...

—Encontraram sua carteira perto, com sua identificação. O corpo de Mark... estava abrasado, reduzido a cinzas —suspirou— Faz seis meses, estava em um bar do Bourbon esperando Mark quando conheci Damián. Pareceu-me... irresistível. Disse-me que era um draicon, um homem-lobo. Mark chegou então e ficou furioso por me ver com ele. Estava claro que não se davam bem. Mark me ordenou que voltasse para casa, mas Damián colocou uma nota na minha bolsa com o número de seu quarto no hotel.

Um ardiloso sorriso apareceu nos lábios de Renee.

—Me deixe adivinhar. Foi buscá-lo.

Jamie assentiu, ruborizada. Evocou seu próprio acanhamento, a poderosa sensualidade de Damián. A sensação de pura loucura, de absoluta inibição... e a convicção de que tinha sido muito mais que sexo,

—Damián prometeu que me ensinaria a magia. Voltei para o hotel no dia seguinte para lhe recordar sua promessa, mas ele já havia partido. Senti-me manipulada. De retorno em casa, Mark estava furioso. Adivinhou o que tinha acontecido e me ordenou que ficasse ali, sem sair. Disse-me que os draicon eram uns miseráveis e que faria Damián pagar.

Nunca tinha visto seu irmão tão furioso como aquele dia... nem tão preocupado por ela. E Damián o matou.

—Como sabia Mark que Damián era um draicon? — Perguntou Renee.

—Mark sabia coisas do universo sobrenatural — deu de ombros— Aquela noite Mark necessitava que o ajudasse a tirar um cão de rua de um edifício que acabava de comprar. Ficamos de nos encontrar ali. Disse-me que pusesse uma roupa nova, orvalhada com um produto que ocultava meu aroma para que Damián não pudesse me localizar. Eu estava no edifício procurando o cão quando ouvi um ruído de motos no beco. Apareci fora e vi... vi o Mark. Estava enfrentando Damián e aqueles cinco motoqueiros, todos altos e vestidos de couro negro...

Renee a escutava com atenção, compadecida.

—Ouvi Damián dizer: «Esse é Mark Walsh. Matem» Os motoqueiros se converteram em lobos. Vi Damián transformar-se também em um enorme lobo e... Mark gritou... —fechou os olhos com força, recordando os grunhidos dos lobos e os gritos de seu irmão em plena agonia — Eu desmaiei. Quando despertei, saí ao beco. Não havia nada mais que um montão de cinzas. Informei o desaparecimento e a polícia me disse que uma testemunha tinha visto Mark morrer nas mãos de uns assaltantes. Então, como não sabia o que fazer, fugi...

—Oh, Jamie... —Mama Renee abriu os braços, convidativa.

Que vontade tinha de abraçá-la, de deixar-se reconfortar! Mas desde a morte de seu irmão, não se atrevia a baixar a barreira detrás da que se refugiou para defender-se daquele mundo hostil. Sacudiu a cabeça.

—Vivi em hotéis, temerosa de voltar para casa, por medo de que Damián me encontrasse. Poucos dias depois, encontrei-me com um amigo dele. Supunha-se que Nicolás devia me proteger até que Damián aparecesse. Eu lhe disse que só me reuniria com ele se me ensinava a magia. — sorriu triste— E o fez. Assim usei a magia para encontrar aos morph, conseguir mais magia e tentar matar Damián. Eles usaram meu sangue para elaborar um filtro letal e eu o infectei com um beijo.

Mama Renee a olhava angustiada.

— Sofreu tanto... mas por que Damián teria que querer matar a seu irmão? Possivelmente não saiba a história completa...

—Provavelmente sabia que Mark pretendia buscá-lo por me haver seduzido. Eu vi com meus próprios olhos como o despedaçavam. Os draicon são uns assassinos desumanos.

Os gritos ainda ressonavam em sua cabeça. Os terríveis chiados de dor e o ruído da carne rasgada... Renee voltou a tomar a mão para lhe examinar a palma.

—Jamie, sofreu muito sendo tão jovem. É muito especial, diferente, e pagou por isso. É hora que se liberte, de que aprenda que nem todo mundo é seu inimigo. Às vezes aqueles de quem mais desconfia são precisamente os que mais merecem sua confiança. Eles são sua verdadeira família.

Removendo-se em sua cadeira, Jamie pensou nas cicatrizes que marcavam a parte baixa de suas costas, voltou a ouvir os risos irônicos de seus primos, a sentir a ardência na pele... Sentiu uma pontada de vergonha. E essa tinha sido sua família?

—Você é minha verdadeira família. —replicou. «Não tenho a ninguém mais», acrescentou para si. — Assim... não há nada que possa me dar para que possa recuperar ao menos uma mínima parte de meus antigos poderes?

—Nada. Impede-lhe isso um antigo feitiço draicon. Mas se Damián lhe fez isso, seguro que foi para te proteger.

—Necessito outro feitiço draicon para me liberar. O Livro de Magia.

—Esses textos são secretos. —Renee a olhou preocupada — São muito perigosos, inclusive nas mãos das feiticeiras mais sábias e experientes.

Jamie não era nem sábia nem experiente. Mas estava desesperada.

—Me prometa que se encontrar esse livro, entregará-o aos draicon —suplicou a anciã— Já se converteu em uma vítima de terríveis força. Esse livro poderia te destruir...

—Não fui uma vítima e sim uma participante voluntária.

Renee lhe acariciou meigamente a mão.

—Uma vítima, carinho. Os morpb sabiam que estava vulnerável. Por muito que agora tente negá-lo, aproveitaram-se disso.

Jamie se indignou de novo.

—Não. E nunca voltarei a ser débil. Obrigada, Mama Renee. Arrumarei isso sozinha.

Uma enigmática expressão se desenhou nos rasgos da feiticeira.

—Jamie, recorda. Inclusive o bem pode proceder da escuridão. O chefe dos draicon te busca e eles necessitam de seu poder de cura.

Aquelas palavras não tinham nenhum sentido para Jamie. Ela não curava, mas sim destruía. Era como se tudo a sua volta tivesse se tornado absurdo de repente.

—E nem todos os draicon são maus — acrescentou a mulher, sorrindo triste.

Jamie sentia uma dolorosa opressão no peito enquanto se deixava acompanhar até a saída. A campainha da porta tilintou a suas costas.

Sentindo-se perdida e desorientada, dirigiu-se ao Pedestrian Malí. Seria outro dia de rotina no Bairro Francês... Mas se equivocava. O coração começou a lhe pulsar com o dobro de velocidade quando viu uma estranha figura dirigindo-se diretamente para ela. Não era o rosto de Damián, que conhecia tão bem, a não ser outro de traços disformes, olhos negros, sem alma...

O morph seguia caminhando para ela: sua figura encolhida dava pavor, parecia um pesadelo vivo... Acaso ela era quão única o via? Quis gritar as pessoas para avisá-las: «Corram, loucos!».

Piscou várias vezes. De repente, no lugar do morph, viu um homem de meia idade vestido com uma camisa de flores e bermuda. «Estou perdendo o juízo», pensou. Respirando fundo, obrigou-se a relaxar-se. Os morph não passeavam pelas ruas de Nova Orleans: só os humanos. E um solitário homem-lobo chamado... Damián.

De repente ficou paralisada de medo. Ali estava. O vento lhe despenteava os cabelos escuros. Sua elegância natural o fazia destacar-se entre a multidão. Caminhava com graça para ela, com seu corpo musculoso movendo-se como uma máquina bem lubrificada. Alheio à multidão, aos turistas, aos pintores, a tudo.

A tudo que não fosse ela. Seus olhos verdes percorriam sua figura como um laser. Voltou a acelerar-se o pulso. O instinto a impulsionava a fugir. Virando-se, começou a abrir-se passo entre a multidão. Caminhava cada vez mais rápido, sentindo seu fôlego na nuca...

Uma mão se fechou sobre seu braço, obrigando-a a deter-se. Jamie perdeu o fôlego, aterrada. Arrastou-a longe da multidão, para um edifício de tijolo.

—Jamie... por fim te encontrei —murmurou com sua voz suave, acariciadora, uma vez que a meteu em um velho portal.

—Me solte, draicon. Me solte agora mesmo.

Lutou em vão. Um soluço histérico lhe subiu pela garganta. Iria castigá-la por ter tentado matá-lo. Tinha-a encurralada contra a parede. Estava apanhada.

Quando abriu a boca para pedir ajuda, Damián a atraiu para seu duro corpo... e a beijou afogando seu grito.

Seu beijo a deixou paralisada de assombro. Foi um beijo terno, apenas um delicado toque. Damián elevou a cabeça, suavizando sua expressão e lhe embalou o rosto entre as mãos.

—Não grite, chére. Prometo que não te farei mal, ma petite.

Com uma simples carícia, tinha conseguido tranquilizá-la. Jamie amaldiçoou para si. O que era aquilo? Magia draicon?

—Não quero te fazer dano, Jamie. Eu só quero te ajudar. — um brilho de desejo apareceu em seus olhos — Mas primeiro... maldita seja...

Voltou a beijá-la, como se não pudesse resistir. Jogando a cabeça para trás, Jamie sentiu que lhe fraquejavam os joelhos. Elevou uma mão para lhe acariciar o pescoço, duro como uma rocha sob a pele ardente. Reconheceu seu sabor quando sua língua invadiu sua boca. Sentia-se tão desinibida e tão incontrolável como a primeira vez que a possuiu...

Aquilo não era real. Nem justo. Mas o suculento sabor de sua língua a reclamava com cada carícia. Agarrou-o pelas lapelas da camisa, aproximando-o para si. Só que justo nesse instante Damián interrompeu o beijo. Um rouco grunhido surgiu de sua garganta enquanto se afastava, sem soltá-la.

Alarmada e consternada, Jamie umedeceu os lábios. «Acabo de beijar ao assassino de meu irmão. O draicon que tentei matar».

—Sshh —Damián lhe embalou uma bochecha com a mão — Não te farei nenhum dano.

—Então me libere desse teu feitiço —ficou olhando. Tinha um rosto perfeito, de uma beleza clássica. E, entretanto, sabia que um lobo espreitava atrás.

Tinha tentado matá-lo no Novo México, mas Nicolás, seu beta, tinha-o curado. E logo Damián lhe tinha arrojado um feitiço lhe impedindo de fazer magia. O escuro poder que lhe tinha outorgado Kane, o chefe morpb, tinha desaparecido. Conforme lhe tinha contado Damián, tinha-o feito porque sabia que, sem seus poderes, deixaria de interessar aos morpb. Mas lhe tinha mentido. Sabia.

Depois ela tinha escapado, mas agora acabava de encontrá-la. Não importava. Voltaria a fugir.

—Não posso. A magia que há em ti é escura. Até que lhe possa apagar isso, o feitiço persistirá.

—Encontrarei uma maneira de combatê-lo. Posso te vencer, draicon.

Uma sombra obscureceu de repente a expressão de Damián.

—Tenho que te dizer algo, Jamie. Está em perigo. Necessita minha ajuda.

—Sua ajuda? Antes preferiria beijar a um morpb. Ao menos eles me deram poder.

Ficou olhando pensativo.

—Como te transmitiu Kane sua magia?

—Deitei-me com ele.

Damián apertou os lábios até convertê-los em uma fina linha. Aproximando-se, acariciou-lhe o pescoço com o nariz; estava-a farejando como um lobo a um coelho. Quando se afastou, um brilho de masculina satisfação relampejava em seus olhos.

—Não é verdade. Não o cheiro em você. Não esteve com nenhum outro homem depois de mim.

—Mas poderia me deitar com qualquer um. —elevou o queixo— E vender meu corpo por alguma maneira de combater seu feitiço.

Damián sorriu, mas seu olhar era o suficientemente eloquente. Falava de raiva e de posse masculina.

—Não se subestime, Jamie. Seu corpo vale muito mais. E se encontrar a algum voluntário, farei que se arrependa de ter posado seu olhar em você. — acariciou seu pescoço com deliciosa ternura, em contraste com o brilho assassino de seus olhos — O despedaçarei. Pouco a pouco.

—E comigo? O que faria comigo?

Sua expressão trocou de repente. A intensidade de seu olhar a derreteu.

— O que faria contigo? Arrancaria sua roupa, beijaria todo seu corpo e te faria desfrutar até que suplicasse a gritos que parasse... Nunca voltaria a estar com outro homem, porque cada vez que te aproximasse de um, eu estaria ali, meu aroma em seu nariz, meu sabor em sua boca e a sensação do meu sexo no teu... —soltou-lhe o pescoço—Entendido?

Jamie umedeceu os lábios enquanto sentia crescer em seu interior um profundo e primitivo impulso ante aquele faminto olhar... Suas pupilas se dilataram por momentos, obscurecendo sua íris de cor verde jade. Damián exercia um estranho poder sexual sobre ela, certamente; mas ela também sobre ele.

—Entendo. Despojou-me de meu poder para me castigar. Bem, ganhou. Se me liberar desse feitiço, compensarei você como você já sabe. Se não, encontrarei alguma outra maneira. Como certo livro secreto de magia, draicon.

Damián lhe acariciou uma bochecha com a ponta dos dedos.

—Meu nome é Damián, não draicon — sua voz se suavizou de repente. Jamie acreditou inclusive distinguir uma nota de arrependimento — Não há necessidade de que me compense de nenhuma forma, Jamie. Esse feitiço que te lancei foi por seu bem, para seu próprio amparo. Confia em mim, é o melhor...

—Eu sei o que é o melhor para mim. Não te necessito nem a ninguém.

Uma expressão de horrível sofrimento se desenhou nos olhos de Damián, antes que chegasse a fechá-los. Perplexa, Jamie ficou olhando a sombra de suas largas pestanas. Quando voltou a abri-los, a dor tinha desaparecido.

—Passeia comigo. Precisamos falar. É urgente.

Não queria, mas a cálida mão com que a guiava no cotovelo lhe impedia de negar-se. Começou a levá-la para o rio.

—Me solte. Não confio em você.

Deteve-se, olhando-a muito sério.

—É certo que eu tampouco te dei uma boa razão para que confie em mim. Mas temos que falar. Iremos ao Café du Monde. É um lugar público, assim se sentir-se ameaçada, sempre poderá gritar pedindo ajuda. Parece-te bem?

O café estava cheio e Damián a guiou para uma das mesas do terraço. Galante, puxou-lhe uma cadeira. Indecisa entre sair fugindo ou ficar, Jamie se sentou ao fim.

Damián franziu o cenho ao ver sua desanimada expressão. Estirando uma mão, tomou delicadamente o queixo.

—Ei, tranquila. Tudo se arrumará. Não é o fim do mundo.

«O do meu sim», quis lhe dizer. Mas em lugar disso deu de ombros, em um valente esforço por dissimular seus sentimentos. Damián ficou olhando pensativo antes de chamar uma garçonete.

Logo após ter partido com sua ordem Jamie tirou um guardanapo de papel e estendeu sobre a toalha. Ato seguido tomou o pote de açúcar, verteu todo seu conteúdo no guardanapo... e começou a comer a colheradas.

—Vá... —murmurou Damián, impressionado.

Ignorando-o, Jamie continuou comendo... cada vez mais rápido. O açúcar lhe dava a energia que necessitava. Quando terminou, soltou a colher.

—Uf! Necessitava de glicose... —disse como desculpando-se — É que ultimamente me encontro tão cansada...

—Jamie, por que pediu aos morpb precisamente o poder de voar quando teriam podido te conceder qualquer outro?

—Não o fiz. Kane me infectou com magia escura e me disse que podia me metamorfosear em qualquer animal que quisesse.

Damián desviou o olhar para uma mosca que estava revoando pela mesa, perto dos restos de açúcar. Esmagou-a com assombrosa rapidez. Jamie o olhou surpreendida.

—Não era mais que uma mosca... Embora nunca se sabe. —explicou, em velada referência aos morpb.

A garçonete se aproximou então com o pedido, duas xícaras de café e dois beignets. Ao ver o pote de açúcar completamente vazio, pôs os olhos como pratos.

—Estão loucos? Acabei de enchê-lo...

—Então traz outro. —lhe ordenou Damián com tom áspero.

Jamie se afundou em seu assento, envergonhada, enquanto bebia um gole de café.

—Queria falar, pois falemos de uma vez.

—Quanto tempo leva comendo açúcar de uma maneira tão compulsiva, Jamie?

—Hoje é o primeiro dia, acredito. —ela era a primeira a estar surpreendida com seu comportamento.

—É a primeira vez que te passa?

Assentiu, baixando o olhar a seu café. Seu café puro, negro. Negro como tinha sido sua alma, quando teria sido capaz de fazer qualquer coisa de ruim contra Damián. Agora o desejo de vingança se evaporou, lhe deixando um horrível vazio.

—Por que veio, draicon? —sussurrou— Se vingar pelo que te fiz?

Acariciou-lhe uma mão com a ponta dos dedos, como se não pudesse suportar não tocá-la.

—Vim te salvar.

Duvidava-o. Ele queria muito mais. Podia senti-lo.

—Mas, dado que levantou o tema... por que tentou me matar? A maioria das mulheres não tentam matar seus amantes.

—Eu não sou como a maioria das mulheres.

—Há algo mais, verdade? O que é?

«Não confie em ninguém», recordou-se Jamie. Tinha que se esquivar da verdade.

—Mentiu-me, draicon. Ao menos, com os morph eu sabia o que esperar. Escuros, poderosos...

—Malvados.

—Mas não hipócritas. Segui-lhes o jogo. Pensei que você, depois do que fizemos aquela noite... Voltei o dia seguinte ao hotel e vi que tinha ido. Rompeu sua promessa de me ensinar a magia.

Damián tomou então as mãos entre as suas. Aquele simples contato resultava tão tranqüilizador... Jamie ficou olhando aqueles compridos e finos dedos. Mãos que, entretanto, tinham matado, esmigalhado...

—Deixei-te um recado, te dizendo que nos veríamos depois.

—Eu não vi nenhum recado. —se soltou.

—Você... seu irmão provavelmente o viu primeiro. Eu tinha que ir. Precisava me ocupar de um enorme problema que te ameaçava... Enviei Nicolás, meu melhor guerreiro, para que te localizasse e protegesse. Eu queria te ensinar a magia, mas esse outro assunto era mais urgente. E agora, responde minha pergunta: por que tentou me matar, Jamie?

—Por que me enganou? —replicou ela—Por que me contou toda essa história absurda a respeito de que eu estava destinada a ser sua companheira?

—Não é nenhuma história absurda. Você é minha draicara, a que me está destinada... Quão único isso tem de absurdo é que você é humana e eu um Alpha draicon. E não nos relacionamos com humanas. —acrescentou, sombrio.

—Eu sou humana, assim... por que teria que ser seu casal? Está bem, terminemos de uma vez. Lamento ter tentado te matar. Que passe bem.

Dispôs-se a levantar-se da mesa, mas ele impediu retendo sua cadeira com um pé e aproximando-a de novo. Jamie pôde ver seus potentes músculos delineando-se sob o tecido dos jeans. Estremeceu ao recordar aquelas musculosas pernas enredadas nas suas enquanto se afundava nela...

Quando voltou a elevar o olhar, viu que sorria levemente. De repente franziu o cenho enquanto lhe agarrava de novo a mão.

—Me diga, como te infectou Kane? Disse-te algo?

—Mordeu-me. Foi como uma dentada de homem lobo. E me disse algo em uma língua estranha.

Aquilo lhe doeu, muito. Estremeceu ao recordá-lo.

—Recitou um conjuro. Só a magia de um Alpha puro sangre pode lhe ajudar. —a olhou fixamente— Minha magia, Jamie.

—Assim se você me morder, isso rebaterá a infecção? Não, obrigado. Com uma dentada já estou satisfeita.

—Há outras maneiras. —murmurou— Muito mais agradáveis. Posso fazer que chegue a desfrutar muito.

O significado de suas palavras ficava mais que claro em seu olhar.

—Não, nunca mais. Não penso ter sexo contigo. Por certo, o que tivemos não foi mais que isso: sexo. Pura biologia. — tinha medo de olhá-lo, não queria ver em seus olhos um reflexo de seu próprio desejo.

—Não é certo. Entre nós sempre haverá muito mais que sexo, chére. Você sabe e eu também. É algo que nenhum dos dois pode ignorar. Mas te prometo que nunca mais voltarei a lhe deixar. — lhe acariciou o dorso da mão com o polegar— Como foi, Jamie? Em que momento a escuridão se abateu sobre você?

Em um impulso, Jamie entrelaçou os dedos com os seus. Damián pareceu surpreender-se: seu sorriso apagou de repente suas olheiras. Mas, com a mesma rapidez com que tinha aparecido, desapareceu. Quando Jamie voltou a elevar o olhar, só viu curiosidade e preocupação em seu olhar.

—Foi como cair em um poço negro, senti como o mal impregnava até o último poro de meu corpo. Não via nenhuma luz, nenhuma esperança. Só o eco de meus próprios gritos...

Damián lhe apertou os dedos, a mandíbula tensa.

—Querem algo mais?

A mal-humorada garçonete havia retornado. Parecia irritada, nervosa. Provavelmente estava a ponto de terminar seu turno.

—Olá? Perguntei se necessitarem algo mais.

Damián a fulminou com o olhar.

—Me traga a conta e nos deixe em paz.

A mulher deixou um papel sobre a mesa. Enquanto olhava suas mãos entrelaçadas, sua boca desenhou uma desaprovadora careta. Seus lábios se abriram, descobrindo... uns dentes afiados e amarelos, como os de um crocodilo.

Jamie piscou várias vezes, sobressaltada. Não, só eram uns dentes sujos de nicotina. A garçonete lhes lançou outro olhar de censura antes de retirar-se. O que lhe passava? Tremendo, retirou a mão, em um intento por dissimular sua reação. Afundou-a em um bolso e tirou um par de notas.

—Eu convido. Está ficando tarde. Tenho que voltar para casa. — mas tinha as pernas intumescidas, como de cortiça. —Por que me sinto assim? —exclamou em voz baixa, enquanto as esfregava.

—Eu sei por que. —olhou a seu redor e tomou uma mão—Jamie, quando Kane te mordeu, te transmitindo sua magia... envenenou-te ao mesmo tempo.

Olhou-o incrédula. Mas a expressão de Damián não podia ser mais séria. Seus lábios se converteram em uma fina linha.

—Ao te morder, infectou-te com um conjuro do Porfirio. Quanta mais magia usava, maior era a rapidez de seus efeitos. E o motivo de seu cansaço é... —suspirou— porque seu corpo está se convertendo em pedra. A ânsia de açúcar é o primeiro sintoma. Busca se carregar rapidamente de energia, mas os efeitos não duram.

Fez-se um denso silêncio. Até que Jamie soltou uma gargalhada.

—Mark me disse que era um mentiroso, mas nunca comentou que os draicon fossem tão amantes da fantasia.

Um brilho de fúria apareceu nos olhos de Damián.

—Seu irmão era o mentiroso. Sei que sofreu muito quando o perdeu... e que essa foi a razão pela que fugiu.

«Você o matou», quis gritar Jamie. Em troca, mordeu o lábio enquanto riscava um gancho de ferro com um dedo no açúcar que tinha ficado sobre a mesa.

—Se inteirou de como morreu?

—Sei como morreu. Ele não era quem você acreditava que era, Jamie. Quando chegar o momento, direi tudo o que queira saber. Sei que dói perder a um membro da família.

—Não tem nem idéia — sussurrou.

Uma sombra cruzou de repente pelo rosto de Damián.

—Sei mais do que você crê. — voltou a olhar a seu redor, esticando a mandíbula—Temos que ir. Agora. Posso senti-lo. Aqui não está a salvo. Precisa ir para casa e descansar.

Descansar: a idéia a atraía. Levantou-se da mesa.

—Acompanho você — Ele se ofereceu sorridente— Considere-me seu convidado.

Era um sorriso malicioso, carregada de promessas. Jamie imaginou seus corpos enredados sob os lençóis, arrebatados de paixão... «Para!», ordenou-se. Acelerou o passo, mas ele a alcançou.

—Não sabe o que é um hotel? Se não puder te permitir um, há um albergue para animais vagabundos...

—Você é minha companheira, Jamie. Pertence a minha manada. E os componentes de uma manada nunca se separam. Assim é como sobrevivemos. Eu jamais te abandonaria, assim vá se acostumando à idéia de me ter perto, por seu próprio bem.

Pegou-a pelo braço em um gesto galante, mas carregado de decisão. Estava apanhada; era sua prisioneira. Muito fatigada para resistir, seguiu-o. Dirigiam-se à praça Jackson, perto da catedral, quando se deteve em seco. Um cruel e desumano sorriso apareceu em seus lábios.

—Ah, acabo de ver um velho amigo. Me espere aqui —lhe ordenou enquanto a levava a um banco do parque.

Agradecida pela pausa, sentou-se. Viu que o draicon entrava em um portal, muito perto do outro onde a tinha beijado. A porta estava aberta. Era estranho, porque o edifício estava vazio e...

«Ao diabo», exclamou para si mesma. Ela não recebia ordens de ninguém. Levantou-se e entrou no portal. A parte debaixo estava vazia, abandonada, cheia de pó e de escombros. Em pé em um canto, Damián parecia ter encurralado a um homem mais velho, vestido com uma camisa de manga curta e bermuda caqui. Reconheceu-o em seguida. Era o vendedor que às vezes montava seu posto perto do Café du Pode: vendia fruto do mar fresco e se evaporava sempre que aparecia a polícia.

O pobre homem ganhava dessa forma a vida desde que perdeu seu barco de pesca durante o furacão Katrina. De repente Jamie ficou sem fôlego.

Damián o estava agarrando pelo pescoço e o sacudia como se fosse um boneco de trapo. O homem soltou um gemido. Mas a surpresa de Jamie foi ainda maior quando Damián tirou uma adaga da manga e a cravou no seu peito.

Ato seguido lançou-o ao outro extremo da habitação. O homem golpeou a cabeça contra a parede com um ruído seco, estremeceu... e caiu, morto.

Jamie não chegou a gritar. Mal soltou um gemido estrangulado antes que Damián se voltasse, descobrisse-a e corresse a seu lado. Embalou-lhe o rosto entre as mãos, escrutinando seu rosto.

—Ah, Jamie... teria dado qualquer coisa para que não tivesse visto isto.

—T-você... mataste-o —sussurrou.

—Olhe.

Ante seus olhos, o cadáver do vendedor se converteu em um montão de cinzas. Cinzas escuras.

—Não era humano. Era um morph, disfarçado.

—Mas eu o conhecia! Faz um ano pelo menos, estava acostumada a comprar fruto do mar, vive em... —interrompeu-se, estremecida.

—Os morpb o mataram, e um deles adotou sua forma humana. Este é o segundo que matei hoje. Acredito que a cidade está cheia deles, Jamie. Inclusive conhecidos teus podem ser morpb disfarçados.

Tomando-a pelo braço, guiou-a fora do edifício. De caminho a sua casa, Jamie sentia os pés tão pesados que tinha a sensação de estar andando por um espesso lodaçal.

Chegaram por fim. Abriu a grade e ele entrou atrás; em seguida lhe tirou a chave e se encarregou de fechar. Exausta, Jamie se dirigiu ao jardim e se deixou cair em uma das velhas cadeiras de balanço.

Damián a seguiu até ali. Olhando a seu redor, apoiou uma mão na parede de tijolo.

—É uma boa casa — comentou com expressão aprovadora —Uma casa segura.

Jamie levantou da cadeira.

—Busca você mesmo um lugar onde dormir. É um draicon, assim que se arrumará sem problemas no chão. Ah, e não uive à lua. Despertará aos vizinhos.

—Que os lobos uivam para a lua é um conto da carochinha. Apenas uivo quando quero sexo. Portanto, não se assuste se você ouvir-me no meio da noite ...

Sobressaltada, voltou-se para olhá-lo. Damián sorria com expressão sedutora.

—Uiva tudo o que queira, draicon. Terá que me forçar se quer voltar a se deitar comigo.

—Não te forçarei, fique tranquila. Você mesma virá para mim. E muito em breve.

«Sim, e os lobos voam», pensou Jamie, irônica. Damián a seguiu escada acima, mas ela o ignorou. Meteu-se no dormitório e fechou com chave antes de derrubar-se na cama de dossel. Abraçada a um travesseiro, ficou olhando o teto amarelado. Pelas portas abertas do balcão entrava uma brisa fresca. Ao contrário de Mark, ela sempre tinha odiado aquela habitação por seu fantasmal silencio.

Sentia seu corpo como se fosse de chumbo. Estaria se convertendo realmente em pedra? «É um truque que utilizou para ganhar sua confiança. Para poder deitar-se contigo», disse-se. Não podia chorar. Não o permitia a si mesma. Já nem se lembrava da última vez que o tinha feito.

Não era verdade: tinha chorado desconsoladamente o dia em que morreram seus pais. Após não havia tornado a chorar, apesar de tudo o que tinha passado. Duvidava que fosse capaz de fazê-lo alguma vez.

Leves sons apenas audíveis para os humanos alertaram Damián. Deteve-se frente à porta de Jamie. Esperou, imóvel, lutando contra o instinto que o impulsionava a entrar e abraçá-la... Sabia que lhe arrancaria a cabeça se lhe ocorria fazê-lo.

Estava gemendo em sonhos.

Forçou a fechadura e entrou. Acendeu o pequeno abajur Tiffany que havia a um lado. A suave luz amarela descobriu uma habitação de cor salmão, cheia de móveis antigos, austeros. Muito severo para Jamie.

Aproximando-se da grande cama de dossel, olhou-a atentamente. Estava dormindo, encolhida, toda despenteada. Não havia rastro de lágrimas em seu rosto. Respirava pesadamente, como se algo lhe oprimisse o peito.

Admirou uma vez mais seus delicados traços, o gracioso queixo, as pestanas impossivelmente compridas, a cútis quase translúcida, como de alabastro, as altas maçãs do rosto, a boca de lábios cheios. Parecia tão jovem... Tinha visto brilhar a tristeza naqueles expressivos olhos cinzas. Por muito que tentasse dissimular seus sentimentos, os olhos sempre acabavam traindo-a.

Viu a si mesmo no espelho do armário, o arrogante e poderoso draicon que tinha tido tanto que lhe oferecer, mas que em lugar disso tinha lhe tirado tudo. Muito mais que sua inocência, ou sua virgindade. Tinha-lhe roubado seus sonhos de magia e de poder. E, ao fazê-lo, tinha-a entregue às forças do escuro.

Sentiu uma pontada de arrependimento. Emendaria seus enganos, mas antes teria que ganhar sua confiança. Por fortuna não tinha perdido nem seu espírito nem sua coragem, duas qualidades que ia necessitar.

Aquela casa era a mais segura para Jamie. Damián havia sentido seu antigo e sólido poder. Algum tempo atrás, alguém a tinha protegido contra a magia escura. Qualquer um que desejasse atacar Jamie teria que tirá-la antes daquele edifício.

A cama se afundou sob seu peso. Só queria abraçá-la, tocá-la embora não fosse mais que um momento. O instinto o empurrava a possuí-la. Como Alpha puro sangue que era, Damián somente podia aparear-se e procriar com Jamie. Necessitava-a para sua manada do Novo México, a seu lado.

Mas se sobrepôs ao desejo enquanto retirava meigamente um cacho de seu pálido rosto. Tinha a pele gelada. Acariciou-lhe a testa. A salvaria a qualquer preço. Era sua.

Estendendo-se a seu lado, agasalhou-a com seu corpo. Passou-lhe um braço pela cintura. Sem despertar, Jamie se apertou contra ele.

Embebeu-se da sensação de seu delicado corpo contra o seu. Sua incipiente ereção lhe recordava o incessante desejo que o torturava, mas se conteve. Era tão pequena e delicada... e no entanto vez dura e resistente. Apesar de estar infectada pela magia escura, ainda conservava toda sua inocência.

Voltou a ouvi-la gemer. Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Emocionado, Damián a enxugou com um beijo. Esperou um sabor salgado, mas não foi assim. A lágrima era doce como o açúcar. Incorporou-se, apavorado.

—Já está acontecendo —murmurou— Que diabos vou fazer?

«Não te deixarei morrer. Não permitirei que morra, como morreu minha família. Farei o que seja para te salvar».

Levantou-se da cama e abandonou sigilosamente o quarto. Pela primeira vez pensou que possivelmente já fosse muito tarde. Se não pudesse encontrar o livro, aperderia para sempre.

Damián necessitava respostas. Seu amigo de infância e irmão adotivo, Raphael Robichaux, poderia ajudá-lo. Pegou o celular.

Estava para marcar seu número quando se deteve no último momento. Ia chamar pedindo ajuda... Uma ajuda que sua família jamais chegou a receber dele. «Oh, merde, outra vez não». Mas as lembranças voltaram, em uma maré esmagadora. Soltou o telefone, que caiu sobre o sofá.

Tinha doze anos e se empenhou em caçar no igarapé. Seu pai lhe tinha ordenado que ficasse em casa. Sair não era seguro. Os morph estavam à espreita.

Mas Damián não tinha medo. Annie lhe tinha suplicado que ficasse:

—Tenho medo, Damián. Por favor, não me deixe!

Tranqüilizou sua irmã pequena enquanto a agasalhava carinhoso, ao lado de seu bichinho de pelúcia favorito. Mas logo escapou ao igarapé. Sentia-se poderoso. Draicon. Caçador. E invencível.

Pouco depois ouviu os gritos. Os morph tinham irrompido na mansão. Cheio de medo e dor, correu de novo à casa. Chamou as portas de seus vizinhos, mas todos ignoraram seus gritos de ajuda. Tinha o aroma da morte pego ao nariz antes inclusive de entrar. A porta estava aberta. Seu pai jazia no chão, envolvendo com gesto protetor o corpo de sua esposa grávida. Seus irmãos, também mortos. Annie. Onde estava Annie?

Encontrou-a escondida atrás da cama. Abraçada ainda a seu cachorro de pelúcia, todo salpicado de sangue. O horror e a dor nublavam seu olhar vidrado. Tinha só quatro anos. Sustentou seu corpinho contra seu peito, embalando-a e lhe cantando sua canção de ninar favorita... até que encontrou a força necessária para enterrar os cadáveres, na metade da noite.

Fechando com força os punhos, obrigou-se a voltar para a realidade. Nunca mais voltaria a violar uma regra ou a abandonar a aqueles que estavam sob seu amparo.

O passado era o passado. Agora tinha uma família adotiva ali, na Luisiana, e no Novo México o esperava a manada que comandava. E muito em breve também teria consigo a sua companheira.

Justo naquele momento soou a campainha da porta. Voltou a guardar o celular e baixou as escadas. Através do olho mágico, viu uma mulher pequena e magra, pele amarelada.

—Sou Mama Renee, a amiga de Jamie que tem a loja de vodu desta rua —se apresentou— E você é Damián.

Surpreso, apertou os olhos.

—É vidente?

—Pois claro. Posso entrar? Tenho algo para Jamie.

A mulher parecia inofensiva. Mesmo assim, recordando seu encontro com o vendedor de fruto do mar, ficou olhando receoso.

—Não me reconhece, verdade? É normal, só tinha uns cinco anos — Eu sim que me lembro. Seu pai, André, estava muito orgulhoso de você. Chamava-te loup petit.

Aquilo lhe surpreendeu. Inalou, aspirando seu aroma. Não advertiu nada estranho, além de uma leve fragrância a perfume.

—Minha família não se relacionava com muita gente.

—Sim, só confiavam em uns poucos. Vai deixar-me entrar? Preciso ver Jamie.

Damián se colocou de lado. Mas voltou a suspeitar enquanto fechava a porta com chave e se apoiava nela.

—O que é que quer?

—Trouxe-lhe algo para que se sinta melhor.

Tirou um pequeno saquinho de tecido de um bolso do vestido. Damián reconheceu o aroma a ervas e especiarias. Um talismã. Os morph detestavam os talismãs da sorte. Mesmo assim...

—Para você todo mundo é inimigo. Não confia em mim, o qual está bem. Mostra-se muito protetor com ela. Está em graves problemas, mais oui?

Damián não disse nada. Retirando-se à cozinha, marcou o número de Raphael. Seu irmão adotivo respondeu à primeira chamada. Em francês, Damián lhe contou sucintamente o que tinha ocorrido desde sua chegada.

—Conhece uma vidente chamada Mama Renee? —perguntou-lhe.

—Tem uma loja vodu na cidade. É boa gente. Por que?

—Está aqui. Agora não posso deixar Jamie sozinha, mas preciso falar contigo. Em privado, para que ela não possa nos ouvir — sussurrou enquanto voltava para a sala.

—Se precisa partir, eu posso ficar com ela — se ofereceu Renee.

Com seu singelo vestido de flores e seu bonachão sorriso, a mulher parecia perfeitamente inofensiva. Era uma humana, certamente. Mas até os humanos podiam ser perigosos.

—Quer que vá ai? —perguntou-lhe Raphael.

—Espera um momento — pediu Damián.

A mulher lhe sustentava o olhar, teimosa.

—Eu te vi nascer.

—Não acredito — replicou secamente.

—Digo-te que sim —insistiu. De repente desviou o olhar... e ante os assombrados olhos de Damián, metamorfoseou-se em lobo.

—Mon Dieu... —murmurou, vendo como voltava a converter-se em humana— É minha família, non?

—E ainda há mais que não conhece —explicou. Uma expressão de tristeza cruzou por seu rosto— Meu marido e meu filho... ambos abraçaram a escuridão. Seus pais me acolheram. Sempre lhes estarei agradecida por isso. E lamentei muitíssimo o que lhes ocorreu. Por favor, me permita que te ajude.

Damián a escutava atento, evaporadas todas suas suspeitas. A mulher lhe pôs uma mão no braço.

—Pode ficar tranqüilo. Eu cuidarei dela.

—Obrigado — lhe disse, antes de continuar falando por telefone com Raphael— Preciso te ver. Onde?

Raphael nomeou um lugar. Segundos depois Damián desligava e voltava a guardar o telefone.

—Não deixe entrar ninguém. Quando Jamie despertar, que não abandone a casa.

—Vá com seu amigo. Tome cuidado. Uma onda de escuridão se abateu sobre a cidade.

Embora confiava em muito pouca gente além de sua manada e sua família adotiva, Damián se despediu da mulher com um abraço.

Seu irmão estava sentado em uma das primeiras mesas do café da rua Charles, justo ao lado da entrada. Sua Harley esperava na rua, toda reluzente.

—Damián, como está? Eu mal te reconheci sem o seu terno Versace.

—Eu tento passar despercebido.

—Você passa despercebido como um lobo em um galinheiro.

Raphael acenou para uma garçonete se aproximar. Pediu caranguejo e água com limão.

—Eu só água - disse Damián, pensando com desgosto no caranguejo-metamorfo. — Me alegro em te ver, Raphael.

O olhou de cima abaixo. Seu irmão adotivo tinha uma longa cabeleira castanho-escura com uma mecha branca que caía sobre a testa. Ele estava vestindo camisa preta, calça jeans desbotada e jaqueta de couro preta. A sombra de uma barba escura no queixo. Na orelha esquerda usava um pingente com a figura de uma pequena espada de ouro.

—Tão grave é a situação? —perguntou Damián sério—Quantos são?

—Muito grave. Há morpb em toda a parte. É difícil estimar o número. Talvez cinqüenta ou mais de cem.

— Dit moula vérité! Você está falando sério? A que vieram?

—Acreditamos que pelo Oculto Livro de Magia. Esteve oculto durante setenta anos, verdade? Se não se lançar um novo feitiço nas duas próximas semanas, todos os feitiços se desvanecerão. Incluso os maléficos que querem os morpb, para aumentar seu poder.

E o feitiço que poderia curar Jamie se desvaneceria também. Damián estremeceu só de pensar.

—Se apoderarem-se antes do livro...

—Usarão toda sua magia para aniquilar aos draicon. Sua missão nesta cidade não é outra que matar. E já sabe o que fazem com as pessoas que matam... estão se cevando com os indigentes, com as pessoas sem lar. Eu treinei meus meninos para que os localizem e destruam seus corpos antes que apareça a polícia. Não podemos nos arriscar que os policiais coloquem os narizes em nosso mundo. É nossa guerra.

—Canalhas...

—Não se inquiete, t'frére, eu já me encarreguei de uns quantos. Alguém se atreveu a me chamar «cão». Tive que lhe mostrar a folha da minha adaga —esboçou um cruel sorriso.

Raphael era o kallan, o único draicon que podia matar a um congênere, inclusive a um familiar, sem sofrer conseqüência alguma. Já tinha morrido e passado ao Outro Mundo, no qual tinha recebido o dom da imortalidade. Poucas coisas lhe assustavam.

Seu caranguejo chegou nesse momento. Atacou-o com vontade.

—Meu pai não me disse onde o escondeu — disse Damián— Só que tinha confiado o segredo a um bom amigo dele, até que eu fosse mais velho.

—O que aconteceu com esse amigo de seu pai?

—Os morph mataram Jordán quando acabaram com toda a família de papai. — ficou olhando uma gota de água que escorregava lentamente pela borda de seu copo, como uma lágrima— E a cura de Jamie está no livro.

—Isso, falemos dela. Estivemos investigando-a. Seus pais e amigos morreram em um acidente de avião, quando ela tinha cinco anos. Foram seus tios que a educaram. Diabos, inclusive rastreamos a esse canalha de morph que usurpou o corpo de seu irmão. Como ela é?

—Tentou me matar.

Raphael ficou olhando assombrado. Damián procedeu a explicar-se.

—Como diabos pode confiar em uma mulher assim? —Exclamou, dando um tapa na mesa que fez tremer pratos e copos— Merece um castigo —levou uma mão a sua adaga, que levava sempre ao cinto— Recorda nosso voto? Você é meu irmão de sangue.

—E ela é minha companheira — replicou com tom suave.

—Então, t'frére, tem um bom problema. Se não te emparelhar com ela, converterar-se em uma fera. Mas como pode te emparelhar com alguém que deseja sua morte?

Damián se recostou em sua cadeira, inquieto. Aquela draicara alvoroçava sua testosterona, punha constantemente a prova sua força de vontade. Nos Alpha como ele, o emparelhamento era obrigatório; caso contrário, os machos se voltavam feras perigosas inclusive para sua própria manada.

Desejou-a uma vez mais: seu aroma, o sabor de sua pele, o tato de seu corpo nu e suave sob o seu. Não podia livrar-se de seu próprio desejo.

—Tranqüilo, Rafe. Eu me encarregarei dela.

—Pois então faz rápido. Parece que lhe está acabando o tempo. O sexo pode atrasar os efeitos de cunja no Porfirio. Isso se confiar em que não te cravará uma faca nas costas enquanto se emparelha com ela... —apertou a mandíbula.

Sim, o sexo podia ser uma solução. As células de um draicon, como a do sangue e o sêmen, continham magia. Como Alpha puro sangue que era, sua magia era mais potente que a de outros machos.

—Poderia curar Jamie lhe inoculando minha magia enquanto fazemos amor?

—Não. Seu sangue ou seu sêmen só conseguiriam atrasar o resultado final.

—Tenho que encontrar o livro — Damián passou uma mão pela cara— Mas não posso deixá-la sozinha. É muito arriscado.

—Então me deixe te ajudar. Enviarei Adam e Ricky. Eles se encarregarão de vigiá-la.

—Não consentirei que nenhum outro macho se aproxime dela — grunhiu Damián, cravando as unhas, que se tinham convertido em garras, em seu guardanapo. O instinto o impulsionava a atacar, a despedaçar a qualquer congênere que se atrevesse sequer a olhá-la...

—Damián, se tranqüilize...

Acabou de destroçar o guardanapo. Enquanto se esforçava por tranqüilizar-se, suas unhas voltaram a adquirir seu aspecto normal.

A cautelosa expressão de Raphael disse tudo. Seguiu comendo, em silêncio.

—Me diga... realmente está morrendo?

Damián explicou, e essa vez seu irmão adotivo já não pôde conter-se.

—Escuta, irmão, meus homens estão a sua disposição. Leve Adam e Ricky, são dois de meus melhores guerreiros. Ou a qualquer de meus homens, tenho vinte, asseguro-te que são bons lutadores. Faria qualquer coisa para te ajudar, t'frére.

Raphael tinha tomado a seu encargo jovens draicon não aparentados entre si, tinha-lhes inculcado um férreo sentido de disciplina e com eles tinha formado uma manada para lutar contra os morph.

—Merci, mas não posso me arriscar: uma manada deixa muitas pistas. Você faz seu trabalho. Matem todos os morph que possam.

—Como queira, Damián. Mas essa tal Jamie... Espero para seu bem que não volte a te atacar. É da família, t'frére.

—Isso é meu assunto, Rafe.

—O que posso fazer então por você?

—Estar disponível. Pode ser que necessite ajuda. Para recolher minhas coisas no hotel, por exemplo — um sorriso se desenhou em seus lábios— Quero me instalar em sua casa.

—Bem. Vemo-nos então.

Despediram-se. Damián partiu. Suas prioridades estavam claras: ganhar a confiança de Jamie e encontrar o livro.

Pensou que possivelmente teria fome. Fruta fresca: a frutose natural a ajudaria. Deteve-se em uma loja e comprou pêssegos. Voltou para sua casa e subiu as escadas com a bolsa. Jamie estava sentada no sofá, teclando em um notbook.

Quase deixou cair a bolsa ao chão quando viu as cômicas orelhas de elfo que levava postas, largas e de cor vermelha. Jamie só levantou a vista quando viu os pêssegos que acabava de deixar sobre a mesa.

Olhando-a com expressão inquisitiva, Damián se sentou a seu lado e puxou brandamente uma das orelhas de elfo, brincalhão.

—Sou uma guerreira elfa —explicou, bocejando— Estou muito cansada para pôr o resto do disfarce. Me disfarçar de algo sempre me levantou a moral. E Celyndra, a elfa, é meu personagem favorito. É uma grande lutadora.

—Ah, seu alter ego... —murmurou— Que imaginação. De onde tirou a idéia?

—Ouviu falar do WoW?

—Não,

—World of Warcraft. É um jogo muito conhecido. Meu personagem é a guerreira elfa da noite. Estava acostumada a jogar com meus amigos —sorriu— E também nos disfarçávamos. Alguma vez jogou isso?

—Não.

—Que estranho. Não parece tão velho. Que idade tem?

—Oitenta.

—Oitenta anos! Parece que tem vinte e poucos... Não é de estranhar que não conheça o WoW. É um jogo online. Escolhe um personagem e luta com ele. Bom, é algo mais complicado, mas...

—Batalhas? —Damián apertou os olhos— Você sabia como lutar e organizar um exército... Essa habilidade que ensinou aos morpb... aprendeu-a em um jogo?

—Algumas coisas, sim. Mas isso não é nada comparado com o que sabem algumas pessoas que conheço. Ex-fuzileiros navais, pessoas do exército. Minhas amizades.

A manada de Raphael tinha investigado todas suas amizades de Nova Orleans. Jamie tinha poucos amigos. De repente se encheu de uma terrível suspeita.

—Onde conheceu esses tipos?

—Na rede. No MyPlace.

Olhou-a alarmado. Jamie estava envolta em um mundo cheio de perigos dos que ele nada sabia.

—Tem uma página no MyPlace?

Baixou o olhar a seu notbook. O tirou rapidamente das mãos e começou a navegar. Encontrou sua página. Jamie Walsh, em letras azul lavanda, com um fundo de preciosas ilustrações de fadas. Leu os detalhes pessoais: era aficionada às novelas de fantasia, a música alternativa, desenhava páginas Web e se descrevia como uma «friqui» da informática. Gostava de conhecer «gente com magia, porque necessito magia em minha vida». Por último, revisou a lista de amigos. Os primeiros eram antigos militares. Mas... jogou uma olhada às últimas amizades que tinha feito. Nomeie como Wolfeater, Draiconheater... Todos morph.

—Com isto está se convertendo em um alvo fácil.

—O que diz? É minha página. São meus amigos.

—Amigos? Irão em sua ajuda se os necessitar? Estes canalhas não, certamente. Eles lhe utilizaram, Jamie. Você não necessita amigos. É minha companheira e tem uma manada, minha manada. E uma família também, que sempre estará a seu lado. Apague— ordenou, assinalando a página.

—Não. E eu não necessito da sua manada. Vá ao diabo — lhe espetou, desafiante.

Damián partiu então o notbook em dois com um só movimento. Jamie ficou olhando assombrada, estupefata.

—Não voltará a fazê-lo. Seus inimigos, e meus, estavam nessa página. Quem crê que te infectou com esse feitiço? Está se convertendo em pedra, Jamie.

—Kane não pôde ter sido quem... Não tinha nenhuma razão para fazê-lo — protestou com voz tremente.

—Você é minha draicara, minha companheira. Essa já é razão suficiente. Kane te manipulou para que tentasse me matar. E ao mesmo tempo te enfeitiçou para te eliminar lentamente.

—O único que queria era aprender magia... —defendeu-se, abatida— É algo que quis sempre, durante toda minha vida. Isso é tão errado?

Damián tomou delicadamente seu queixo.

—Então olhe, pequena. Olhe e aprende. Eu te ensinarei magia. Magia boa. Branca.

Soltando-a, com um gesto de sua mão fez aparecer uma bola de luz esbranquiçada. A luz dançou no ar enquanto Damián lhe dava forma com os dedos. Jamie a contemplava admirada, sem fôlego. Um lento sorriso se desenhou em seus lábios.

Damián teria dado qualquer coisa para vê-la assim sempre: feliz, despreocupada.

Jamie se inclinou para diante para examinar de perto a bola de luz. Sobressaltada e maravilhada, atreveu-se a tocá-la com um dedo. De repente a luz se agitou, tornou-se cinza, e logo negra. Ante seu assombrado olhar, foi encolhendo até desaparecer.

—Oh! Oh... matei-a.

Tremiam-lhe os lábios. Aproximando-se dela, Damián tomou uma mão. Tinha-a fria como o gelo.

—Não é você. É o que há dentro de você — murmurou com tom suave— Quando desaparecer a magia escura, a luz já não se apagará quando a tocar.

—Oxalá pudesse te acreditar... —um trêmulo sorriso apareceu em seus lábios.

«Isso, oxalá», pensou Damián enquanto lhe oferecia um pêssego.

—Come. Necessita de força. — olhou ao redor, franzindo o cenho— Quando partiu Renee? Disse-lhe que ficasse com você.

—Disse-me que tinha que voltar para a loja — aceitou a fruta— Obrigada. Tenho tanta fome...

Sua expressão se animou. Damián teve que lutar contra a tentação de beijá-la de novo.

—Sabe por que tinha que voltar para a loja?

Jamie se dirigiu à cozinha.

—E você me pergunta isso? —replicou— Me disse que você a tinha chamado para lhe pedir que me trouxesse outro amuleto.

Damián ficou absolutamente imóvel, o pêlo da nuca arrepiado.

—Já volto. Não se mova daqui.

Preso em uma horrível suspeita, abandonou correndo a casa.

A porta da loja vodu estava entreaberta. Entrou sigilosamente. O aroma o golpeou com a força de um furacão. A sangue. A morte. Misturado com um leve aroma de madressilva.

Um gato negro saiu a recebê-lo, miando lastimosamente. Damián atravessou a habitação, dirigiu-se ao quarto e se deteve. A angústia o corroia como um ácido.

—Oh, maldição... sinto muito, sinto muito...

Mama Renee estava caída em um canto, com os olhos abertos em uma expressão de terror. O vestido e as paredes estavam salpicadas de sangue. Alguém lhe tinha arrancado o coração. Morpb.

Fechou os olhos, doente de raiva e dor. Renee tinha sido seu último vínculo com seus pais. Quanta gente mais devia morrer? Seus pais, seus irmãos, sua irmã. Membros de sua manada, lá no Novo México.

Se recompôs. Já haveria tempo para a dor. O aroma de sangue lhe dava arcadas. Murmurou uma antiga oração draicon pela alma de Renee. Logo se aproximou do altar de Marie Laveau, a sacerdotisa vodu. A escuridão tinha apagado as velas.

A polícia não demoraria para aparecer, começaria a investigar. Damián não podia arriscar-se que descobrissem seu mundo. Necessitava um motivo que explicasse o assassinato. Um crime hediondo, um roubo. Tirou todo o dinheiro da caixa registradora e o guardou nos bolsos, com a idéia de queimá-lo depois. Deixou a gaveta aberta, logo procurou uma caneta e escreveu na parede mais próxima: "Adoradores do diabo."

O gato começou a miar mais alto. Parecia um animal normal, não um morpb. Levantando-o, estudou-o atentamente.

—Já usou uma de suas sete vidas. Vamos te pôr a salvo.

Com o gato nos braços, olhou a seu redor. Bastou um simples gesto de sua mão para que todos os seus rastros fossem apagados. O problema era que mesmo assim possivelmente a polícia interrogasse Jamie e...

Jamie. Tinha-a deixado sozinha. Apavorado, pôs-se a correr rua abaixo. Abriu a grade, soltou o gato e subiu os degraus de dois em dois.

Estava sentada no sofá. Damián quase desmaiou de alivio ao vê-la. Mas logo a examinou de perto. Com um gesto de horror, estava olhando sua mão. Ao vê-lo, mostrou-lhe a palma. Tremia violentamente.

—Olhe, Damián. O que me passa? Não posso sangrar. Não posso sangrar!

Sobre a mesa havia uma faca e rodelas de fruta. Devia ter se cortado acidentalmente. Cheirava a pêssego no ar, mas não a sangue.

Tomou sua mão e examinou a ferida. Dela, em vez de sangue, emanava lentamente um pó cinza.

Estava se transformando em pedra ante seus olhos horrorizados.

«Estou morrendo», pensou Jamie. Tudo isso não podia estar ocorrendo. Não era real. Não podia sê-lo.

—Não me deixe morrer...

Era seu castigo. Ao tentar matar Damián, condenou a si mesma. Não sentia dor: só aquela lenta e progressiva letargia, como se seus membros estivessem convertendo-se em pedra. Queria sentir algo, o que fosse, e não aquela horrível consumição, como se já estivesse morta.

Damián sentou a seu lado no sofá e enfaixou a ferida. Logo a estreitou contra seu peito. Murmurando algo que não chegou a entender, afastou-lhe os cabelos do pescoço.

Jamie apenas teve tempo de ver suas largas presas aproximando-se de sua pele. Mordeu-a.

Sentiu uma pontada de dor. Seu grito foi seguido por um som estranho: aquele que fez a sua língua quando ele lambeu lentamente, eroticamente a ferida. Exausta, ela caiu no sofá como uma boneca de pano.

«Maldito seja, draicon. Já estava morrendo», pensou antes que tudo se voltasse escuro.

Não devia morrer. Não suportaria vê-la morrer, perdê-la como tinha perdido a sua família. Tinha atuado por instinto, mas sabendo que com sua dentada lhe transmitiria sua magia, a magia branca. Sabendo que isso poderia salvá-la.

Sustentou-a delicadamente em seus braços. Sua palidez já não era tão acentuada. Tocou-lhe a testa: estava fria, mas não gelada. Esperou durante uns segundos, terrivelmente preocupado, antes de lhe revisar a ferida. Havia tornado a emanar sangue.

Quase desmaiou de puro alívio. Lambeu-lhe as marcas das presas com sua saliva curativa. Logo foi procurar uma manta e a agasalhou com cuidado. Continuando, tirou seu celular e chamou seu irmão para explicar-lhe tudo.

Raphael chegou carregado com um saco com os pertences de Damián, que tinha tirado de seu hotel, e uma bolsa de papel marrom. O primeiro que fez foi examinar Jamie, tomando um pulso.

—O feitiço começa a trabalhar de dentro e se distribui pelas extremidades. Por último, afeta os órgãos vitais, obstruindo a passagem do sangue. Cabelo e unhas tendem a ficar cinza antes dessa hora chegar. Mon Dieu, eu nunca tinha visto um processo tão rápido. Quando a morderam?

—Kane a infectou faz um mês e meio. Por que está se estendendo tão rápido? É humana e não deveria lhe afetar tanto.

Raphael franziu o cenho enquanto lhe soltava a mão.

—Humana. Ela é sua draicara. Nenhum Alpha draicon teve uma companheira humana. Possivelmente não seja.

Consternado, Damián se deixou cair no sofá.

—Por agora, teremos que supor que o é. Que mais posso fazer por ela?

Raphael deixou a bolsa de papel sobre a mesa da cozinha.

—Chamei o Paw Paw e lhe pedi a receita de uma poção. Isso a ajudará por um tempo.

—Isso espero. Agora necessito que se encarregue de um corpo. Mama Renee, da loja vodu. Os morpb a mataram.

—Renee? — exclamou, pálido.

Baixou correndo as escadas. Quando voltou, tinha uma expressão triste, abatida.

—Muito tarde. Há gente diante da loja. Encontraram-na.

Damián experimentou uma pontada de preocupação, mas se sobrepôs para concentrar-se em Jamie. Ela estava em primeiro lugar.

Alguém lhe aproximou uma taça aos lábios.

—Bebe —lhe ordenou uma voz grave e profunda— Isto te ajudará Jamie.

Aturdida, abriu a boca e obedeceu. O líquido tinha sabor de cobre e a sal. Abriu os olhos: era de cor vermelha.

—Outra vez—insistiu a voz.

Jamie negou com a cabeça, mas de repente sentiu que recuperava a energia.

—O que é isto?

—Uma poção mágica de ervas e especiarias que te fará bem.

Sua mente processou a informação. Uma poção que a ajudava. Um feroz desejo de viver surgiu à superfície.

Damián voltou a lhe aproximar a xícara. Jamie tomou com suas mãos e bebeu, resistindo as arcadas. Logo se sentou lentamente e olhou o corte da mão. Já estava curado.

Lendo sua pergunta nos olhos, Damián assentiu com a cabeça.

—Volta a sangrar, Jamie. Mordi-te para te transmitir minha magia, mas o efeito não é permanente.

—Quanto durará? —inquiriu, estremecida.

—Sem mais magia, uma semana possivelmente, talvez algo mais. Não estou seguro. Não tenho experiência com essas coisas — lhe acariciou a mão ferida— Como se sente?

Mais forte. Muito melhor. Mas perplexa também.

—Por que o fez?

—Chére, não entende? —apertou-lhe a mão— Quero te salvar.

—Por que? Eu tentei te matar. Eu não sou o tipo de companheira que você quer.

—O que eu queira ou deixe de querer nada tem que ver nisto. Chama-o biologia. Ou lei da manada. Eu te necessito e você me necessita —lhe acariciou brandamente a palma.

Jamie amaldiçoou para si mesma. Aquilo era tão desconcertante... Sua terminante declaração contrastava com a terna carícia de seus dedos em sua pele fria. Não queria morrer.

«Tenho que sobreviver», pensava. «E se ele for o meio, então me resignarei».

—Preciso ver mama Renee. Ela sabe muito de poções. Estou certa que terá respostas que me dar.

Damián cruzou um olhar com a outra pessoa que se achava na habitação, em pé na soleira. Era um homem de juba escura com uma mecha completamente branca que lhe caía sobre a testa. Um pouco mais alto que Damián, era muito bonito e vestia um traje de motoqueiro. Jamie acreditou reconhecê-lo vagamente. Tinha-o visto antes.

—Quem é você?

Damián o apresentou como seu irmão. E as lembranças devoraram Jamie como uma praga de formigas furiosas. Era um dos draicon que se uniram a Damián para matar Mark. Que tinham despedaçado seu irmão enquanto ele gritava e gritava...

—Outro draicon? Quantos cães há nesta cidade?

Raphael apertou os dentes.

—Damián, estou indo. Se necessitar, me chame —e partiu dando uma portada.

Jamie deixou a xícara sobre a mesa e se levantou do sofá, contente de que as pernas lhe funcionassem bem.

—Aonde vai? —perguntou-lhe Damián.

—Com Mama Renee, aqui ao lado. Possivelmente ela possa...

Damián se levantou então e a puxou pelos ombros.

—Fique aqui, Jamie. Há algo que deve saber...

Através do tecido da camiseta, sentiu o calor de suas mãos. Jamie resistiu ao impulso de apoiar-se nele e absorver sua força. Tinha transcorrido tanto tempo da última vez que se apoiou em alguém...

De repente soou a campainha da porta. Liberando-se, Jamie desceu as escadas. Damián a seguiu de perto. O visitante era um homem de expressão cansada, vestido com um enrugado traje escuro.

—Sou o inspetor Robert Ryan. Conhece você à mulher que vive a poucas portas mais abaixo, a senhora Renee St. Clair?

—Sim, é uma boa amiga minha.

—Sinto ter que lhe dizer isto, mas... acredito que a senhora St. Clair foi assassinada.

Encolheu-se sobre si, com o coração pulsando a toda velocidade.

—Possivelmente se trate de um engano...

—Sabe se tinha algum parente na cidade?

—Não. Sua filha vive na Califórnia. Seu filho faleceu em um acidente de carro, faz tempo.

—Poderia nos acompanhar para reconhecer o corpo, senhorita Walsh?

Jamie assentiu. Damián tomou então seu braço e lançou um áspero olhar ao inspetor de polícia.

—Faça o favor de esperá-la fora. Só será um momento — disse, e fechou a porta para que o policial não pudesse ouvi-los— Renee não esteve aqui contigo, entendido? Do contrário, converterá-te em uma suspeita.

Voltou a assentir, com o coração encolhido. Abandonaram a casa, seguindo o inspetor. Vários carros de polícia se alinhavam na estreita rua. O perímetro da calçada estava bloqueado com a faixa amarela. O clássico cenário de crime que tinha visto centenas de vezes no cinema ou na televisão.

Só que essa vez era real. A primeira vista, o interior da familiar loja de vodu lhe pareceu perfeitamente normal, apesar do intenso aroma acre, como de cobre. Aroma de sangue e a violência. Havia policiais por toda parte, recolhendo rastros e tirando fotos.

—Está no fundo —a informou o inspetor enquanto se dirigia ao quarto. No chão havia um lençol de plástico amarelo— Pronta?

Jamie assentiu com a cabeça, suspirando. Mal sentia o contato das fortes mãos de Damián em seus ombros. O policial retirou o lençol.

Reconhecia e não reconhecia aquele rosto. A boca tinha ficado aberta em um silencioso grito, com um olhar de horror em seus olhos frágeis. Um gemido estrangulado lhe subiu pela garganta.

—É ela, mas... como...? —tinha que saber como tinha acontecido.

Agarrou com dedos trementes a ponta do lençol e o retirou de repente, descobrindo o corpo. Tinha o pescoço esmigalhado, o vestido de flores cheio de sangre e... um buraco no peito. Seu coração. Seu grande e generoso coração. O tinham arrancado.

Levou-se uma mão à boca. Sua amiga... tinha morrido vítima de horríveis dores. Algo lhe oprimia terrivelmente o peito, lhe impedindo de respirar. Seus pais, Mark... Não terminaria nunca aquele fluxo de mortes? Procurou recompor-se, dizer algo. Tinha a garganta seca. Damián lhe pôs uma mão no ombro e o apertou com gesto consolador. Logo tomou delicadamente sua nuca.

—Q...quem pôde fazer algo assim?

—Alguém dotado de uma grande força —respondeu o policial.

Mas quem podia possuir tanta força? Os draicon...

—Quando a viu pela última vez, senhorita Walsh?

Damián lhe lançou um olhar que teria sido capaz de congelar o inferno.

—Não está em condições de responder perguntas.

—Não, não passa nada —disse Jamie a Damián antes de voltar-se ao inspetor—Esta manhã tomamos chá juntas, e logo recebeu a uns clientes.

Respondeu a cada pergunta com tanta calma como firmeza, enquanto seu cérebro trabalhava a toda velocidade. Quem poderia desejar a morte de Renee? Aquela mulher não tinha inimigos, nem nada de valor que pudessem querer lhe roubar... O notbook. Desviou o olhar para a mesa onde a mulher o tinha deixado pela última vez. Não estava.

—Posso dar uma olhada no local, inspetor? Renee era uma boa amiga e eu poderia lhe dizer se falta algo.

—Claro. Acompanho-a.

Na cozinha estava o notbook fechado, com seu cartão sem fio. A brilhante superfície azul estava cheia de rastros.

—Bonito notbook —comentou o inspetor Ryan— É estranho que o intruso não o levasse; a caixa registradora esvaziou. Hoje mesmo o utilizou para enviar um e-mail a sua neta.

Jamie sentiu um calafrio. Elevou a vista para encontrar-se com o impassível olhar de Damián.

—Talvez o assassino não quis arriscar-se a deixar alguma pista —murmurou antes de olhar a seu redor— Onde está o gato de Renee?

Ryan franziu o cenho.

—Não encontramos nenhum gato.

Supôs que Arquimedes teria escapado. Como bom gato de rua, era um sobrevivente.

—Inspetor, o pendente de diamante de Renee... desapareceu? Adorava-o. Deveria estar em seu porta jóia, no piso de acima. Se não lhe incomodar, esperarei-o aqui enquanto o comprova. Não me sinto nada bem.

Sentando-se ao lado do notebook, enterrou o rosto entre as mãos. Não era uma mentira: tinha vontade de vomitar. Esperou até que o policial abandonou a cozinha antes de voltar a elevar a cabeça.

Damián se inclinou sobre a mesa.

—Tenho que te tirar daqui.

—Não, espera. Preciso comprovar uma coisa — olhou a seu redor— Você vigia, de acordo?

Ligou o notebook e revisou os arquivos. Estava o e-mail que Renee tinha enviado esse mesmo dia a sua neta, tal e como lhe havia dito o policial. Revisou logo o histórico. Apagado, é obvio.

Foi ao DOS e se meteu em outro programa. Na tela apareceu uma larga lista de direções. De repente ficou consternada.

—O que acontece?

—O notebook. Renee não chegou a tocá-lo. Está cheio de rastros, mas não foi ela quem o utilizou. Ela não sabia navegar pela Internet. E todos estes lugares pertencem a lojas de antiguidades do Bairro Francês.

—Lojas de antiguidades?

Jamie detectou seu tom de alarme. Podia sentir seu quente fôlego na bochecha enquanto se inclinava para ler a tela. Murmurou algo em francês.

Jamie desligou então o notebook e viu que fazia um gesto com a mão.

—Acabo de apagar seus rastros. Vamos. Direi à polícia que está doente.

Damián a levou diretamente a sua casa e fechou a grade com chave. Jamie acabava de sentar-se em uma cadeira do jardim quando viu sair um gato negro entre os arbustos.

—Arquimedes! —exclamou com tom alegre, levantando-o do chão.

O gato lhe deu as costas e se sentou ao pé de um vaso de palmeira. Jamie franziu o cenho. Pelo comum não era tão anti-social...

—Trouxe-o para você... —explicou-lhe Damián, suspirando.

—O que aconteceu? Conte-me tudo.

—Claro, por isso a mataram — refletiu Damián em voz alta— Sabiam da loja de antiguidades.

—Que loja?

—A primeira pista do esconderijo do Livro de Magia. A antiga mansão de meu avô, que agora é uma loja de antiguidades — ficou a passear de um lado a outro, com os punhos cerrados— Renee sabia que essa casa era a primeira pista. Meu pai adorava os jogos. Ele escondeu o livro e revelou-me que tinha semeado todo o Vieux Carre com pistas e que a primeira estava na casa do meu avô. Os morpb devem ter descoberto isso. Não a direção exata, só que se tratava de uma loja de antiguidades.

—Mas Renee não podia saber onde estava oculto o livro... Ela nem sequer te conhecia.

Damián se voltou para olhá-la:

—Conhecia-me, Jamie. Renee conhecia muito bem a minha família. Ela era uma draicon. Por isso a mataram: para absorver sua energia e adquirir um maior poder. O medo da morte de um draicon é muito mais capitalista que o temor dos humanos à morte.

Jamie tinha ficado aniquilada. Impossível. Os draicon eram seres malvados. Desumanos e brutais homens-lobo...

—Tempo atrás, os draicon se viram superados em número pelos morph. Renee estava conosco. Eu não a reconheci porque não cheguei a cheirar seu aroma. Renee usava um composto químico que escondia seu aroma dos morph, e parece que também funcionou comigo. Muito inteligente. Quem quer que a tenha matado devia conhecer sua identidade e sua relação com minha família.

Ou possivelmente a torturaram para lhe tirar a verdade. Tudo aquilo era muito fantástico para Jamie.

—Mas sua neta é humana. Ela mesma me mostrou as fotos!

—Também é draicon. Seus pais procedem de uma manada da Califórnia.

Inclusive sua melhor amiga tinha sido sua inimiga... Tentou recuperar-se e pensar. Como tinha feito com a morte de seus pais e depois do Mark, devia sobrepor-se à dor. A sobrevivência estava em primeiro.

—Tenho que encontrar o Livro —afirmou Damián— Contém um feitiço que pode combater a magia escura e rebater o mal que te infecta. Os morph sabem agora por onde começar a procurar e não se deterão até encontrá-lo —apoiou-se na parede de tijolo, cruzando seus poderosos braços sobre seu peito— Detesto te deixar aqui para sair a procura do livro, mas não fica outro remédio: chamarei os homens de Raphael para que venham te proteger.

Mas Jamie não pensava afastar-se daquele jogo. Damián encontraria o livro e o utilizaria contra ela. Dominaria-a de uma vez por todas com sua magia, com o que se veria apanhada para sempre. Seria dele.

Aferrou-se aos braços da cadeira. Damián era a chave para encontrar o que tão desesperadamente necessitava. Confiar nele era impossível, mas, no momento, teriam que unir suas forças.

—Não penso ficar aqui. Vou contigo.

—Nem pensar.

—Minha vida depende desse livro. Crê que vou ficar aqui sentada, esperando?

—Me escute. Tomou decisões antes, decisões equivocadas, e tem feito o que quis. Isso acabou. Fará o que eu te diga, Jamie. Ponto.

—Não — o fulminou com o olhar.

—Eu sei o que é melhor para você e sei como te manter a salvo. Isso me basta.

De repente o ânimo de Jamie fraquejou quando pensou no estranho pó cinza que tinha visto emanar de sua ferida.

—Pergunto-me se haverá algo que possa me manter a salvo. Essa coisa que levo dentro de mim...

Uma fugaz expressão cruzou o rosto de Damián. Seria o reflexo do sol da tarde em seus olhos? Por um instante, tinha-lhe parecido um olhar de intensa, desesperada preocupação. Ridículo. Damián jamais sentiria medo por ela, a mulher que tinha tentado matá-lo...

Sim, mas também a mulher a que reclamava como companheira. Porque tinha um plano para ela. Queria convertê-la em um dos seus, obrigá-la a mudar. Durante toda sua vida, as pessoas tinham querido moldá-la, conformá-la segundo suas expectativas. Seu tio, por exemplo. Ou inclusive Mark.

«É hora de trocar de tática», decidiu.

—Está bem — deu de ombros com falsa naturalidade— Ficarei aqui com esses tipos que mencionou. Possivelmente inclusive me passe muito bem. Seguro que saberão jogar o World of Warcraft. Espero que sejam o suficientemente jovens para que gostem dos jogos on line.

Fascinada, contemplou como se alargavam suas unhas até converter-se em garras.

—Não. Mudei de opinião: virá comigo. Mas fará exatamente o que eu te diga.

Isso era diferente. Agora se sentia muito mais animada.

—Quando quiser.

Em vez de olhar seu relógio, Damián elevou o olhar ao sol, que já começava a cair.

—A loja está fechada. Começaremos amanhã pela manhã, quando abrirem. Então encontraremos a primeira pista.