Jigsaw


Disclaimer: Saint Seiya a Masami Kurumada e à Toei Animation; estou apenas usando a história por questões de entretenimento.

Observação: Esta fic é U.A. (universo alternativo). ALSO, os sobrenomes utilizados em vários personagens foram retirados da fic All Along the Watchtower da latrodectism, com autorização expressa da mesma.

O conteúdo a ser visualizado é classificado como rating T devido a: violência, linguagem, insinuação sexual de casais tanto yaoi quanto het. Esta fic tem como casais principais Camus&Milo, Saga&Kanon, Shaka&Ikki e faz menções a diversos outros casais.


Prelúdio: naquela noite nevou


I'm an old man now, and a lonesome man in Kansas [eu sou um velho agora, e um solitário em Kansas]

but not afraid [mas não tenho medo]

to speak my lonesomeness in a car, [de falar da minha solidão num carro]

because not only my lonesomeness [por que não só minha solidão]

it's Ours, all over America, [é Nossa, por toda América]

O tender fellows- [ó gentis companheiros]

& spoken lonesomeness is Prophecy [E solidão falada é Profecia]

in the moon 100 years ago or in [na lua há 100 anos atrás ou]

the middle of Kansas now. [no meio de Kansas agora]

[Wichita Vortex Sutra – Allen Ginsberg]


Grandes Planícies, Região Metropolitana de Wichita – 17 de dezembro de 1972

A temperatura não poderia estar mais distante daquela desejada para se passar um feriado no campo; fazia muito frio fora dos pequenos chalés de Lincoln Park Inn – que em nada lembrava o gigantesco parque de Chicago, mas tinha lá suas dimensões. A situação estava tão severa que os pequenos animais locais não se atreviam a sair de onde quer que tivessem se enfurnado, e o silêncio por entre aquelas árvores faria com que o pisar cuidadoso de botas de um trauseunte sobre as folhas secas no chão fosse ouvido a vários metros de distância.

Dentro dos chalés, porém, a temperatura era bastante agradável e seus habitantes sentiram-se confortáveis para trajar apenas suéteres, quando que na área externa eles provavelmente teriam de se agasalhar por inteiro para suportar a temperatura negativa do local. Até mesmo Afrodite, criado na Groelândia por vários anos, havia declarado que aquela temperatura estava insuportável.

- Tá de matar! - dissera Kanon o loiro mais alto dos dois que conversavam frente à lareira. - Não lembro de ter passado tanto frio na vida antes.

- Vou ter que concordar. A madeira usada pra construir esse casebre logicamente não foi da melhor origem. - Afrodite falou com um tom de desdém que não passou despercebido. - Não ajuda nada que estamos encalhados no meio do nada – na verdade, nem sei onde estamos. Onde diabos é Lincoln Park, Kanon?

- E eu lá sei? Quem dirigiu foi o Saga. Eu dormi a viagem toda, lembra?

- Ah, achei que fosse o contrário. 'Cês são parecidos demais, podiam pelo menos se vestir mais diferente, sabe?

- Foda-se. - Kanon começou a sentir que seu queixo estava tremendo com o frio. Olhou para os lados procurando seu casaco quando foi lembrado que havia mais uma pessoa na sala - Camus, cara, sério que 'cê não tá com frio não?

Camus não estava mesmo muito incomodado pelo frio – embora não pudesse dizer o mesmo sobre seus companheiros de quarto. Sentado frente à janela e auxiliado por uma lamparina, ele lia (ou tentava ler) calmamente o livro de Timothy Crouse lançado ainda naquele ano [1]. Parecia não estar prestando atenção nenhuma para a dupla que conversava – e provavelmente não estava mesmo, tanto por estar absorto em sua leitura como por discordar daquela viagem como um todo. Mas, pensou ao levantar os olhos brevemente de seu livro e fitar suas companhias, agora menos barulhentas, não havia como vencer numa discussão contra aqueles gêmeos.

Como se de repente ler mentes tivesse sido feito possível, seus pensamentos foram interrompidos por uma voz idêntica à de seu chefe, mas com um jeito levemente menos imponente de falar – e com menos educação também.

- Ei, Camus, 'cê sabe as horas? - perguntava Kanon, situado do lado oposto do pequeno chalé, provavelmente como tentativa de tirá-lo da concentração quase absoluta que estava dando ao livro em suas mãos. Uma das elegantes sobrancelhas do Areleous mais novo estava erguida, num sinal claro de que Kanon não entendia como Camus conseguia perder um tempo precioso lendo sobre a corrida presidencial daquele mesmo ano.

Camus não se importou. Olhou para seu relógio de pulso prateado, presente de um primo.

- São dez horas da noite. - e voltou sua atenção para seu livro novamente, dando a entender que não desejava prolongar a conversa. Kanon pareceu compreender seus sinais, pois apenas assentiu silente e virou-se novamente para Afrodite sem dizer mais nenhuma palavra, deixando Camus a sós com seus pensamentos mais uma vez.

Fora decisão de Saga – com algum empurrãozinho de Kanon, com certeza – a viagem de negócios envolvendo a Dimensium Aircraft, da qual Camus era o relutante chefe de departamento de Recursos Humanos, com a Silver Line, empresa que também trabalhava com construção aérea e era, no momento, a única capaz de concorrer com a Dimensium dentre todas as empresas do ramo no estado de Kansas. O que o presidente Saga Areleous queria, ou foi o que dissera a todos na reunião anterior à viagem, uma quinta-feira que Camus teria preferido esquecer, era tentar conseguir uma sociedade com Misty Lézard, presidente da Silver Line, que estava se dirigindo com alguns membros do alto escalão da empresa para uma estalagem campesina qualquer no interior de Kansas.

Para Camus, a decisão era passível de contestação; nada garantia que alguns dias no campo iriam deixar Misty mais tentado a firmar sociedade com a Dimensium. Além do mais, a ideia de mobilizar os chefes de departamento para passarem quase três semanas ausentes da empresa num lugar isolado da sociedade parecia muito ridícula.

Saga pareceu considerar a opinião de Camus. Infelizmente, Kanon Areleous existia. E ele parecia muito interessado nesse encontro. Prendendo um suspiro de cansaço que estava para soltar, voltou a se focar nas letras do livro que jazia esquecido em suas mãos.

- Não 'tá mais que na hora do Saga e do Máscara da Morte voltarem?

- Passou da hora já, eles saíram seis da tarde. Acho que eles se esqueceram que a gente só vai poder dormir quando eles voltarem ou eles tão a fim de ficarem trancados do lado de fora sozinhos. - Kanon concordou, a voz com uma pontada quase imperceptível do que Camus identificou como ciúmes.

O ruivo mais uma vez tirou seus olhos do livro, decidindo então fechá-lo de uma vez por todas. Não estava mais com cabeça pra pensar na vitória de Nixon deste ano. Estava começando a ficar preocupado com o andamento da reunião, que poderia ou não mudar totalmente o destino da empresa dali em diante.

- Vou dar uma volta por aí pra me distrair. - disse, finalmente, levantando-se da cadeira de carvalho em que estivera sentado nas últimas duas horas.

- Tem certeza, cara? - Kanon questionou rapidamente, apontando pra janela, de onde se podia ver alguns flocos de neve caindo ininterruptamente – Tá fazendo, tipo, uns cinco graus negativos lá fora. Tô com o rabo congelado só de pensar em tu abrindo essa porta aí.

Camus optou por apenas ignorar o loiro, erguendo do canto que deixara sobre a mesa um grosso casaco preto de pele de bisão. Sem olhar para a cara de agonia de Kanon, ou a expressão divertida no rosto de Afrodite, Camus pegou uma lanterna vermelha que estava esquecida num canto e abriu a porta de madeira nobre que separava aquele calor aconchegante do frio nórdico do lado de fora. De fato, estava fazendo um frio que nem mesmo Camus podia considerar "tolerável". Mas era uma questão de honra; não voltaria pra dentro para ouvir Kanon fazendo pouco caso dele.

Apertando os olhos castalho-avermelhados para que o frio não os atingisse muito, ele apertou um pouco o passo, rumando sem destino definido por entre as enormes árvores locais, apenas sua lanterna guiando-o meio à escuridão.


- É, hoje tá difícil.

Fazia frio, mas Shaka havia sido bem treinado pra suportar essa condição sem maiores problemas. Poderia ter ficado dentro de sua casa, é claro, mas foi tomado por uma imensa vontade de exercitar as pernas depois de passar três horas seguidas meditando. A sensação térmica negativa para ele era meramente psicológica. Já vira noites mais frias por aquela área, e, mesmo que esse inverno tivesse vindo especialmente hostil contra os habitantes das Grandes Planícies, era questão de um ou dois meses para o calor voltar – ele sabia por experiência.

Como se a escuridão do local não fosse nada para ele – não era -, o loiro caminhava a passos largos pela trilha de Lincoln Park. Estava correndo há pelo menos meia hora e isso o ajudava a se aquecer. Achava que seria o único a sair do ambiente quente de dentro das casas para se aventurar nos cinco graus centígrados abaixo de zero que estava fazendo nas Planícies, mas alguns minutos antes vira um jovem ruivo caminhando rápido em direção à entrada. Não deu importância na hora; caso o jovem estivesse se dirigindo pra onde Shaka estava indo - o lago – ele teria corrido atrás dele para avisá-lo dos perigos. Haviam animais selvagens que poderiam acordar com o barulho e atacá-lo. Apesar de ser um ambiente naturalmente pacato, Lincoln Park Inn ainda ficava praticamente numa floresta. Uma vez que o ruivo se dirigia para a direção oposta, Shaka simplesmente deu de ombros e prosseguiu seu caminho.

Estava morando em Lincoln Park há pelo menos treze anos desde que seus pais morreram e o senhor Sage [2] o acolheu. Muitos dos visitantes da estalagem o perguntavam com frequência o motivo de ele nunca ter se mudado daquele fim de mundo tendo cidades imensas como vizinhas.

Shaka não se interessava por nada disso. Considerava-se um homem abençoado por Buda por ter recebido uma vida pacífica. Meditar e observar a natureza quase intocada do Lincoln Park eram mais que suficiente pra ele.

Sua linha de pensamento foi bruscamente interrompida pelo barulho de um motor de carro. Estranhou um pouco pelo horário; já passavam das dez e meia. Estava muito tarde para alguém pegar a estrada, em especial com toda essa neve. Seus olhos azuis olharam pro céu e localizaram uma revoada de quatro corujas pardas saída justamente da direção em que ele ouvira o barulho.

- Vocês também acham que tem algo estranho hoje? - ele perguntou como se estivesse falando com as aves, embora na realidade fosse apenas uma pergunta retórica.

Aparentemente, as corujas haviam notado a movimentação diferente naquela área, então Shaka concluiu que alguém estava mesmo cometendo a imprudência de sair àquela hora da noite. Olhou mais uma vez para a direção de onde não se ouvia mais nada; para lá havia apenas o chalé cinquenta e dois, que era um pouco maior que os outros e ficava próximo ao lago.

Inconscientemente, ele já estava caminhando em direção ao chalé cinquenta e dois. Não pensava em nada. Andou mais cinco minutos até que a pequena casinha de madeira tornou-se visível por entre os carvalhos; as luzes estavam acesas e Shaka se lembrou vagamente de ter visto um grupo de executivos acompanhados do senhor Sage ocuparem o chalé naquela mesma manhã.

De repente, um grito agudo e desesperado ecoou por toda aquela área.

Shaka sentiu seus ombros se enrijecerem imediatamente. Apressou o passo até que estava correndo; o grito era de um homem. Assaltantes?, pensou, mas logo descartou a ideia. O chalé ficava muito isolado da estrada, e, a não ser que o meliante dispusesse de uma canoa para cruzar o lago, não conseguiria fugir pela mata fechada da outra ponta.

Outro grito cortou a noite, repleto de medo e desespero. Shaka sentiu seu estômago revirar.

Chegando próximo ao chalé, andou com cuidado. Escondido em meio às árvores, viu um vulto sair do chalé cinquenta e dois e se dirigir para o lado oposto ao que Shaka estava. O indiano deixou escapar um suspiro aliviado que não sabia que estava segurando. Esperou o tempo que achava suficiente para se atrever a entrar na casa, que agora estava no mais absoluto silêncio.

Debateu internamente se devia procurar por ajuda; não parecia inteligente entrar naquela casa sozinho. Teve que admitir que mesmo que ele corresse rápido o suficiente pra chegar à casa de Sage – a única no Lincoln Park todo que provavelmente estava com os telefones funcionando – não daria tempo de ajudar quem quer que estivesse dentro do chalé. Com isso em mente, levantou-se de onde estivera abaixado por entre os arbustos e caminhou diretamente para a porta da frente, que estava entreaberta.

A visão que teve do interior do chalé o fez se arrepender de não ter dado meia volta e corrido para qualquer outro lugar longe dali. Sentiu um espasmo na garganta enquanto sua janta insistia em querer sair pela boca, a única coisa o mantendo em pé sendo sua mão que se agarrava firmemente à parede.

Cinco corpos jaziam no chão daquela sala – corpos, por que não havia como algum daqueles homens estar vivo de forma alguma. Um homem loiro, de feições que provavelmente foram bonitas outrora, jazia caído no chão, o rosto pra sempre contorcido numa horrível expressão de dor, os olhos azuis abertos e arregalados para o nada. Shaka levou a mão à boca; ambas as mãos do homem loiro não tinham um único dedo. Parecia que haviam sido serrados, dada a grosseria e irregularidade dos cortes.

Voltou seu olhar pros demais mortos, mas os outros pareciam estar num estado tão ruim quanto o loiro, ou até pior. Um deles – o corpo grandalhão indicando que o homem devia ter seus dois metros quando vivo – estava até mesmo sem cabeça.

Os outros três corpos estavam em estados muito semelhantes aos dois primeiros: faltava algum membro. Nenhum dos cinco corpos parecia ter sido poupado. A crueldade daquele ato estava tão explícita que Shaka – uma pessoa geralmente racional – se perguntava se aquilo não era obra do Demônio em pessoa. Olhou pra mesinha de canto que ficava próxima à entrada, vendo o que procurava – um telefone branco, agora sujo de vermelho. Tomando cuidado para não pisar em nenhum dos homens caídos, ele ergueu o fone até seu ouvido.

- Mudo. - ele esperava por isso já, mas a esperança que havia criado naqueles segundos o fez sentir uma pontada de decepção e ansiedade. Teria que correr até a casa do senhor Sage, a quase dois quilômetros dali – pior, poderia encontrar no caminho o autor daquelas atrocidades.

Olhou novamente para o corpo do homem loiro, que morreu gritando. Teriam sido dele os gritos que o atraíram até ali? Shaka tinha ciência de que o único motivo por que não vomitara é por que tinha um controle excepcional de suas emoções; a cena que via preenchendo seus olhos com vermelho, o cheiro de ferro penetrando suas narinas com violência.

De repente ouviu um barulho de passos e antes que conseguisse virar para trás, sentiu uma pontada intensa de dor na nuca antes que sentir seu mundo escurecer.


Parecia que andava há horas, mas Camus sabia que não devia ter nem quarenta minutos desde que teimosamente saíra do chalé trinta e cinco do Lincoln Park Inn. Passando os olhos pelos outros chalés, que de onde ele estava pareciam casinhas de brinquedo de tão pequenos, ele se perguntava por quê o dono teria os deixado tão afastados uns dos outros. Em toda sua caminhada, avistara apenas umas treze daquelas pequenas casinhas de madeira.

A maioria dos chalés estava desocupado, é claro; aquela época era de baixa estação. Poucas famílias saíam da cidade tão perto do natal num frio daqueles. Pegou-se amaldiçoando Kanon em pensamentos, mas constatou surpreso que não estava mais com raiva. A caminhada havia, afinal, surtido o efeito que esperara.

Voltou sua atenção pra um chalé que estava mais próximo e começou a andar em sua direção. Já quase na frente da porta, leu o número entalhado um pouco acima de sua cabeça: trinta. Estava relativamente perto de seu chalé e do calor que ele lhe ofereceria.

O barulho de galhos secos se quebrando sob os passos apressados de Camus só era interrompido volta e meia pelo pio ocasional de corujas. Muitos diziam que esses pássaros eram prenúncio de tragédias, mas Camus era esclarecido o suficiente pra não acreditar numa besteira dessas. Um, dois... contava mentalmente os chalés que ia ultrapassando, se perguntando quanto tempo havia realmente estado fora. Três, quatro... Olhou pra modesta construção de madeira e ela parecia agora um pouco maior do que ele lembrava. Vasculhou com os olhos ambos os lados da casa, mas não encontrou o Chevelle branco no qual eles haviam viajado de Wichita. Saga ainda não havia voltado.

Se perguntando o porquê de tanta demora, abriu a porta de madeira com o número trinta e cinco esculpido, apenas para se deparar com uma visão inesperada.

- Mas o quê!

O chalé estava totalmente revirado. A mesa de madeira em que Camus estivera lendo há uma hora atrás estava jogada de lado, tudo o que outrora estivera em cima dela espalhado pelo chão. A pasta de documentos da Dimensium que Kanon havia guardado com zelo próxima à lareira estava aberta, alguns documentos havendo voado em direção às labaredas, que crepitavam com muito mais força agora que haviam sido alimentadas. A pesada cadeira de carvalho em que havia sentado também estava jogada e perto dela um corpo jazia meio esquecido naquele caos todo. Camus olhou com mais atenção e quase soltou outro grito de surpresa.

Desmaiado no chão estava Kanon, seus cabelos loiros e lisos espalhados por cima do tapete de tecido sintético. Olhou pros lados mas não encontrou Afrodite em lugar nenhum da sala. Entrou rapidamente nos dois quartos do chalé, nos banheiros... Nada de Afrodite, muito menos de Saga ou de Máscara da Morte. Voltou para a sala, onde tinha deixado Kanon.

Se abaixou. Um olhar mais próximo confirmou que o grego estava apenas desacordado e não parecia ferido. Os pensamentos voavam; Camus, se apoiando nas paredes, caminhou até o telefone, que estava caído no chão ao lado de um vaso de flores quebrado. Seu desespero aumentou quando viu que a linha estava muda.

- Merde! - soltou, baixinho. Provavelmente a nevasca havia danificado as linhas telefônicas que ligavam aquele lugar inóspito à civilização.

Sem saber o que fazer direito, checou seus pertences: sua carteira estava no lugar que havia deixado, com todo o dinheiro ainda dentro dela. Nada parecia fora do lugar; documentos, cheques, tudo estava como ele havia deixado. Seus olhos se arregalaram quando ele olhou pro seu exemplar de The Boys on the Bus que ele estivera lendo a tarde toda. O livro estava em frangalhos, várias páginas tendo sido arrancadas e algumas até rasgadas pela metade. Ele ia ficando cada vez mais confuso.

Arregalou os olhos quando ouviu passos pesados na porta da frente do chalé. Levantou-se bruscamente, segurando a pesada lanterna na mão como tentativa de auto-defesa. Estava preparado pra atacar.

- Ei cara, sou eu, larga essa merda aí! - uma inconfundível voz gritou, rouca como se tivesse levado um susto.

Camus baixou sua guarda. Quando a luz do chalé foi ligada, ele constatou que realmente não era um assaltante quem falava com ele.

- Ah, é você, G...

- Sssshiu! O que aconteceu com o Kanon? - o homem conhecido por eles como Máscara da Morte interrompeu sua fala, aparentemente impaciente e igualmente impressionado com a situação. - Aliás, esquece o Kanon, já vi que esse idiota tá vivo. O que aconteceu com o chalé?

A Camus, restava dizer o que sabia.

- Não faço ideia. Saí pra caminhar, quando voltei ele estava desse jeito; estava tudo desse jeito. - falou, não acreditando muito em quão calmo ele conseguiu parecer. - Aliás, qual o motivo pra demora de vocês? Onde está o Saga?

- O Saga? Não sei, ele me deixou num barzinho lá perto da entrada, disse que ia tomar conta da reunião por contra própria. - Máscara da Morte disse, o tom indicando que ele realmente não estivera nem um pouco a fim de enfrentar uma reunião de negócios.

Camus tentou ignorar o bafo de rum do italiano. Olhando pra porta do chalé, se lembrou de Afrodite.

- Afrodite não está em lugar nenhum do chalé; tenho certeza que quando eu saí ele e Kanon estavam conversando por aqui.

E apontou pra frente da lareira, cujas chamas dançavam com muito menos ânimo agora que não estavam mais sendo abastecidas com papéis. O italiano assentiu com a cabeça, não parecendo muito preocupado, o que começava a irritar Camus. Será que ele sabia de alguma coisa e não estava contando?

- Vamos fazer o seguinte: pega as pernas do Kanon que eu pego os braços; vamos jogar esse inútil na cama antes que ele pegue uma hipotermia... Ou uma alergia desse tapete vagabundo aí. - ao que Camus assentiu com a cabeça. Parecia ser uma coisa inteligente a se fazer.

Apenas três horas depois, quando já passava das duas da madrugada, é que Saga e Afrodite foram aparecer, ambos carregando um homem de cabelos muito compridos e loiros – e totalmente ensanguentados.


- Onde você estava às dez e meia da noite de ontem?

- Andando pelos arredores do meu chalé. Devo ter me afastado no máximo uns quinhentos metros.

- Alguém pode confirmar isso?

O ruivo suspirou.

- Ninguém me viu lá do lado de fora, se é isso o que você está perguntando. Kanon e Afrodite podem confirmar que eu me retirei para dar uma volta e que já voltava.

- Os senhores Areleous e suas demais companhias todos já deram seus testemunhos, e é o máximo que posso comentar sobre isso. - pausou. Olhou pros olhos castanhos que pareciam vermelhos sob a luz fraca daquela sala: eram olhos que pareciam dizer a verdade.

Aiolos já havia visto a cena do crime. Em seus vários anos como investigador da Homicídios em Wichita, poucas vezes havia sentido tanta aversão quanto quando viu aquele cenário de poucas horas atrás. Olhou para Camus Albert; ficha limpa, imigrado da França com a família aos seis anos de idade, atual chefe de Recursos Humanos de uma das empresas emergentes mais importantes dos Estados Unidos.

Havia algo errado. Decidiu prosseguir com as perguntas.

- O senhor já sabe as identidades dos falecidos?

Camus sentiu a tensão do ambiente aumentar.

- Sim.

- Curioso, não acha? Estamos em baixa temporada, mas os chefes das duas empresas mais importantes em construção áerea – e rivais, diga-se de passagem – resolveram marcar de se encontrar numa estalagem tão distante da cidade. E aí – Aiolos prosseguiu antes que Camus pudesse abrir a boca – toda a chefia de uma empresa é simplesmente riscada do mapa de uma noite pra outra. O mais interessante é que sem a Silver Line para fazer oposição, vocês se tornaram praticamente um monopólio na construção aérea de Kansas, estou errado?

Camus não falou nada. Parecia realmente tudo muito suspeito, como se tivessem armado para que eles parecessem culpados.

- Algo a dizer, senhor Albert? - Aiolos disse, por fim, sentando finalmente na cadeira que fora colocada na sala especialmente para ele, cuja existência ele ignorara até aquele momento.

O francês pensou no que falar por alguns segundos. Levantou seu rosto, seus olhos castanhos fitando os olhos azuis do policial que o interrogava.

- Você não tem provas. Sinto muito, mas é tudo o que eu tenho a dizer. Eu não matei ninguém, nunca sequer cheguei perto do chalé em que os mortos foram encontrados.

- Isso é tudo?

- Sim. Sinto muito não poder ajudar mais que isso.

Aiolos pareceu que ia falar alguma coisa, mas desistiu logo. Por fim, o policial sorriu.

- Tudo bem. Muito obrigado pela cooperação. Você está liberado; seu advogado já tomou todas as providências.

Camus assentiu de leve com a cabeça, que latejava devido a todo o estresse a que havia sido submetido nas últimas horas. Não dormira quase nada do momento em que resolveu deitar na cama após ajudar a chamar a ambulância para o misterioso loiro – que o dono da estalagem reconheceu como sendo Shaka, seu filho adotivo – até o momento em que foi bruscamente acordado e convidado a se dirigir até a delegacia para prestar depoimento sobre o assassinato de Misty e seus colegas.

A notícia de que Misty Lézard estava morto – que fora assassinado – demorou para ser computada por Camus.

Os fatos da noite anterior estavam vindo à sua cabeça em fragmentos. Ele caminhando, voltando pro chalé, encontrando Kanon desacordado, as coisas todas espalhadas pelos cantos. Máscara da Morte chegando.

Saga e Afrodite aparecendo com um homem ensanguentado. A origem do sangue vinha de um ferimento aparentemente profundo que ele havia levado na cabeça. Embora o fuzuê da chegada deles tenha sido o suficiente pra acordar Kanon – que já levantou reclamando de fortes dores de cabeça – o loiro não deu nenhum sinal de vida. Não fosse pelo pulso fraco diagnosticado por Afrodite, teriam o dado como morto.

De acordo com os policiais, ele – Shaka - estava vivo, mas num coma profundo e era impossível determinar quando ele acordaria – se acordasse. Camus olhou pras paredes cinzentas da delegacia enquanto caminhava ao encontro de Afrodite e Kanon – ambos com as mesmas caras de que haviam falado tempo de mais e dormido tempo de menos; estavam conversando com o advogado, que Camus identificou como sendo o jovem Shun Amamiya, contratação recente da Dimensium.

Pensou em Shaka, o único que provavelmente tinha alguma ideia da identidade do autor do massacre que ocorrera na noite anterior.

Decidindo que quanto menos pensasse, melhor para ele, caminhou até o Chevelle branco no qual haviam ido para uma reunião de negócios e no qual voltariam para Wichita, desta vez para um funeral.


Centro Hospitalar Meadowlark, Rua St. Oliver, Wichita – 13 de Abril de 1973

O burburinho dos enfermeiros do lado de fora do quarto era quase inaudível. Falavam sobre promoções, o caso proibido de um doutor com uma enfermeira; as banalidades inevitáveis da vida cotidiana. O chefe do departamento de psiquiatria, Mu Stavros, estava acostumado àqueles rostos e àquelas conversas. E ele não dava a mínima. O que lhe interessava ali naquele lugar era somente seus pacientes, e descobrir até onde ele poderia ir para curá-los.

Olhou para o longo corredor de portas brancas numeradas. O paciente 201 passava bem após uma tentativa frustrada de suicídio – aparentemente, o menino achava que um corte de cinco centímetros no pulso na horizontal seria o suficiente para morrer. Mu não precisou fazer muito nesse caso; era uma criança, um acompanhamento psicológico seria suficiente. Passou rapidamente às mãos de outro psicólogo e se liberou do tratamento de 201.

O paciente 204 havia sido um caso mais complexo. Pouco se sabia do contexto em que ele fora encontrado, apenas que de alguma forma ele havia incendiado sua casa enquanto ainda lá dentro. Mu descobrira o óbvio: era um mero piromaníaco. Rapidamente ele despachara a ficha do homem para o Hospital Psiquiátrico mais próximo e amanhã mesmo o 204 seria transferido. Se livrara de mais um paciente.

E havia o 205.

Chegara uns cinco meses atrás, em coma e quase morrendo de hipotermia. Um mês de cuidados intensivos fora o suficiente para o homem não ter mais nenhum risco de morte; em compensação, o estado de coma em que ele havia entrado, provavelmente devido aos traumatismos sofridos, não dava nenhum sinal de mudança. Um dia uma enfermeira garantiu a Mu que havia visto o dedo mindinho de 205 se mexer, que ele já podia ficar sob a supervisão dela. Mu até a teria levado a sério não fosse o fato que parecia que a enfermeira estava ansiando muito para 205 acordar.

Trocou de enfermeiros no dia seguinte, pedindo para que dessa vez seus colegas mandassem a ele um residente da Faculdade de Enfermagem que não estivesse com os hormônios à flor da pele. Mandaram Ikki Amamiya.

Bem, Mu pensou, derrotado, ele nunca poderia dizer que Ikki era "um adolescente cheio de hormônios". Pelo contrário, Amamiya havia se relevado um homem bastante sério e comprometido com o trabalho, apesar de seu pavio extremamente reduzido. Ele supervisionava os pacientes recém-chegados por um período curto de tempo, mas a maior parte do tempo ficava com 205, muito provavelmente por que esse era o único paciente que não o irritava.

- Falando no diabo... - Mu falou baixinho só para si ao ver Ikki se aproximar. Antes que fizesse qualquer comentário, porém, reparou que o residente não estava com sua expressão estóica de sempre. Parecia com pressa.

- Doutor Stavros, é o 205. Ele acordou. - Ikki falou rapidamente, num tom sério que dizia que aquilo não era um trote. Não que Mu acreditasse que esse era o caso; era mais fácil a orgulhosa presidente Saori Kido começar a distribuir suas roupas aos pobres do que Ikki pregar-lhe uma peça durante um plantão. - Ou pelo menos eu acho.

- Acha? Que espécie de enfermeiro é você? - Mu falou, irritado, mas Ikki não o deixou continuar.

- Deixe-me terminar, senhor. Ele abriu os olhos, mas...


Shaka sentiu o forte cheiro de produtos de limpeza. O beep incessante de alguma máquina do seu lado direito fazia sua cabeça latejar um pouco, mas em geral ele sentia-se entorpecido, como se tivessem lhe aplicado várias anestesias seguidas. Experimentou falar algo, mas as palavras não saíam – ao invés disso, saíram uns barulhos disformes e roucos de quem estava aprendendo a falar após um longo tempo isolado sem comunicações com o mundo. Abriu os olhos.

Não viu nada, apenas um infinito em preto.


[1] The Boys on the Bus, ou Os Garotos no Ônibus de Timothy Crouse, um livro não-fictício que cobria a corrida presidencial de 1972.

[2] Sage, pra quem não sabe, é o Grande Mestre que antecedeu o Shion. Ele aparece em The Lost Canvas.

Meus agradecimentos sinceros para minha irmã, que lê e revisa isso, e principalmente pras lindas Latrodectism e Tenentism Funster, por me forçarem sem saber a escrever fanfic pela primeira vez aqui no FF. (CORAZÓN)