Prelúdio

Sherlock corria na noite escura. As luzes de Londres não eram suficientes para enxergar. Aquelas ruas, tão conhecidas suas, pareciam cada vez mais obscuras e irreconhecíveis. Seu casaco pesava com a chuva forte que caía. Tivera de passar os dedos entre os cabelos molhados duas ou três vezes para tirá-los dos olhos.

Trovejou e ele teve a sensação de que aquilo ajudaria na luminosidade. Não era mais a sua Londres. Não havia a segurança do seu conhecimento sobre o caminho. Da sua genialidade estratégica para alcançar o seu destino em tempo. Havia apenas... incerteza.

Mas, tinha que chegar a tempo! Concentrou-se e continuou a correr. Passou direto pela estreita rua sem saída. Escorregou com sua parada brusca e caiu no chão, encharcando-se ainda mais. Aquela era a rua...

Levantou-se e deu passos, sentindo o seu fôlego pesar. Não estava agindo como ele mesmo. Olhou para todos os lados. Não conseguia prever uma vírgula do que estava por vir.

Apesar da chuva fria, sentia calor. E aquela percepção foi rapidamente explicada, por ele mesmo para ele mesmo, como esforço físico por ter corrido da Barker Street até ali...

Deu passos lentos até a entrada da ruela sem saída. O som metálico da chuva batendo nas latas de lixo parecia formar uma estranha melodia de violinos em pizzicato¹ e os trovões, pratos² tentando cortar o seu raciocínio como lâminas afiadas. Era uma obra macabra...

Sentiu um arrepio pelo corpo quando percebeu a silhueta. Dera tempo! Aproximou-se, mas, após o relâmpago que revelara a imagem, interrompeu seu passo com a certeza da derrota. Com a garganta imediatamente seca e uma estranha sensação que o fez se sentir fraco e incapaz, percebeu que aquela forma feminina não estava em pé: estava pendurada.

Correu para elevar o seu corpo, na esperança que os seus pulmões ainda fossem capazes de sugar o ar. Mas, ela estivera ali por tempo demais... Ele cortou a corda que envolvia o seu pescoço. Era fina e firme. Não quis fazer nenhuma dedução...

Deitou o seu corpo sob a chuva e percebeu os seus olhos abertos e sem foco, os lábios entreabertos que até os últimos instantes de sua vida clamaram por oxigênio. O seu rosto já não exibia mais a maquiagem que antes usava, assim como a sua vida, a tempestade lavara dela. E continuava a soar... Mais e mais forte com a queda de granizo. Agora aqueles choques contra as latas de lixo soavam como tambores. Um Requiem³ desesperador.

Ele passou as mãos pelos cabelos ela e, sem entender a dor que sentia no peito, elevou-a, envolvendo-a num abraço.

Ela o abraçou de volta.

Num pulo, com o coração aos saltos e encharcado de suor, Sherlock se percebeu envolto pelos lençóis de sua cama. Chovia torrencialmente do lado de fora do 221B. Notou o escuro do seu quarto e levou alguns segundos para clarear os seus pensamentos. Fez uma expressão de profundo mau humor e pulou da cama.

Deu passos firmes até o banheiro, girou a torneira de água fria e meteu-se em baixo do chuveiro. Já tinha salvado a vida daquela mulher. Ela podia, ao menos, fazer o favor de sair da sua cabeça!

Secou-se e vestiu o roupão antes de ir à sala de estar. Estivera envolvido em um caso que resolvera no final da tarde do dia anterior. Ficara dias sem dormir direito então, decidira descansar mais cedo, deixando a pilha de correspondências para o dia seguinte.

Sentou-se no sofá e pegou as cartas que gritavam pela sua atenção há pelo menos uma semana. Contas, contas, contas, uma correspondência com pistas sobre um caso que já havia resolvido, contas, contas, uma carta de Irene, contas...

Puxou a carta de Irene, percebendo que o banho não tinha sido o suficiente para que o seu ritmo voltasse ao normal. Abriu o envelope perfumado marcado apenas com as inicias dele e dela, em lados opostos. Havia um ingresso para o Ballet "The Nutcracker" na Royal Opera House. Procurou por mais qualquer mensagem. Não encontrou o esperado convite para jantar.

Uniu suas mãos e permaneceu um tempo diante daquele envelope.

Levou-o para o seu quarto e colocou-o acima da cômoda. Jamais o deixaria no seu criado mudo. O perfume dela era o que menos precisava para um sono tranquilo. Jogou-se na cama para tentar descansar enquanto podia no que restara da sua noite.

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Prelúdio = introdução musical.

[1] = palavra italiana usada por instrumentistas de cordas para determinar que se deve dedilhar as cordas, ao invés de produzir as notas com o uso do arco.

[2] = instrumento orquestral percussivo.

[3] = Música fúnebre composta usualmente para rituais mortuários (cerimônias, missas, enterros, etc).

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