Primeira Parte

Capítulo um – A Marca Negra

A biblioteca de Hogwarts não era um lugar que você podia chamar de agradável. No verão fazia muito calor e no inverno muito frio, e o bolor das prateleiras era capaz de sufocar até mesmo o nariz perspicaz de Madame Nor-r-ra. Os quadros pelas paredes retratavam condes rabugentos trajando capas bordadas com ouro, usando meias de seda e sapatos de salto tão pontudos que teriam causado inveja a Luis XIV.

Existiam só duas criaturas na escola que conseguiam ficar bastante tempo dentro daquela biblioteca e não se incomodar, a pobre Madame Pince e Hermione Granger.

Madame Pince recolocava alguns volumes de enciclopédias numa estante no canto da sala e Hermione, tendo aberto a biblioteca, passava os olhos por um livrinho cuja capa cintilava dourada ao sol. Era apenas uma figura pequena contra a claridade da janela, mas uma figura notável. De longe seus cabelos indiscretos faiscavam, ardendo em um loiro escuro tal qual o pelo queimado de um leão.

Ela fez um barulhinho com a garganta e pôs o livrinho de lado, uma pena marcando-o pelo meio.

"Sete e vinte e quatro", disse Harry.

Hermione deu um bocejo em resposta. "Já teve a sensação de que há mais gente no seu quarto do que deveria ter?"

"Sinto isso em relação aos roncos de Neville."

"Coloco o diabo do relógio na mesa de cabeceira e no meio da noite ele some! E não tentei dormir de novo porque poderia não acordar para as aulas, já tenho dois atrasos este ano. Dois! Mais um e recebo um aviso."

"Você deve tê-lo derrubado no chão sem perceber."

"Harry, a sonâmbula não sou eu. O quarto anoitece de um jeito e acorda de outro."

Todos dormimos de uma maneira e acordamos de outra. Imagine o que ela pensaria se visse como o dormitório dos garotos amanhece. Não é uma coisa legal de se presenciar. Você sente o cheiro da testosterona dos corredores. Mas Hermione podia ter o cuidado de examinar tudo antes de se deitar e conferir tudo outra vez quando acordava, não podia?

"Eu achei que isso estava esquisito demais e comecei a reparar na posição dos chinelos depois que as meninas dormiam", revelou Hermione numa voz suave, "Nenhuma delas se levantava durante a noite, a não ser Heloise para tomar o bendito remédio, mas isso eu também via, e no entanto algumas peças de roupas apareciam pelo chão como se tivessem criado pernas durante a noite e resolvido passear pelo quarto. Foi então que percebi que estava sendo burra."

Harry riu e disfarçou isso virando o rosto para o outro lado.

"Para quê chinelos? As pessoas podiam andar muito bem descalças..."

Ele leu a página que ela havia marcado no livrinho:

"Eu te amo" - E o que você escuta não é "Eu te amo tanto quanto posso dentro das limitações dessa relação e desse meu momento de vida, dentro das minhas próprias limitações, dos meus medos e dos meus fechamentos", você escuta "Eu te amo totalmente, para sempre, sem que nada, antes ou depois do nosso encontro, supere esse sentimento"

Algumas palavras tinham sido riscadas, mas de uma maneira tão brusca que não parecia ter sido Hermione.

"O que é isso?"

"É só um livro... ", ela respondeu em tom de desinteresse. "Escute, onde está Rony?"

"Disse que vai nos encontrar aqui."

Hermione se levantou, catando os livros e a mochila. "Não, não vai, não. Vamos nos encontrar no Salão Principal. Me ajude a devolver essas coisas."

Harry foi atrás dela. Madame Pince olhou para eles. Hermione entrou num espaço indescritivelmente pequeno entre duas prateleiras, onde de todos os livros mínimos o maior entre eles era aquele dourado que ela estava enfiando entre outros dois volumes cuja dimensão equivalia à de uma unha. A mochila dela emperrou entre as prateleiras e Hermione deu um solavanco para trás quando tentou se virar, esbarrando em Harry do outro lado. A estante rangeu, enferrujada. Madame Pince lhes lançou um olhar comprido por cima do dorso dos livros.

Hermione virou o rosto rapidamente para a porta da biblioteca enquanto inclinava os ombros para frente, forçando a mochila a deslizar e se soltar.

"Mas, por todos os infernos, que é que vocês dois estão fazendo aí atrás?", disse a bibliotecária.

Nesse momento Hermione arregalou os olhos numa expressão de raiva ou agonia, não era possível dizer, e fez um movimento rápido com o corpo, empurrando a mão de Harry, que por sua vez empurrava a mochila, para longe. O impulso a jogou para frente como se ela fosse uma rolha pulando fora do gargalo de uma garrafa.

Uma das últimas coisas que ele ouviu foi um suspiro dela, resignado, e então uma outra voz entrou em sua cabeça. Um outro cenário. Um redemoinho cinzento e manchado de sangue.

O ruído dos passos do lado de fora começava a parecer cada vez mais constante. Em poucos minutos a biblioteca começaria a encher com as pessoas que costumavam pegar livros antes das aulas e os devolver no término das mesmas. Mas essa percepção passou pela cabeça de Hermione quase tão rápida e superficialmente quanto uma pedra quicando na água. A pele de Harry estava sem cor. Estava tão horrivelmente sem cor que as veias eram nítidas; finos caminhos esverdeados pelo pescoço, e sua respiração se contraia com força, fazendo seus olhos quase saltarem das órbitas.

Hermione teve vontade de xingar. Ao invés disso arrancou a mochila das costas e o agarrou pelos ombros.

"Harry", ela o sacudiu. Ele parecia que estava tendo asfixia.

Ele escorregou para o chão, tremendo. Hermione levantou a cabeça dele, pegando-o pelo maxilar. As íris dos olhos de Harry sumiram dentro das órbitas. Debaixo dos dedos dela, por de baixo da pele dele, a pulsação impossivelmente acelerada desmentia a idéia da asfixia. E ele apertava os dentes como se fizesse força para não gritar.

"Pare com isso", exclamou Hermione, alarmada.

Harry abaixou a cabeça entre os joelhos. "É sangue."

Hermione olhou debilmente o próprio corpo. Então olhou o dele.

"Onde?", ela perguntou.

"Em você. No chão." respondeu Harry.

"Olhe pra mim."

"Você está sangrando!"

"Não estou! Olhe pra mim."

A respiração de Harry ficou mais lenta, mas ainda dava para sentir o calor que vinha do seu corpo nervoso. O rosto dele estava cor de fogo. Ele começou a suar.

Estava com raiva. Meu Deus, como estava com raiva. Quando violava regras, sentia-se aflita e um pouco estúpida, porque você sabe que está agindo de forma errada e ainda sim continua. Isso é coisa para idiotas, quebrar regras. Quando Rony era irracional, pode parecer egocêntrico, mas sentia-se mil anos luz na frente das pessoas. Era como se, vendo os erros dele, pudesse perceber as coisas que jamais faria em condições lúcidas. Quando recebia a droga dos avisos tinha o incontrolável desejo de evaporar da face da terra. Fazia tudo para ser tão correta, e então alguém atirava a merda no ventilador. Mas que deixassem Harry e Rony de fora. Alguém ia pagar por aquela brincadeira.

Pegou Harry pelo ombro e o abraçou.

As portas da biblioteca estavam abertas agora, as pessoas entravam sussurrando e passavam dezenas de metros de distância do lugar que estavam.


As arquibancadas lotavam, e quem estivesse no chão poderia sentir o tremor delas. Além disso, havia um cheiro forte de terra remexida no ar. O vento soprava e levantava as capas dos que estavam na arquibancada da Grifinória, agitava com violência as bandeiras verdes da Sonserina.

Isso, lógico, Gina não podia ver. O campo, visto daquele ângulo plano, lembrava um enorme caldeirão soltando brumas grossas de fumaça. A névoa que se formava acima de suas cabeças tapava qualquer visão que estivesse a mais de dez metros do chão, de modo que só escutava os barulhos distantes das pessoas.

Madame Hooch estava no meio do campo, rodeando a caixa que guardava as bolas do jogo enquanto esperava os times se prepararem. Nada além de certa irritação e impaciência atravessava seus olhos cor de âmbar.

Ao inferno com aquele jogo, nem ao menos tinham lhe alertado que iriam jogar contra a Sonserina. Foi nas três pancadas: jogo daqui a duas semanas, Lufa-Lufa contra Sonserina, Lufa-Lufa tem que ganhar. Sonserina ganhou.

Todos haviam se olhado com caras pasmas e correram para mudar as táticas.

Mas agora tanto fazia porque suas pernas estavam bambas. O estrago seria hediondo de qualquer maneira. Porque diabos Lufa-Lufa não tinha ganhado? Ah, como seria diferente ter que defender o gol quando eram Beatrice, Anny e Becky, e não os armários da Sonserina que vinham em sua direção. E ainda nem tinham chegado, aquelas pragas. Harry, Simas e Sam estavam na entrada do vestiário, espiando os movimentos de Madame Hooch, porque quando ela fizesse menção de levar o apito aos lábios, eles dariam o sinal para o time ficar de pé.

Era um bom time, o da Grifinória. O que os diferenciava dos outros não era quando estavam em campo, e sim quando estavam fora dele. Era por isso que eles se saiam tão bem no campo, embora essa mesma teoria não servisse para o bom desempenho da Sonserina, especialmente naquela temporada.

Harry foi até o meio do campo, trocou algumas palavras com a professora de vôo, ela lhe acenou um não com a cabeça e depois fez um gesto para cima, olhando a névoa, então ele se afastou, olhando para baixo. O cabelo dele tinha pontas rebeldes, de um negro morno, exatamente como os cabelos de Tom. Exatamente como Tom. Gina soltou o cabo da vassoura em suas mãos. Tivera que sufocar um grito.

Tinha novamente onze anos. Foi despertada pelo som semelhante ao das últimas gotas d'água sendo sugadas de maneira voraz pelo ralo.

A menina com olhos sonolentos espiou ao redor do quarto. Seus livros estavam no chão. Todos eles. Mas somente um havia caído aberto.

Gina ficou olhando-o fixamente. Quem é que tinha feito isso? Mas as janelas estavam fechadas, e travadas. Travas de ferro.

Saltando uns meses para o futuro: Gina está correndo pelo corredor úmido da escola com aquele diário na mão. Escuta o ruído de água jorrando suavemente a alguns metros de distância. Ela está indo até lá, porque é doloroso se desfazer de uma coisa que já é sua, mas não podia ficar mais com o diário, tinha dito demais. Ele conseguira, com seus olhos enganosamente calmos, simplesmente saber do tudo que queria. A menina viu o próprio reflexo na poça de água que saia pelo banheiro. Arremessara o livro ali para que se desintegrasse e voltara cheia de terror e agonia para o quarto.

Mais tarde ela sentiria a mão pesada de Tom passar para o ombro de outra pessoa. Tinha uma terceira pessoa... uma pessoa, não um vulto do passado. Tomou o diário de volta. Sinto muito, Harry, mas com você isso não vai acontecer.

A pequena Gina tornara-se obcecada por personalidades. Porque Tom Riddle é assim, porque consegue enganar, como consegue ser tão gentil, ser tão perigoso? Porque é que não existiam mais pessoas fascinantes como ele?

Um som de apito levado pelo vento avisou que a Sonserina já estava pronta. Gina ouviu um rápido movimento em suas costas e quando se virou o time estava todo a postos: Simas batia os pés no chão como um cavalo pateando impaciente, Eleanor, uma das únicas garotas do time, arrumava a gola da capa elegantemente e Sam chupava os dentes. Mais atrás, os irmãos Madwick, ambos muito altos e com narizes retos e intermináveis, mantinham posturas idênticas de prontidão. Não eram gêmeos, mas tendiam a fazer quase as mesmas expressões.

"Vamos entrar pela direita", disse Harry.

"Isto está ficando repetitivo", fez Simas.

"Esse é o objetivo."

Os sete jogadores da Sonserina apareceram na outra extremidade do campo, os uniformes verdes suavizados pela névoa, como se estivessem por detrás de um papel manteiga, mas todos altos. Muito altos. As bases das arquibancadas os cercavam, estavam numa espécie de subnível e a névoa que deslizava acima e parecia ter vida própria os ocultava do resto dos alunos, de modo que Dino Thomas irradiou após o som do apito,batendo nas encostas das colunas e ressoando de volta:

"Sonserina entra em campo! Promete grandes surpresas desta vez! Uma delas são as sete novas e extraordinárias Vassouras XS. Isso deve ter dado um bom prejuízo..." Ele fez um gesto amplo e extasiado, e o megafone voou para o chão, produzindo um ruído ensurdecedor de uma pancada violenta que fez as pessoas chiareme levarem as mãos aos ouvidos.

A professora McGonagall pigarreou, sem jeito, e murmurou algo para o garoto pelo canto da boca crispada.

Inferno. Que começasse logo aquela droga de jogo, ver os olhos dos artilheiros da Sonserina a fitando com malícia era um mau presságio.

"Você está bem?", Harry murmurou para ela.

A mão de Gina era apertada com uma força dolorosa por todos do time adversário. Entre meia dúzia de curtos segundos, sua mão ficara estável entre a deles.

Pernas passaram por cima das vassouras. Madame Hooch deu alguma advertência que ninguém se interessou em ouvir. As pessoas lá em cima bufavam. Pela segunda vez, o apito soou. Simas disparou do seu lado como um tiro na direção do céu. A algazarra aumentou nas arquibancadas, agora parecia que estavam inventando um jingle.

Gina deu um impulso no chão e no segundo seguinte estava no alto, entre os McBean. Alguns garotos da Corvinal assobiaram para ela enquanto se dirigia para o seu querido aro.

Dino apresentou os times e a professora soprou uma terceira vez, no que a goles foi solta, juntamente com os balaços. Um ninho de gente se amontoou em cima da goles numa espiral vermelha e verde, a fazendo desaparecer no ar. Logo em seguida, Malcolm Baddock saiu com a bola debaixo do braço.

Gina seguia cada minúsculo movimento daquela bola como um gato vidrado nos movimentos de um ratinho. Martin McBean e Pritchard disputavam a goles. Pritchard deu um violento puxão na extremidade da vassoura de Martin, que saiu girando loucamente pelo campo. Adeney Swaine agatanhou o ar e agarrou a goles, indo sibilante na direção de Gina para marcar, o que não aconteceu porque um balaço batido por Simas a distraiu, arrancando algumas mechas de seu cabelo pálido. Ela soltou a goles. Esta caiu no colo de Sam, que rapidamente desviou o jogo para as bandas da Grifinória.

Gina olhou para o alto. Harry pairava sobre a balize, logo acima de sua cabeça. Mais adiante, Draco se inclinava na vassoura como se quisesse deitar sobre ela. Havia uma expressão muito austera em seu rosto negligente; ele apertava os olhos faiscantes e fixos em Harry.

"Harry, olhe o Mal..."

"Preste atenção,Weasley!" berrou Eleanor.

Gina virou-se rapidamente para a frente. William Savoy, um garoto que tinha na boca um dente sim outro não, atirou-lhe a goles, certamente não com a intenção de fazer pontos, mas de machucá-la, porque mirou em seu estômago.

Gina não tinha reflexos tão bons quanto os de Harry. Tentou virar de lado, mas tudo foi rápido demais. Suas costelas estalaram num som desafinado. Ela viu Eleanor se aproximar com os dentes trincados. Então um vulto grande caiu de cima e fez sua vassoura empinar para frente como um cavalo sem rédeas.

Era Draco Malfoy.

"Idiota!", alguém gritou.

Alguém faria a caridade de explicar o que era aquilo tudo? As mãos de Draco se seguravam com certo desespero na vassoura dela e iam escorregando, ele já estava cravando as unhas na tintura. Treeeck.

O frágil material da maldita vassoura rachou. Uma fissura fina surgiu em sua superfície e foi crescendo. As talas da madeira pulavam para fora dos feixes. Gina empurrou o cabo para baixo, mas aquela porcaria já não servia para nada. Estava destruída, não iria descer de jeito nenhum.

"Fique quieta, Weasley!", berrou Draco.

Mas a última fibra que os sustentava no ar rasgou-se com um ruído prolongado e a vassoura se fez em dois pedaços. Draco caiu metros e metros, sua capa verde e prateada se soltou no ar e foi flutuando até desaparecer sob a névoa. Gina despencou alguns palmos, o toco de vassoura ainda resistindo, avançando para frente em caminhos tortos como se pudesse estar sentindo o desespero da dona em descer, então, de repente, Gina estava segurando um pedaço de madeira inútil e morto.

Hermione deu um pulo em sua cadeira.

"Filho da..."

"Que falta descarada!", disse Dino em sua foz ampliada. "William Savoy merece voltar pra casa, no mínimo."

Não na opinião de Rony. Na opinião de Rony, William Savoy teria sua nojenta pele arrancada à faca. Porque era isso, entre outras coisas, que ele estava gritando no ouvido de Hermione.

Então aconteceu uma coisa tão absurda que o fez se calar abruptadamente.

Um rastro verde indo direto em Harry. Inacreditavelmente, era Draco. Ele dissera alguma coisa que fez Harry bufar, depois tentou uma manobra realmente muito esquisita para derrubá-lo, o que não deu certo porque, por algum motivo desconhecido, ele não se segurava na vassoura com as duas mãos, uma delas estava firmemente fechada e um brilho dourado irradiava dentro dela.

Houve falatório e tumulto, todos começavam a se levantar para ver a confusão mais de perto; Malfoy escorregando por uma extremidade de sua própria vassoura e Harry esticando a mão para pegá-lo, mas Draco não abria a mão, nem ao menos olhava para Harry. Quando escorregou, estagnou na altura da balize da Grifinória, pendurado na vassoura de Gina. Ela ainda estava gemendo de dor por ter fraturado as costelas, e pareceu tanto confusa quanto surpresa. Segundos depois os dois atravessavam a turva atmosfera lá em baixo. Agora os falatórios haviam parado como se houvesse a vontade maior de escutar algo, já que não podiam ver, mas nada veio em resposta.

Um fluxo se moveu afoito atrás de Hermione; as pessoas estavam todas descendo. Rony não havia ficado nem para esperar Dino anunciar o fim da partida, pulou por cima das cadeiras e saiu das arquibancadas em direção ao campo. Hermione ainda fitou Harry antes de seguir a multidão. Ele atravessava a barreira de névoa em direção ao chão mais rápido do que seus olhos podiam registrar.

Ela se debateu entre as pessoas que se acumulavam no meio da grama. Algumas corriam de um lado para o outro feito baratas tontas.

"Onde está a garota?"

"Saiam do caminho!", disse uma voz. Snape vinha com a respiração forte, atrás dele vinha o Professor Binns. "Dêem licença!"

O campo pareceu uma enorme arena silenciosa. Hermione se esticou por cima do ombro de uma garota da Sonserina.

Snape chegou até o corpo parado de Draco e virou cautelosamente seu dorso para frente.

O aspecto era de uma pessoa petrificada sobre o gelo, sem cor, sem vida, havia sangue manchando seu rosto, mas gotas grossas de água começaram a cair e o limparam. Uma chuva começou.

"Voltem para o castelo!", Snape disse após um tempo. As pessoas deram curtos passos para trás. "Para dentro!"

Hermione recebeu fortes encontrões nos ombros. No fim, acabou sendo levada pelo fluxo até a saído do campo. Parecia que a chuva tinha dobrado de intensidade e agora caia sobre as pessoas em doloridas gotas.

Do outro lado, Minerva andava rápido na frente de Rony, que carregava Gina. A cabeça da garota pendia fragilmente para trás, dando a assustadora impressão de estar deslocada do pescoço.


Harry sentara-se do lado de fora da enfermaria junto com Rony e esperara minutos que pareciam passar com uma lentidão enlouquecedora.

Depois que voltara da sala dos professores, tinha uma visão extraordinariamente nova sobre tudo que havia acontecido. Eles lhe disseram que os lábios de Malfoy não se moveram nem por um segundo e que ele simplesmente fizera uma tal de Liga trincada que era geralmente usada para confundir o adversário. Harry não sabia disso. Evidente que não, era o artifício mais idiota que alguém já pudera ter inventado em toda a história do Quadribol, nem ao menos merecia um parágrafo em Quadribol através dos tempos. Fora mencionado em uma frase qualquer, num período curto e sem importância.

Já havia pegado o pomo, o desgraçado. Cinco minutos depois do início do jogo, meu bom Merlim, como?

Agora Rony se levantava e andava produzindo um toc-toc-toc ritmado.

Hermione entrou, trazendo o Profeta Diário na mão.

Ela olhou para Rony, que não retribuiu o olhar, e depois para Harry.

"Problemas familiares afetam até mesmo os nervos de aço" ela disse, reticente.

"Sabe o que me disseram na sala dos professores?" Harry a cortou. "Madame Hooch disse que a Liga Trincada era uma explicação, mas Snape deu seu voto a favor da visibilidade nula. Droga, isto aqui é vermelho!" ele agitou a capa. "Visibilidade?"

Rony deu um muxoxo de desprezo.

"Bem, é verdade, não é? Quero dizer, você nem viu que o pomo já estava no jogo."

"E você é tapado o suficiente para não perceber nada de errado nisso."

"O que é que tem de errado? Qual é a merda que está errada?"

"Não." replicou Hermione em voz alta. "Todos estão errados."

"Ao inferno. Minha irmã pagou pelas suas idiotices." Rony continuou, dirigindo olhares fuzilantes para Harry."

Harry não respondeu.

"O que está errado pra você é que Malfoy foi mais rápido. Esse é seu problema."

"Rony..." fez Hermione em tom cansado.

"O que está errado é que vocês caíram numa armadilha, todos vocês. Devia ter deixado aquele diabo cair e se espatifar no chão feito bosta."

Hermione revirou os olhos. "Foi isso o que aconteceu..."

"Você foi atropelado depois que o pomo havia sido pego", insistiu Rony, "Gina foi atingida no exato segundo após o jogo ter terminado. As mocinhas da Sonserina devem estar tirando uma com a cara de vocês agora, e você não percebeu nada! Nem quando entraram em campo! Não se deu conta em nenhum minuto que estava na merda de uma armadilha! Raciocínio lento! Raciocínio lento!"

O quadro atrás dele fez um repreensivo "shhh", que foi se prolongando à medida que Rony o ignorava.

"Nós entendemos o que você sente...", dizia Hermione.

"Não foi culpa de ninguém...", Harry completava

"...William Savoy vai receber detenção..."

"Explique para toda a gente que estava assistindo que foi tudo planejado...", rebateu Rony.

"Shhhhhh"

"...ah, Rony, não precisa usar palavras sujas..."

"Raciocínio len..."

"Já chega!", Hermione atirou o Profeta Diário na mesa. Depois balançou a cabeça. "Vejam isso."

Corpo desaparecido em terreno nobre.

Às três horas da madrugada de hoje, o Ministério recebeu uma coruja e pensou imediatamente ser algum tipo de trote. Mas parecia não ser bem assim. A mensagem informava, em letras trêmulas, sobre um assassinato acorrido na mansão Malfoy, em que a vitima seria o mordomo Albert Archway, 56 anos, que, como explicou a Sra. Malfoy em visível assombro quando a equipe do Ministério bateu em sua porta, trabalhava ali a mais de trinta anos. A casa foi revistada por completo e nenhum corpo foi encontrado. ...

Nada mais aconteceu até que Madame Pomfrey apareceu na porta e liberou Gina para visitas, contanto que nenhum ruído maior que a respiração dos pacientes fosse escutado.

Rony entrou. Hermione fitou Harry por um tempo e, dando-lhe um pequeno sorriso, entrou logo em seguida.

Nada havia ultrapassado os limites da anatomia humana, pelo menos era o que parecia: a cabeça de Gina estava bem centrada no corpo. Os olhos dela estavam fechados, seus cílios compridos e alourados formavam uma linha debaixo das pálpebras, alguém tivera a minúcia de trocar o sujo uniforme de Quadribol por uma camisola de flanela e pentear seus cabelos, que se espalhavam sobre o travesseiro em suaves ondas. Ela arfava e movia os dedos na direção da palma da mão quando os três se aproximaram, como se quisesse apertar uma varinha inexistente.


Da cintura até o pescoço, Gina era uma máquina. Tinha órgãos trabalhando dentro dela, a fazendo viver. Mas ela não os sentia. Nem sequer lembrava de ser humana. De ter mãos, braços, pernas. Sua respiração vinha dolorosa e entrecortada, mas não sentia falta de ar, e sabia, portanto, que estava viva.

Um verdadeiro milagre.

Era isso que os bruxos eram? Sagrados? Uma das razões para o Ministério esconder tanto aquelas pessoas dos trouxas era que talvez as religiões deles entrassem em colapso. Tudo que eles acreditavam, o que tinham certeza, viraria um enorme ponto de interrogação. Porque bruxos quebram o pescoço e dias depois estão andando normalmente, como se nada tivesse acontecido? E porque podem se transformar em outra pessoa tomando uma poção? Porque são diferentes. Porque são deuses; uma nova espécie de vida inteligente no planeta, alienígenas, e todas as alucinações que trouxas costumam ter acordados.

Gina fez um inventário do próprio corpo. Conseguia mover a coluna porque estava conseguindo virar a cabeça, isso era bom. Estava fraca demais para falar. Isso não era bom. Seus canais e veias e músculos dentro do pescoço ainda deviam estar se recuperando.

O teto alto de pedra da enfermaria foi tomando forma. Estava escuro, uma luz opaca e prateada delineava as sombras nas paredes.

Quanto tempo havia passado desde que entrara na enfermaria? Um dia? Uma semana? Lembrava vagamente de vozes ao seu redor, barulho de sapatos roçando o piso. Fechou os olhos novamente.

Estava olhando Harry em sua vassoura. Malfoy apareceu de repente. Malfoy caiu, caiu em cima dela. A presilha prateada que prendia sua capa brilhou refletindo uma luz que vinha de algum lugar e não era solar. A capa ficou vagando pelo ar como uma folha de papel. Draco desapareceu metros abaixo.

Draco.

Gina abriu os olhos.

Tinha gosto de metal na boca. Aquele gosto de pilha que você fica quando há elétrons introduzidos no seu corpo. Levantou-se. Porque as enfermeiras não colocavam a jarra de água perto dos pacientes? A jarra estava no outro canto da sala! Gina estranhou isso. Parecia que haviam feito propositalmente. Andou até lá.

Ao lado da jarra encontrou o Projeta Diário. A primeira página mostrava uma estranha foto sem cores do que parecia ser uma linhagem curta de alguma família tradicional do Reino Unido. Todos os rostos eram muito parecidos, finos, pálidos e cheios de significados. Apenas um homem, no fundo da foto, atrás de uma garota com expressão assustada, indicava não ser daquela família. A nota no rodapé explicava o resto.

Então percebeu um ponto claro no resto da enfermaria com o canto dos olhos. A figura branca e doentia de Draco descansava a menos de um metro de distância. Respirava tão suavemente que se não fosse pelo maldito cabelo platinado ofuscando na luz da lua, passaria despercebido. Mas estava ali, o desgraçado. Vivo.

Não que o quisesse morto. Mas, olhe só, estava menos machucado que ela.

Esta é sua família? pensou enquanto se aproximava, seus pais têm alguma coisa a ver com isso? Ah...tem sim. O mordomo viu o que não devia? Não tinha sangue azul e portanto não era o suficientemente digno para bater o paletó do seu pai?.

"Maldito seja você", Gina murmurou na voz mais baixa que conseguiu.

Uma peculiaridade extremamente inesperada aconteceu em seguida. Ela inclinou a cabeça para mais perto, analisando a fria expressão de Malfoy mesmo dormindo, os ossos do maxilar e a pele de um branco fantasmagórico e surreal, aspirando o cheiro que era diferente de qualquer outro que já pudera sentir. Gina adorava cheiros, e o dele atiçou todas as camadas de pêlos das suas costas. Então ele simplesmente sorriu.

Gina engoliu um grito que quase fora dado. A mão dele se projetou para fora das cobertas e agarrou seu pescoço. Seu coração latejou na garganta.

"O que está olhando, Weasley?", disse Draco numa voz saída do inferno. Os olhos translúcidos ferviam de alguma coisa que, no momento, era impossível descrever.

Ele fez uma coisa rápida com os dedos no pescoço de Gina que doeu como os diabos. Estava tateando cada veia perto da jugular, cada ligação dentro da carne.

"Maldita seja você!", ele disse, e a largou.

Gina já não apenas antipatizava com Draco. Agora o desprezava também. Chegava a sentir-se tentada a partir em sua direção com a droga da varinha.

Mas não estava com ela agora. De modo que percorreu os olhos pelo chão e viu o Projeta perto do pé da cama. Como esperava que acontecesse, Draco seguiu seu olhar.

"Ele vinha de uma família trouxa." rosnou Gina.

"Alarme falso", replicou ele depois de um tempo.

"Explique isso para o Ministério."

"Não há nada para explicar. Ele sumiu, ponto final."

"Que dia é hoje, Malfoy?"

Draco estreitou os olhos para ela.

Idiota, tinha caído direitinho. A data de emissão do jornal era 27 de Outubro. O calendário na parede indicava que estavam na madrugada do dia 29. Certo. Isso não significava muita coisa, é verdade, era possível que Malfoy tivesse acordado em algum momento, espiado o jornal e voltado pra cama. Mas como, se estava coberto de faixas pelo corpo? E havia tido uma má reação àquilo; ficara a fitando com os olhos esgazeados. Por um momento Gina quase pode achar graça.

"Volte a dormir, Weasley", ele disse, e esticou o braço para fechar o cortinado que cercava sua própria cama. Antes que pudesse desaparecer por trás dele, Gina lançou um olhar para o braço de Draco.

Tom a deixava ver suas coisas. Ela não podia fazer isso com Fred e Jorge, não podia fazer com ninguém. A garotinha jamais entrava no quarto dos irmãos, era uma espécie de regra na casa. O quarto de Tom tinha tanta coisa, objetos inéditos que podia examinar o quanto quisesse. Gostava particularmente da sua coleção de livros; os levava para o tapete no meio do quarto e os lia enquanto as pessoas entravam e andavam pelo dormitório sem nunca saber que ela estava ali. Era apenas um pequeno vulto do futuro.

A menina gostava de luz. Tom odiava. Esticava aqueles braços compridos e brancos, onde as veias esverdeadas percorriam sob a pele até as mãos, e puxava as laterais das cortinas, interrompendo sua leitura.

Gina ficou onde estava por alguns minutos, observando a cortina em sua frente.

O céu começava a ganhar tons mais claros de roxo e azul, as nuvens se dissolviam e se afastavam entre os raios de sol ainda muito fracos.


Alguém, provavelmente a Prof.ª Minerva, decidira por não anular o jogo, mas dar uma chance para que ele acontecesse de novo.

Malditos eufemismos.

Então as caras distorcidas do time da Sonserina passaram a ser mais freqüentes. Ao inferno com elas, o jogo acabou por não valer, então que fizessem caretas à vontade.

Harry sabia que era uma injustiça. Perguntava-se como reagiria se estivesse no lugar do time da Sonserina. Bem, não massacraria o time adversário, pra começar. E ficaria muito aborrecido, no mínimo.

Mas aos poucos tanto fazia se tivessem perdido ou se iriam ter outra chance: Harry havia tido outro acesso. Estava sozinho desta vez, no caminho para as Estufas. O céu tornou-se vermelho, a Floresta Proibida parecia estar sangrando, e mesmo que tivesse sido muito rápido, pôde escutar ruídos diferentes do que o rodeavam. Sons que pareciam vir do passado, percorrendo milhares de décadas, uma música que talvez tivesse estado na moda a umas três décadas atrás.

Quando tentou explicar para Hermione o que acontecia, não conseguiu.

"Arrancando minha vida e jogando noutro lugar", disse, sentindo-se escorregar para a borda da poltrona no Salão Comunal "É isso que parece."

"Como assim?"

"Minha pele dói. Ela arde como se estivesse sendo arrancada e eu tenho alucinações, achando que o mundo todo está sangrando."

Ele parou de tentar porque a cor de Hermione ia sumindo.

"Olhe, Harry, devia falar com alguém."

"Estou falando com você."

"Eu não posso fazer nada em relação a isso."

"Nem ninguém."

Era um joguinho idiota aquele que estava fazendo com ela. Hermione sabia o que ele evitava e ele sabia que ela sabia. Melhor assim, então não precisaria ter de escutar sua própria voz dizendo que não comentava aquele assunto com outras pessoas por medo de que elas lhe dissessem o que ele vinha esperando anos para ouvir.

Estava com medo. Estava com muito medo.

Naquele instante, uma multidão entrou. O salão Comunal da Grifinória ficou de repente pequeno demais, o que geralmente acontecia nos intervalos do almoço. Uma cabeça ruiva apareceu perto do buraco do retrato, e no minuto seguinte Rony estava se sentando ao lado deles. Tinha uma expressão realmente confusa.

Rony olhou para Harry de outra maneira desde que haviam tido aquela discussão ao lado de fora da enfermaria. A semana toda tinha passado e ele mantinha a mesma cara emburrada, mas não agora.

"Quando ela entrar, me avisem." disse ele numa voz encovada.

"Entrou", Harry falou em seguida.

Gina passou atrás das poltronas deles. Enquanto ela subia as escadas para o dormitório feminino, Rony murmurou:

"Ela está esquisita."

Hermione pôs os cotovelos no braço da poltrona de Rony, o olhando com muita agudez.

"Por acaso a Sr. Weasley sabe o que aconteceu com a filha na semana passada?"

"Logicamente que não."

"Rony!"

"Preste atenção, se eu contar para mamãe o que aconteceu, precisarei falar de Malfoy também. Isso não faria bem para o coração do meu pai e da minha mãe."

"Está inventando desculpas esfarrapadas, não precisa nem mencionar a droga do nome dele. Pelo amor de Deus, Rony, se sua mãe descobrir que..."

"Não vai descobrir", Rony desviou os olhos. "Ela vai querer saber de Harry, e então vai ferrar tudo."

Hermione se calou. Mas não porque tivesse desistido de argumentar, e sim porque estava com raiva.

Harry achou que estava na hora de falar também.

"Porque acha que ela está esquisita?"

"Porque eu encontrei sangue na saia dela."

Inesperadamente, Hermione deu uma gargalhada e olhou Rony com uma expressão que beirava a compaixão.

Ele não se importou.

"Já tentou falar isso com ela?", disse Harry.

Rony maneou a cabeça e assentiu, soltando um prolongado suspirou e se levantando.

Claro. Era isso que ele queria. Que alguém lhe dissesse o que ele precisava fazer, porque desde criança Rony recebera ordens dos irmãos mais velhos, e sem Fred e Jorge em Hogwarts ele sentia-se perdido como um cego em tiroteio.

Ele foi na direção do dormitório feminino.

"Porque estava rindo dele?", interessou-se Harry, virando-se para Hermione.

"Não era nada de demais. Só que alguns garotos são tão ingênuos que chega a ser bonitinho."

"O que você diria no meu lugar?"

"Que talvez devesse tentar falar com ela."

"Porque diabos não disse isso, então?"

"Porque queria que você dissesse."

Ela estava sorrindo de novo. Harry Começava a imaginar que ela o estava achando engraçado.

"Harry?", Hermione falou em tom curioso. "O que acha de Gina?"

Mesmo não sendo o tipo de pergunta que ele esperasse naquele momento, o levou a refletir. Ele achava que as roupas escorraçadas que Julian May usava (sétimo ano da Corvinal) a deixavam parecida com uma pessoa atropelada na Piccadilly Circus, na segunda-feira, ao meio dia. Que a cor do cabelo de Priscila Duffis era da mesma tonalidade do rabo de um rato. Que quando Charlotte Derwent tentava pensar ficava parecida com um babuíno. Que Sarah Somerset nunca guardava um maço de dinheiro dentro da saia porque ela mesma não cabia na saia. Achava também que Gina Weasley era uma mistura de tudo isso. Uma mistura bem sucedida.

"Porque, você vê ...?"

A voz de Harry foi abafada por um grito. Hermione virou-se bruscamente na cadeira, ao mesmo tempo em que uma quantidade extraordinária de garotas descia às pressas do dormitório feminino como se alguém tivesse anunciado um incêndio lá em cima.

"O que... o que é?", Hermione perguntava para elas, mas nenhuma delas parecia a estar vendo enxergando ali.

Então veio um segundo grito. Harry largou uma exclamação, Hermione o olhou debilmente sair pelo outro lado da poltrona e correr na direção da escada, depois o imitou.

Harry viu lhe lançarem olhares estranhos, quase odiosos, na escada. Elas faziam uma quantidade insuportável de barulhos, aquelas garotas – grunhiam, gemiam, e o olhavam. Subiu o último degrau da escada em caracol sentindo um forte cheiro de tinta.

Olhou para baixo. Hermione parou bruscamente atrás. Os corredores que davam para os dormitórios costumavam ser escuros por não haver janela alguma em suas extremidades, de modo que não era impossível que o líquido negro que escorria pelo tapete fosse sangue.

Rony estava encostado na parede com uma expressão atordoada no rosto que Harry só vira nele quando estava no segundo ano e sua irmãzinha Gina fora levada para dentro da Câmara Secreta. Dessa vez Gina não fora capturada para canto algum. Estava bem ali, ao lado dele, puxando uma alça da mochila enquanto duas gêmeas pulavam por cima dela contorcendo os dedos de nojo e desaparecendo num quarto qualquer. Depois que ninguém mais gritava ou chiava, o silêncio havia voltado.

Gina se moveu assustada para o lado, trazendo a mochila consigo, que foi fazendo um rastro negro pelo chão, e um frasco de vidro saiu rolando até os pés de Harry e Hermione. Um frasco vazio de tinta. Havia alguns livros caídos pelo tapete, com coisas nas páginas que brilhavam, e pedaços de papéis flutuavam pelo ar feito penas de travesseiro. Gina sacudiu a mochila de cabeça para baixo. Mais uma tonelada de papeizinhos picados caíram de dentro. Eram tantos que eles foram chegando perto de Harry, que estendeu a mão e deixou que um pousasse vagarosamente nela.

Viu o papel.

"Alô?", Harry estava chamando e olhando fixamente para uma direção entre as árvores escuras. Ninguém respondia. Era o silêncio mais profundo em milhas de distâncias, mas ele sentia uma pessoa ali. Estava tão perto que talvez... "Quem está aí?" tornou a perguntar.

Mas veio uma resposta. Harry acabou aprendendo que sempre vinha uma resposta, por mais improvável que fosse, e naquela noite de caos a resposta foi Morsmordre.

Fora a primeira vez que vira a Marca Negra; verde e brilhante, recortada contra o céu.

Aquela era a segunda.

Não era exatamente enorme quanto a outra, nem verde-ácido como a cor de uma luz radioativa, era pequena, vermelha e brilhante, mas mesmo assim era horrível. E havia dezenas delas, milhares, flutuando no ar como malditas abelhas da morte. Algumas ainda saindo da mochila de Gina.

"Isso é..."

"Sangue", murmurou Hermione, também olhando para o papel na mão de Harry.

"Não". fez Gina, mas não parecia estar negando alguma coisa que já tivessem dito. Na verdade parecia estar falando consigo mesma ou com alguém em sua mente.

Rony ergueu um dedo trêmulo para a irmã.

"Que é que você pensa que está fazendo?"

"Não fui eu..."

"Então porque diabos essas merdas estão na sua mochila?", ele murmurou, os olhos arregalados de medo.

Gina deu um grito e se encolheu na parede.

Hermione se adiantou. Dava pra sentir de longe a sua perplexidade.

"Gina, querida, ninguém está desconfiando de você. Só nos explique o que está acontecendo..."

Ela se agachou ao lado da garota e afastou uns livros para se sentar...e sua mão parou. Harry andou para mais perto, sem saber o que dizer ou fazer, e seguiu o olhar inexpressivo da amiga, que estava cravado no livro mais próximo.

O que se viam não eram parágrafos, notinhas puxadas para as bordas, lembretes, anotações, mas sim terríveis rabiscos sangrentos de crânios e cobras e símbolos rebuscados de um alfabeto transcendental que ocupavam páginas inteiras, cobrindo as letras impressas do livro.

Passos apressados subiram pela escada, e no segundo seguinte a Profª Minerva aparecia ofegante atrás deles.

"Recebi reclamações absurdas de que uma..."

Ela aparentemente passou pelo mesmo processo de espanto que Harry, Hermione, Rony e até mesmo Gina, pois a garota ainda observava com os enormes olhos castanhos o rosto de Hermione.

"Senhores, achei que já estivessem suficientemente crescidos para conseguir discernir uma brincadeira de uma demonstração de loucura. Também aviso que serão descontados cem pontos da casa pela falta de respeito com seus colegas. Agora, me digam qual dos quatro fez isso?"

Era algo bastante irracional dizer alguma coisa. Tudo estava ali pelo chão, pelo ar, o sangue cintilando por toda parte, o que quer que houvesse para ser explicado não seria mais do que era possível ver. Ao menos era o que Harry pensava.

"Estou avisando", disse Minerva.

Harry viu Hermione puxar muito discretamente o livro que estava aberto para debaixo das vestes, que, graças a Deus, eram longas e o cobriram.

"Foi um mal entendido."

"Como se explica um mal entendido desta natureza?" replicou Minerva.

"São só... ", Hermione ficou pensativa como quando construía uma idéia apocalíptica para fechar uma redação de História da Magia, "demonstrações."

O coração de Harry disparou. Que infernos Hermione estava tentando fazer? Era tola o suficiente para achar que Minerva, com a cara de quem continha toda a raiva acumulada em anos, fosse acreditar naquela maldita invenção? As pupilas de Gina dilataram tanto que agora todo o seu olho parecia uma bola negra. Ela suplicava para todos em silêncio, inclusive para ele, embora não o tivesse olhando nem uma vez desde que entrara pelo corredor. Talvez fosse por isso que ele achasse tanto que era para ele que ela suplicava.

"Para o projeto", murmurou Gina com a voz fraca, tornando-a mais firme em seguida: "Para o meu projeto. É sobre Arte das Trevas, achei que se jogasse esses papéis coma Marca Negra desenhada nas pessoas durante a apresentação, a coisa ficaria mais real... quero dizer, realmente muito pavorosa..."

A cor saudável da professora fugiu-lhe das faces.

"Certamente que seria pavoroso! Teria o exemplo exato de uma multidão de gente entrando em colapso. Ora, Srta. Weasley, francamente!" Minerva fez sinal para que ficassem de pé e se aproximou dos quatro, com um olhar frio, falando quase num cochicho. "Isto é uma coisa muito séria, entenderam? Não voltem a desenhar, ou pronunciar ou fazer qualquer coisa que tenha relação com Você-Sabe-Quem. Existem pessoas com verdadeiro pânico da palavra 'Lord das Trevas', vocês não podem imaginar a reação de uma delas se estivesse aqui neste corredor agora, não podem imaginar o terror e ódio que certas pessoas alimentam em relação a ele", a professora pousou o olhar rígido sobre a cicatriz de Harry. Por um instante ela mesma pareceu tomada de rancor. Depois virou-se para Gina: "Mude o tema do seu projeto, meu bem. Alquimia, o que acha?"


Não estava sendo tão rejeitada quanto Rony, Harry e Hermione, porque não conhecia muitas pessoas, e se as garotas com quem dividia o quarto agora a olhavam com puro nojo e se juntavam para chamá-la de louca quando entrava no dormitório, não fazia diferença; elas sempre foram assim. Mas dessa vez a situação era realmente séria. Se tratava da Marca Negra. De Voldemort. E cedo ou tarde aquelas coisas todas cairiam no conhecimento de sua família, ou por Dumbledore ou pelo Profeta.

Parecia que todo mundo estava de repente ficando doido. Porque não fora ela quem fizera os desenhos, e nem era dela o sangue usado neles.

Ah, meu Deus, mas a cara de Rony... ela sentiu o que ele sentiu. Os olhos dele cintilaram dolorosamente, confusos, quase que gritando de agonia, e ficou em choque. Talvez ele nunca esquecesse daquela cena, assim como Gina não iria esquecer a expressão dele.

Enquanto isso era inverno. Hermione se refugiava na biblioteca com os garotos porque o salão comunal ficava mais cheio, principalmente nas proximidades da lareira, e eles viravam motivo de pilhérias azedas do sétimo ano.

"Aos poucos eles vão esquecer", ela disse a Gina numa tarde que parecia ter acontecido a mil décadas atrás. Bem, ainda não tinham esquecido.

Gina lançou um olhar enjoado ao café-da-manhã.

Nem um sonho. Fazia quatro noites que não via nem ouvia Tom. Da última vez haviam se debruçado na janela da torre da Corvinal, a mais alta, e espiado a escuridão infinita lá embaixo, os campos ondulantes e escuros terminando nos recortes das árvores na Floresta Proibida, a brisa noturna assobiando nos ouvidos, gelada, macia.

Ele nunca muda, Gina pensou, rolando uma rodela de tomate no prato. Tom nunca mudava, ela adorava isso. Eternamente teria dezessete anos, pra sempre seria Tom Servoleo Riddle. Desde que ela o conhecera - e tinha sido depois de conhecer Harry – percebera porque Voldemort seria tão temido no futuro. Tom era discreto, estudava uma pessoa antes de atacá-la, com sua cordialidade falsa, deixava ela se enganar até estar completamente envolvida de veneno, então quebrava-lhe as costelas. Fazia coisas que jamais ninguém sonhara que pudesse ser capaz, com dezessete anos apenas.

A pequena Gina estava parada ao lado dele na sala de Aritmancia. Fazia frio como nunca, as calhas estavam entupidas de neve, ouvia-se os ruídos de Hagrid trepando nos telhados para limpá-las.

Heather Giltter era filha de trouxas. Ninguém sabia explicar porque, desde tão cedo, Tom tinha uma simpatia inexplicável por ela. Naquele dia, enquanto amanhecia na Hogwarts onde Harry e Rony estavam, pela janela atrás de Tom entrava a fraca claridade avermelhada do pôr-do-sol. Tom observava Heather fazer suas últimas anotações do dia. Talvez da vida. Mas ele a olhava com tanta concentração que ele próprio deixava de existir, tinha um desejo explícito nos olhos, mas não era pela Heather. Ao menos não pela sua bela pessoa. Uma semana depois, Tom deixou escapar que Heather tinha desaparecido no caminho de casa. Ele estava usando luvas rosadas como a pele dela.

Isso era magnífico, ah, dava calafrios. Não a crueldade dos fatos, mas a inteligente malícia com que seu cérebro precoce funcionava. O que seria capaz de fazer? Ninguém nem tinha idéia. Era o que deixava Harry anos luz atrás dele; transparente demais, honesto demais, manso demais. Mas se quisesse... Se Harry um dia quisesse, seria tão horrível quanto Tom pôde ser.

Quando Gina finalmente desistiu de tentar comer e saiu da mesa, Rony perguntou se estava se sentindo bem. Ela lançou um olhar tranqüilo para o irmão e atravessou o salão principal, saindo pela enorme porta que dava para o hall Principal.

Ali, subindo os degraus da escadaria de entrada, estava Pansy Parkinson. Ela se virou para olhar Gina com desprezo, depois pareceu lembrar-se que a garota fizera a Sonserina subir para o primeiro lugar no campeonato entre as casas, e dissimulou um sorriso radiante, como se ela e Gina fossem amigas íntimas a bastante tempo.

Desviando de qualquer caminho que viesse a cruzar com o dela, Gina diminuiu o passo e fingiu ir para os jardins, esperando a outra desaparecer no topo da escadaria, e em seguida subiu também. O ar lá em cima era estranhamente escaldante, as pedras retiam os raios de sol, o teto baixo e inclinado dava ao corredor uma dimensão desconfortável.

Passos começaram a chamar-lhe a atenção no fim do corredor. Uma voz ecoou em tom de cumprimento.

"O que é isso?", Pansy disse em seguida. Não veio nada audível em resposta. "É de sua mãe?"

"Queime-o."

Por um segundo, Gina imaginou que Pansy estava conversando com Tom. Era uma voz arrastada e rouca que respondia. Mas, não...não podia ser...era mais...baixa.

"Fale baixo, a Weasley vinha logo atrás de mim."

"Mesmo?"

Gina viu uma sombra se mover no chão.

Mas que droga. Ela olhou os lados, impaciente. Foi o tempo suficiente para entrar no armário de capas encostado na parede, fechar a porta com as unhas para evitar que as dobradiças fizessem barulho, então os cheiros diferentes de no mínimo quinze alunos invadiram suas narinas, alguns estranhos como terra úmida e outros agradáveis e doces. Ela mordeu o lábio e apurou os ouvidos. Agora eles andavam para mais perto.

Um vulto passou tão de repente pela brecha onde Gina espiava que ela tremeu. A cabeça escura de Pansy maneou e saiu da frente, dando lugar a um rosto branco onde dois olhos claros se estreitavam com a desconfiança suave de um felino.

"Vou sair sem você se não estiver na escada ás sete da noite em ponto." Draco disse, uma voz tão baixa que foi difícil diferenciá-la dos ruídos que o próprio armário fazia ao estalar.

"Ele vai... quero dizer, vai estar lá? Em carne e osso?"

"Você sabe as regras. Nada de magia."

"Mas Ele..."

"Não seja estúpida, Parkinson. Pense. Estamos pisando em ovos porque? Pra receber Papai Noel?"

A garota pareceu perder o fôlego.

"Vou poder assistir tudo?"

Draco fez um ruído que lembrava um miado engasgado.

"Você vai participar de uma cerimônia. Sabe o que é uma cerimônia, Pansy?"

"Reunião festiva, ou até fúnebre, de caráter solene, por ocasião de um acontecimento, uma solenidade, formalidades e cortesias entre pessoas que não se tratam com familiaridade; etiqueta. É uma palavra bonita..."

Enquanto Pansy falava, Gina mantinha os olhos nos de Draco. Uma frieza irônica cintilava entre os suaves tons de azul dentro de cada íris. Ele olhava Pansy com malícia, mas ela não notava. Como diabos ela não notava?"

Gina se lembrava de Draco, o garoto arrogante e de cabelos sem cor que provocava seu irmão e tripudiava sobre tudo que não fosse suficientemente polido. Tinha algo errado. Aquele não era Draco, porque Draco não guardaria uma faca nas vestes e a apalparia na frente das pessoas...exatamente como estava fazendo agora.

Pansy rapidamente se calou. Contemplou o cabo da faca em silêncio.

Era a coisa mais linda que Gina já tinha visto em vida. Aquilo devia ser caro, devia ter tanto ouro e ser tão pesada que poderia cortar um dedo se a lâmina fosse simplesmente deixada em cima dele.

"Branca...", Pansy murmurou, aproximando a mão da lâmina.

Branca. Era exatamente a palavra que Gina procurava para descrevê-la. Totalmente de ouro branco, dispersando luz para todos os lados enquanto Draco a movia no sol. Havia desenhos finos em fileiras por toda a sua extensão, pareciam ser feitos de minúsculos grãos de cristal.

"Não, é a réplica", Draco disse.

"Ah, claro. A verdadeira só quem poderia encontrar seria Tom Riddle."

Ele a olhou, cético. Pansy percorreu o dedo pela face da lâmina.

"Porque fala como se tivesse acabado? As coisas ainda nem começaram, Pansy."

Gina estava hipnotizada pela faca, mas não como Pansy estava. Ela parecia ter perdido a razão e fechado as mãos sobre a lâmina radiante daquela coisa. Draco sorriu para ela, um sorriso bonito. Depois puxou a faca violentamente para o lado, Gina viu sangue espirrando pela porta do armário, sentiu sangue em seu próprio rosto, Pansy abriu a mão, atônita; um enorme corte atravessava sua palma.

Draco riu como um garoto entusiasmado.

"E nem é a verdadeira! Imagine o que a legítima poderia ter feito."

A porta do armário foi fechada repentinamente. Do lado de fora, Gina escutou Pansy murmurar rapidamente uma infinidade de palavras mal pronunciadas.

"Ah, não fique chateada", disse Draco em sua voz arranhada, enquanto alguma coisa deslizava pela superfície da porta, apressadamente. "Pense que poderá descontar mais tarde..."

"Eu não vou!"

"É claro que vai. Você já tem seu lugar na nossa mesa."

Draco se afastou do armário e levou Pansy nos calcanhares.

Gina encostou no fundo do armário. Ela sentiu a própria respiração sair lenta e descompassada, tirou as capas de sua frente procurando ar, mas começava a ter um tipo de recordação sufocante, esticou a mão para empurrar a porta mas ela acabara de ser aberta.

Gina foi para o chão.

"Gina?"

Ela franziu a testa para a claridade e olhou para cima. Era Neville, com sua careta estranha de desconfiança. Ele a ajudou a se levantar.

"Que é que está fazendo?"

"Procurando meu... minha...", Gina ficou de boca aberta catando o que dizer, sentindo-se a figura humana mais patética do planeta. O boato dos rabiscos da Marca Negra, juntamente com o acontecimento em seu primeiro ano em Hogwarts, já lhe dera a fama de 'meio débil mental', e Neville não fazia a menor força para camuflar isso. Seus olhos recaíram nas capas. "Minha capa!"

"Mas poderia fazer isso do lado de fora do armário."

"É..."

Ela sentiu o rosto ardendo.

Neville a rodeou tenebroso e procurou a capa que lhe pertencia o mais rápido que pode.

"Quer que eu pegue a sua?"

"Não precisa", Gina agarrou a primeira capa que sua mão encostou. "É esta", e foi embora pelo corredor.

Uma claridade dourada iluminava o estreito corredor. Alguns barulhos vinham das salas ao lado: ruídos de vidro estalando, líquidos borbulhando, mas nenhum som ecoava mais pelas paredes que a voz de Draco. Estava nos ouvidos de Gina como sangue latente na pele. Mas como poderia ser? Se tivesse fechado os olhos, se tivesse apenas escutado, teria visto a imagem de Tom. E como nunca tinha percebido?

A capa era de Harry, ela viu quando revirou as dobras do tecido. Era simplesmente a situação mais idiota que já passara.

Tom possuía uma porção de frascos rotulados e vedados na gaveta debaixo da cama. O borrão pequeno e ruivo sentado no canto do quarto sempre foi a única coisa colorida dentro dele. O próprio Tom era uma criatura em escalas de preto, branco e cinza. Mas havia tantos cheiros. Ela sabia que Tom jamais iria abrir os frascos pra lhe mostrar o que tinha dentro de cada um, de modo que tentava decorar os cheiros e pesquisá-los nas aulas de poções. Claro que nunca teve certeza se os acertava. Mas tudo aquilo despertou nela um enorme interesse por essências. A que mais desejava experimentar era a de Tom... mas lembranças não têm cheiro.

Harry tinha. Gina acabava de aproximar as narinas da capa e aspirar o tecido; o cheiro era tão fraco que não resistia muito tempo e sumia a caminho do nariz, como se fugisse ou evaporasse no ar.

Alguma coisa pesada desabou na sala ao lado e fez Gina abaixar a capa. A porta estava aberta e ela olhou de relance por entre ela.

Hermione estava abaixada ao lado de Harry, e uma pilha de livros havia despencado ao redor deles. Os dois pareciam não se incomodar com isso. Hermione passava a mão nas costas de Harry como se ele estivesse vomitando.

Vomitando coisa nenhuma. Gina viu, Harry estava abaixado no chão, agarrando a cabeça parecendo querer tirá-la do pescoço a todo custo. Murmurava alguma coisa que soava estranhamente como um canto sussurrado entre lágrimas, meio confuso. Ele não estava cantando, estava querendo gritar e não conseguia.

Hermione o olhava com os olhos arregalados. De repente, Hermione pareceu perceber gente na porta e olhou por cima do ombro. O rosto claro e sardento de Gina virou para ela. As duas se encararam. Hermione balançou a cabeça e levou um dedo aos lábios, pedindo que Gina fosse embora.


Ah...calem a boca, Gina pensou, fechando os olhos, então olhou para a mesa onde um grupinho de garotas do sexto ano murmuravam excitadas. Mas ela não conseguia saber do que se tratava porque todas falavam ao mesmo tempo, se atropelando. Algo do tipo, ela tentou mais uma vez se concentrar no título dos livros que procurava, liquidação na Witch Level, e todas elas ficam combinando de invadir a loja no dia do Natal porque Iernny, o Escalafobético, pode estar lá com sua banda egocêntrica e distribuir discos de vinil autografados.

Discos de vinil! Os bruxos herdavam sempre tudo que um dia fora moda com os trouxas.

Então ela viu o livro que procurava, Alquimia Elaborada Vol. LV, o assunto que a Profª Minerva sugerira. No dia, Gina não gostara nem um pouco do tom da professora, ainda que tivesse inventado sobre o projeto de Artes das Trevas. Foi quase como que proibir uma revista de publicar coisas relacionadas ao escândalo das jóias da Coroa. Hogwarts estava pagando pra não se meter em confusão. O problema era que o livro estava na última prateleira e, por mais que fosse um pouco alta para sua idade, Gina não a alcançava. As estantes da biblioteca de Hogwarts eram comparadas, nos livros, com os arranha-céus de Manhattan. Apenas comparadas.

"Pode me dizer qual é", veio uma voz de cima. "Pode me dizer qual é o livro."

Gina ergueu os olhos. Ah, sim, tinha se esquecido das escadas. Aquela garota trepada numa delas parecia simpática e disposta a ajudar, então Gina disse-lhe qual era o livro. A garota sorriu e o pegou, e Gina esticou o braço para o receber.

Porque nós não podemos prever o futuro?

"Mil dragões enfurecidos!", a garota gritou e se esquivou, em seguida perdendo o equilíbrio.

O livro caiu no colo de Gina. Alguém exclamou um palavrão em algum lugar da biblioteca. Gina pulou para frente e agarrou o punho da garota, mas ela gritou mais ainda, dessa fez esperneando com fôlego.

Os olhos atordoados de Gina recaíram sobre seu próprio pulso ainda estendido no ar, esperando o livro.

Gina tinha treze anos. Pela segunda vez, acordara com o barulho desafinado de um ralo borbulhando ou sugando. Então, um tiro. Ela nunca tinha ouvido um tiro antes, mas sabia que era um, porque todas as pessoas dentro do acampamento haviam gritado e saído para o campo. No segundo seguinte ela estava sendo puxada por alguém, e uma ou duas vozes chamavam seu nome em voz alta. As raízes das árvores da floresta enroscavam-se nos seus pés e ela caía, caía, e caía infinitas vezes. Então ela sentiu uma enorme mão puxá-la do chão pela gola do casaco como se fosse um gatinho, e todas as vezes que erguia os olhos, encontrava os de Fred, cheios de um brilho nocivo e exasperado. Da última vez que o olhou, foi para ver o reflexo verde da Marca Negra espelhado nos olhos do irmão.

"Weasley!", disse uma voz atrás dela, a trazendo bruscamente para o presente.

O presente, pensou Gina, escondendo o pulso, talvez seja pior que o passado.


"Durante todo o tempo que fui diretor desta escola, nada parecido aconteceu", disse Dumbledore, vendo Gina passar o dedo suavemente pelo pulso, chocada demais para dizer alguma coisa. "O que me deixa igualmente sem reação, Srta. Weasley."

"Para mim está muito claro o que se deve fazer", resmungou Snape fitando a garota por debaixo da cortina de cabelos oleosos.

Minerva o olhou.

"Confesso que me dói imensamente ter de dizer que Severo pode estar correto", continuou Dumbledore vagarosamente."Sabe o que está no seu pulso, Srta. Weasley?"

Gina fez que sim com a cabeça.

"Sabe o que significa?"

Ela tornou a fazer que sim. "Mas eu continuou dizendo que não entendo como a Marca Negra veio parar no meu pulso."

"Estamos acostumados a trabalhar com alunos problemáticos", cortou Snape, caminhando ao redor da garota como um morcego, aparentando não ter prestado atenção no que ela dissera. "e impulsivos. É algo que faz parte da fase tumultuosa que é a adolescência, mas se não somos capazes de impor limites..."

Minerva foi vista lançando olhares de advertência para Snape.

"Talvez você pudesse estar sob efeitos de alucinógenos." continuou ele numa voz falsamente mansa.

"Eu não uso alucinógenos!", disse Gina entre dentes.

"Muito bem", zangou-se Dumbledore, estreitando os olhos claros através dos oclinhos de meia lua. "Se precisar de mais alguma coisa, mando lhe chamar, Severo. Pode voltar para a classe agora."

Snape se virou abruptamente e caminhou até a porta.

Após isso, um silêncio torturante zuniu nos ouvidos de Gina.

"Preciso que entenda", recomeçou o diretor, tão sereno como se Snape jamais estivesse estado naquela sala, "o que vou dizer agora. Tento acreditar no que me diz, mas se torna quase impossível. Portanto terei que utilizar uma poção", Dumbledore levantou-se e caminhou suavemente até Gina, pondo a mão no ombro da garota. "Suponho que já conheça o Veritaserum?"

Ela continuou fitando-o. Minerva saiu do seu campo de visão.

"Vocês vão falar com os meus pais?"

"Fique calma, querida... tome isto", disse Minerva, entrando novamente no seu campo de visão, estendendo uma mínima taça cheia de um líquido fumegante que Gina pegou com a ponta dos dedos e virou sob os lábios.

Tinha de haver uma faca cutucando sua espinha. Gina não lembrava de ter se sentindo tão lúcida desde que tomara uma espécie de antídoto por ter caído dentro de um caldeirão transbordando poção do esquecimento. Mas aquele antídoto apenas deixava você um pouco agitado demais, e seu cérebro totalmente aceso e atento, e o Veritaserum doía. Sua visão escurecia, sua espinha ardia, cada disco dela, e você simplesmente não conseguia se mover.

A voz de Minerva apareceu engrolada em sua mente, como se a boca da professora estivesse submersa em água: Fale-me sobre a Marca em seu pulso, meu bem. Então Gina sentiu falta de ar; abriu a boca para puxar o ar, e lá estava, falando como uma tagarela incontrolável.

"É a Marca Negra, a Marca de Você-Sabe-Quem e de seus comensais. Antigamente ela era vista quando eles estavam planejando alguma monstruosidade, era como um aviso irônico. Ela foi vista novamente a três anos atrás...sobre um acampamento... na Copa Mundial de Quadribol..."

Foi você quem a fez?

"Não, eu estava com meus irmãos."

Mas a Marca que está no seu pulso...você a fez?

"Sim."

Gina ouviu a porta da sala se abrir com violência, e uma mulher entrou por ela. Mas ainda estava escuro demais, a na velocidade que as coisas iam clareando...porque é que a mulher estava gritando agora? O que é que estava acontecendo? Porque diabos tinha dito sim? A fênix de Dumbledore era um borrão vermelho e agitado num canto, a mulher tinha um chapéu achatado na cabeça...A Profª Sprout.

"Alvo", ofegou ela, "Está errado, tem alguma coisa errada! Argo Filch... Morto! A gata ainda lambia-lhe a mão quando os meninos o encontraram!"

Gina viu-se totalmente sozinha no meio da sala oval de Dumbledore. Ocorreu-lhe a visão de sua mãe recebendo uma coruja urgente da escola, informando de modo eufêmico que a filha sofria de abalos psicológicos que tendiam para o lado lunático-revoltoso, inspirados nos Comensais da Morte, e por isso estava sendo convidada a se retirar de Hogwarts. Seria a última coruja que sua mãe receberia em vida. Olhando para o próprio pulso, começava a duvidar de si mesma. Não mentiria sob um Veritaserum, mentiria? Por um acaso, aquilo era possível?

Acabara de descobrir que, se não estava louca, fizera um inimigo realmente considerável. Estava sendo usada, era isso. Como um estalo, a palavra inimigo a fez lembrar da conversa entre Pansy e Draco, no corredor. Pansy iria para a mansão Malfoy uma semana antes do Natal. Quando todos estivessem deixando Hogwarts, ela embarcaria num coche com ele, exatamente como fora sugerido. Draco não estava brincando.

Agora, Gina sabia porque. Ah, tudo se encaixava tão bem... De alguma forma, ia tudo se repetir, as Marcas, os acessos, as mortes, mas com certeza ela não era a única a notar tudo isso, e era por esse motivo que os professores estavam nervosos, como se pudessem ver a rolha no gargalo da garrafa saindo lentamente...um dia ela sairia dali explodindo.

O problema é que aquela Marca não iria sumir com água e sabão. Tudo o que Gina precisava era estar no lugar certo, na hora certa, nos dias certos, e com as pessoas erradas. E Isso seria mais ou menos dali a uma semana.