Génesis

Babilónia…

Si vis pacem para bellum

Quem entrasse naquele café nunca desconfiaria do que se passava por detrás da fachada de rés do chão simples, ornamentada por uma única porta de madeira e algumas janelas, semi escondidas por pesadas cortinas vermelhas. Não era um lugar que chamasse a atenção de todos, nem passava completamente despercebido aos olhos dos mais observadores. Pessoas iam e vinham pela estreita praça gótica, correrias loucas sem tempo, outras ignorando simplesmente o pequeno painel onde se desenhava caprichosamente o nome Rosal.

Sentado no banco de madeira meio desfeito no centro da pequena praça, um homem de longos cabelos azuis acabava calmamente o seu cigarro, deixando cair as beatas no chão despreocupadamente, esperando o tempo passar. Fixava os olhos azuis penetrantes no nome do pequeno café, um sorriso aflorando nos seus lábios. Era ali.

Levantou-se lentamente jogando o cigarro no chão, pisando-o. Escondeu as mãos nos bolsos do casaco escuro, avançando a passos vagarosos até à porta de madeira. Clareando a voz, abriu-a, entrando no local.

Ouviu um pequeno sino preso na porta tocar ao abri-la. O calor abafado do interior era muito bem vindo depois de vinte minutos esperando na rua ao frio de inverno. Apesar do constante odor a tabaco e a pouca claridade que entrava, o café era acolhedor. Claro, para quem sabia apreciar.

O recinto não era grande. Apenas algumas poucas mesas dispostas um tanto perto umas das outras e o balcão do lado direito onde a maioria das pessoas se decidia a beber o café. Pessoas alheias ao verdadeiro objectivo do Rosal. Passantes que na sua simplicidade do dia a dia, sem nenhuma quebra de rotina, iam-se mantendo afastados do que realmente acontecia no café.

Kanon sabia. Era dos poucos que mantinha o verdadeiro paradeiro daquele lugar em segredo. Ele mesmo detinha um papel activo nesses esquemas ocultos, tráficos, armas, drogas, dos quais eram extraídos diariamente milhões em cash. Milhões esses que eram devidamente distribuídos por todos: um bom pedaço de notas verdinhas diariamente para cada um.

Foi por essa razão que, ao entrar no Rosal, Kanon sentiu imediatamente todos os olhares dos presentes. Se fosse outra pessoa sentir-se-ia no lugar errado. Um tanto amedrontado, ameaçado por toda aquela atenção. Levantou as mãos num gesto de entrega, um sorriso brincalhão nos lábios.

- Kanon…

- Boa tarde – respondeu aos presentes, avançando até ao balcão - Oh Francês, um dry martini !

O Francês, dono do Rosal, encontrava-se detrás do balcão como sempre. Os longos cabelos ruivos, presos num rabo de cavalo baixo e desleixado caindo sobre a camisa preta. Sempre preta, escura, contrastando com o vermelho fogo do cabelo. Perfeito. Sem dar sinal de atenção, as mãos finas continuavam a limpar os copos acabados de lavar. Por derradeiros cinco minutos desviou a atenção do que estava fazendo, preparando a bebida sem dizer uma palavra.

Kanon sorria enquanto o observava verter o martini no copo largo, sempre mantendo o mesmo olhar matreiro fixo nele.

Sentado numa mesa, balançando a cadeira, o detentor dos magníficos olhos azuis claros estava mais que atento à cena. Expelindo com uma calma assustadora o fumo do cigarro por entre os lábios, jogando as cinzas de tempos a tempos no cinzeiro sobre a mesa, fixava cada sorriso, cada gesto que pudesse parecer deslocado para com o seu ruivo. Kanon podia ter tendências suicidas. Era conhecido de todos que gostava de levar tudo ao extremo. Acompanhou milimétricamente a mão do gémeo tactear na mesa enquanto esperava. A sua aproximação lenta… bem lenta quando pegou no copo cheio, deslizando por breves segundos e roçando nos dedos pálidos do ruivo.

O silencio da sala foi quebrado pelo pequeno ruído de um gatilho sendo activado.

Kanon afastou-se prontamente de um francês impassível, levando o copo consigo. Sentou-se no banco alto perto do balcão, mantendo as costas apoiadas nele, fixando agora o loiro do outro lado da sala com o mesmo sorriso matreiro e o olhar desafiador. O loiro que o fixava com uma expressão não muito agradável, o fumo sendo soprado aos poucos através dos lábios finos, a pequena arma de calibre 9 mm escondida sob a mesa de madeira pronta para ser disparada.

Isso, num lugar comum, poderia ser perigoso. Com pessoas comuns, poderia trazer problemas. Mas o Rosal não era um lugar comum.

- Precisa aprender a não mexer no que não lhe pertence, Kanon.

O gémeo riu.

- Por acaso tem o seu nome escrito algures?

- Acredite que continuando assim, não tarda o seu ficará gravado numa bela lápide em mármore.

Milo, o grego, o escorpião entre outros apelidos que lhe davam no meio. Sempre tão possessivo, ciumento e exagerado. Lançando o veneno onde e quando queria.

- Vamos crianças, não queremos sangue aqui – a voz calma do espanhol cortou os ânimos - …por enquanto. Francês! Mais uma rodada para todos. Creio que vamos precisar…

Com uma demora propositada, Kanon levantou-se do banco, abrindo caminho por entre as mesas até chegar ao seu destino: a mesa do escorpião.

Milo não retirou os olhos dele um segundo que fosse, até este acabar o seu caminho na cadeira à sua frente.

- Falta o Afrodite.

Milo assentiu, ao terminar o cigarro. Levou o que restava dele ao cinzeiro, esmagando-o calmamente com o indicador, sempre sustentando o olhar de Kanon.

- Ele não demora. – respondeu colocando o revolver sobre a mesa, ao alcance rápido no caso de necessidade – Ele nunca demora.

Afrodite nunca demorava. Era rápido, certeiro, clean. Detestava chacinas de brutamontes que geralmente esburacavam as vítimas até se tornarem irreconhecíveis: verdadeiros rios de sangue escorrendo pelas ruas escuras. Nunca. Afrodite amava a morte em toda a sua simplicidade. Silenciosa, incolor, apenas um tiro certeiro no lugar apropriado. Algo que era completamente erradicado nos dias actuais pelos barulhentos filmes americanos em que os heróis disparavam dez vezes as balas existentes das armas. Ridículo.

As duas íris normalmente tão claras tomavam uma tonalidade escura nessas situações. Naquela situação.

Afrodite, ou o sueco como raras pessoas o chamava, não hesitava. A hesitação era algo demasiado perigoso para se deixar sentir; o suficiente para criar a sua perda.

À diferença dos outros, não bebia, não fumava, não se entregava aos deliciosos vícios que fazem o mundo terreno valer a pena. Todas essas abstinências seriam fatidicamente espelhadas na sua aparência: o longo cabelo loiro sempre caprichosamente penteado, os fartos cachos caindo sobre o pólo azul escuro. Nos lábios rosados um constante sorriso aflorava a cada vitoria… e Afrodite não perdia.

- Tic tac tic tac… - deixou escapar um risinho sádico enquanto balançava a arma na mão direita, sempre apontando para os dois homens a sua frente – o tempo esta escasso…

Quem os iria buscar ali, naquela ruela deserta? A policia que raramente aparecia? Mais facilmente o mundo ruiria que aparecesse algum tipo de segurança naquele lugar.

- Portanto… recapitulando… - continuou, a voz suave ecoando no beco vazio – trocaram 500 gramas da melhor produto tailandês por sacos de farinha. Mandaram em doses para serem distribuídas nos meus bairros. – encostou a arma à face pálida, fingindo-se pensativo – hum… onde estará a droga agora?

- Nós não fizemos nada Afrodite! Juro!

Ah, o medo era algo divino. A voz tremia, a adrenalina subia, o instinto de sobrevivência aflorando rapidamente… seriam capazes de vender a mãe para saírem ilesos.

- Não creio que isso seja verdade… - respondeu alargando o sorriso – a heroína estava nas vossas mãos e entre vocês e os 'peões' não havia mais ninguém… a farinha é facilmente reconhecida, até por simples peões.

- Fomos obrigados…

- Hum… resposta errada.

Sem barulho. Apenas um pequeno silvo fez-se ouvir devido ao silenciador da arma antes de um dos homens cair no chão. O outro deu um salto para o lado, afastando-se do cadáver, a respiração acelerada. No chão, apenas uma pequena poça de sangue começava a formar-se perto da cabeça do cadáver.

- Portanto… foram obrigados…

O outro negou com a cabeça, recompondo-se, acabando por admitir a fraude. A droga sim tinha sido trocada. Tinham sim ficado com ela e acabado por vender ao dobro do preço. Era ideia do companheiro. Ele não tinha nada a ver naquela historia… tinha sido um inocente levado pela ponta do nariz.

- E o dinheiro? – perguntou Afrodite calmamente, voltando a balançar a arma na mão.

- Não o tenho… ele gastou-o… não sei em quê, não sei como… juro que não sei de nada Afrodite

- É pena… - suspirou teatralmente – ainda são umas notas perdidas…

Sem dar tempo de resposta, Afrodite disparou o segundo tiro. O corpo caiu inerte no chão perto do outro, os olhos arregalados. Serviço feito. Teria de dar o exemplo, não fossem outros ter ideias tristes como aquela. Se não podia confiar nos distribuidores, não havia como confiar em mais ninguém.

Escondeu calmamente a arma no casaco que mantinha sobre o braço esquerdo, pronto para voltar. Olhou o relógio de pulso verificando que estava atrasado… mas um trabalho bem feito demorava o seu tempo. Com um sorriso nos lábios, afastou-se lentamente dos dois cadáveres, voltando a descoberto até à avenida principal. Ainda teria uns bons quinze minutos de caminho até ao local de encontro.

Uma chuva miúda começava a cair. As nuvens ameaçadoras parecia indicar que a noite tinha chegado umas horas mais cedo. Um perfeito dia de Inverno para ganhar refugio na toca.

- Afrodite tratou do assunto.

A voz calma chamou a atenção de todos os presentes. Um homem alto de exóticos cabelos lavanda tinha entrado sorrateiramente no Rosal, sem que ninguém tivesse pressentido a sua chegada.

Mü era uma pessoa perigosa com a capacidade de passar despercebido em qualquer situação. Ainda hoje a policia procurava o homem capaz de assassinar o Velho em plena praça pública. Sem uma única pista, rasto que seja, depoimentos de varias e varias testemunhas oculares nenhuma o mencionava. Um informador perfeito.

- Você seguiu-o… - debochou Aioria, outro grego encarregado da zona Norte da cidade juntamente com Death Mask.

- Você ficou qui sentado no fare niente – retrucou o italiano que não dava mãos a medir para tirar o grego do sério.

Mü sorriu retirando o casaco húmido da chuva, colocando-o sobre um dos bancos altos. Aquelas reuniões eram sempre divertidas. Shura falava despreocupadamente com Milo e Kanon. A droga circulava bem; o dinheiro entrava para as mãos do Francês; o negócio não parava de crescer.

A pequena placa de madeira à entrada indicava agora que o café encontrava-se fechado ao publico. Apesar disso, o Francês permanecia atrás do balcão, abrindo a caixa registradora. A "caixa de Pandora" como era conhecida pelo grupo.

As condições eram simples: ninguém mexia nela além dele; ninguém pensava sequer nessa hipótese. Cada um com o seu trabalho evitando conflitos. O dinheiro chegava irmãmente às mãos de cada um todos os dias, sendo sempre guardado um pouco para a caixa comum. Esse era usado em casos extremos de eventuais detenções, pagamentos de resgates, contratação de advogados extra, subordinação policial. Não seria a primeira vez…

Continuava a faltar Afrodite, mas os restantes estavam presentes.

O Francês contando o dinheiro. Aioria e Death Mask trocando farpas. Mü encostado ao balcão degustando o café latte feito pelo ruivo, momentos antes. Shura atento, Kanon fixando e Milo à beira do colapso nervoso.

O Francês voltando a colocar o dinheiro na caixa. Aioria e Death Mask distraídos trocando farpas. Mü pressentindo algo estranho colocava calmamente a bebida sobre o balcão, levando a mão ao banco ao seu lado onde deixava o casaco. Shura ajeitando-se na cadeira, Kanon sorrindo a medida que estalava os dedos um a um; Milo atento, desviando o olhar para a entrada.

O tilintar do pequeno sino sobre a batente era o sinal que ela se abria lentamente.

- Policia judiciária!

Dois homens tinham entrado no café, fechando a porta num estrondo atrás deles. O mais alto sorriu ao deparar-se com oito armas reluzentes apontadas directamente para eles.

- Calma… somos polícia pacífica.

- Um dia Aioros, essas suas brincadeiras vão acabar mal…

O moreno riu, avançando calmamente até ao balcão.

- Vocês amam quando digo isso… - comentou dando dois tapas leves no ombro de Mü - …Shaka manda beijos abraços e muito muito carinho.

Mü parou o movimento de levar a xícara aos lábios instantaneamente à menção do advogado.

- Não ligue Mü – comentou Saga sentando-se perto dos outros – Shaka mandou cumprimentos e pediu para não se atrasar na reunião de segunda.

- Exactamente – repetiu Aioros fingindo-se de indignado – é uma forma educada de dizer "beijos, abraços, e não se esqueça do nosso encontro na segunda feira."

Mu revirou os olhos guardando a arma de novo no casaco. As gargalhadas conseguiam ser ouvidas da pequena praça, que se encontrava agora vazia. Culpa da chuva intensa.

Um informador, um contabilista, dois policiais, um advogado e os restantes cooperadores era o necessário para evitarem problemas maiores. A droga chegava, era devidamente separada pelo Dandy, colocada nas mãos dos boss e distribuídas com a ajuda dos peões. O Dandy tratava de recolher o ouro; ou melhor dizendo; o ouro chegava até ele. O Dandy raramente aparecia no Rosal. Demasiado fechado para ele. Demasiado tóxico. Deixava os assuntos mais importantes nas mãos dos restantes membros. Apenas tomava conhecimento do ocorrido por Mü, que o informava diariamente da situação.

O Rosal era demasiado simples.

A chuva começava a abrandar quando Afrodite abriu a porta do Rosal. Fechou despreocupadamente o chapéu, colocando-o ao lado do balcão.

- Boa tarde – sorriu, sentando-se num dos bancos altos, ao lado de Aioros – belo dia não?

Mü sorriu de volta acabando de beber o café. Aioros entendeu que o bom humor do sueco era obra de um trabalho bem feito e completo.

- Onde estão? – perguntou num suspiro, referindo-se aos cadáveres.

- Oh, vão encontrá-los cedo ou tarde, tenho a certeza – respondeu o sueco pegando no café simples que o Francês acabava de preparar – afinal, a nossa polícia é de grande competência…

Aioros estreitou os olhos. Afrodite, constantemente provocando. Apesar de 'ligeiramente fora do caminho' como gostava de dizer, ele e Saga não eram maus policias. Pelo contrário, eram tão bons que conseguiam passar despercebidos no meio dos restantes. Policiais dignos, guardiães da justiça. Apenas de 'outro tipo' de justiça. E quem guardava os guardas? Ninguém.

- O exemplo precisava ser dado. Queremos todos nos devidos lugares; ninguém bancando por aí de traidor.

Milo retirou os Marlboro do bolso do casaco, pegando num cigarro e levando-o aos lábios finos. Saga pegou numa folha rabiscada do bolso, colocando-a sobre a mesa.

- Novo plano da cidade – começou, captando a atenção de todos os presentes – vai haver reforços nas batidas policias a Norte, nos bairros nobres. Choveram denúncias de habitantes que presenciavam cenas não muito agradáveis a meio da noite.

Aioria e Death Mask remexeram-se na cadeira quando Saga olhou directamente para ambos. A zona Norte estava sob as suas protecções e durante os últimos tempos tinham precisado livrar-se de… certos inconvenientes.

- Um bando de moleques começou com brincadeiras de gente grande – falou Aioria calmamente – apenas demos o exemplo.

- Um exemplo bem dado – respondeu o italiano com um sorriso sádico nos lábios.

- Todos sabem que ninguém brinca com o patriarca

Ao acabar de falar, Aioria retirou uma pequena saqueta de plástico com pó branco, jogando-o sobre a mesa.

- Quanto pensa que vale isto? – continuou perguntando a Saga.

- Algum.

- Pois imagine metade desse "algum". Era o preço ao qual estava a ser oferecido por esta beleza colombiana.

Saga deu de ombros. Com o patriarca ninguém brinca. Com o patriarca nunca ninguém brincava. Afinal era ele quem puxava os cordelinhos quando algo se complicavam. O patriarca era a família e a família era para o patriarca.

- Mande saudações ao patriarca Mü.

Mü esboçou um pequeno sorriso, assentindo com a cabeça.

- Continuando. Mudança de quantidades… - Milo apagou o quinto cigarro em uma hora, expelindo o fumo calmamente – zona Norte, 700 de coca, 250 de heroína. Em pó. Simples, eficaz, limpo.

Mask e Aioria assentiram.

- Zona Sul: 350 de coca, 200 de heroína. – Shura recostou-se na cadeira. O mesmo de sempre. – Quanto a nós… - Milo olhou directamente para Afrodite – 550 de cada para ambos. A nossa belezura é de origem Vietnamita…

Mask abriu um enorme sorriso, Shura assobiou, Afrodite deixou escapar um suspiro aliviado. Vietnamita, um verdadeiro poço de dinheiro. Do melhor no mercado, ouro sobre azul.

- Perfeito! – Aioros manifestou-se, levantando-se do banco – Quando chega a mercadoria?

- Uma semana.

A voz calma do francês ecoou no Rosal pela primeira vez naquela tarde. Todos olharam para o ruivo, esperando por mais… mas este limitou-se à tarefa de limpar os copos, ignorando-os.

- Daqui a uma semana ela chegará ao porto – continuou Mü, à medida que vestia de novo o seu casaco, acomodando a arma no bolso interior - o Dandy encarrega-se do transporte até a villa, fazendo as partilhas.

- Como sempre vai sobrar para mim… - comentou Aioria fazendo cara de poucos amigos – odeio aquele lugar!

- Oh irmãozinho… não seja carrancudo. A casa do Dandy não é assim tão má – Aioros sorriu encarando o mais novo – talvez um pouco sofisticada demais para alguém como você…

- Falou a voz da experiência…

Aioria e Aioros encararam-se por alguns segundos, medindo forças. O mais velho foi o primeiro a ceder, caindo numa sonora gargalhada, seguido pelo irmão.

- Mü, não quer pedir ao patriarca para…

O lamurio de Aioria morreu quando percebeu a ausência do informador. Questão de segundos. Ninguém tinha dado pela sua partida. O sino da porta parecia miraculosamente não tocar quando Mü passava por ela. Todos estavam habituados aos desaparecimentos súbitos. Sobre o balcão, o Francês pegou em três moedas reluzentes deixadas pelo informador.

- Ele ainda vai explicar como faz isso…

- Não sei se tem explicação Aioria… nem o Dandy sempre tão atento ao que se passa à sua volta consegue segui-lo.

Aioros estendeu os braços para cima, fazendo estalar as costas.

- Visto que sabemos das novidades… - comentou fechando o casaco lentamente – o dever espera-nos. Saga?

O gémeo assentiu, lançando um olhar fixo ao irmão antes de se levantar. Não queria sarilhos. Tinha percebido a tensão entre Milo e Kanon, estava fora de questão arranjar briga. Sobretudo, com o escorpião.

- Como estão as negociações com o Mestre? – perguntou Saga dirigindo-se até à porta.

- Dando frutos. Penso que chegaremos a um consenso sem problemas.

O Mestre era difícil de agradar. Não era velho, mas tinha atitudes de tal. Carrancudo, paciente, calmo. Sobretudo equilibrado. Não pedia para ser agradado ou venerado, apenas respeitado. O Mestre nunca sorria: era de mau agouro. Um sorriso significava a morte de alguém nos dias próximos. Era perigoso fazê-lo sorrir.

Era ele que fornecia o armamento necessário: um aliado indispensável.

- Estamos em falta, sabe disso. – Saga assentiu para todos, concluindo para Milo – ontem perto da estação Norte foi apreendida alguma mercadoria.

Milo fixou o policial, atento às suas palavras.

- Dois revólveres, uma semi-automática e uma metralhadora checoslovaca.

O loiro assentiu. Certamente a mercadoria apreendida era directamente dirigida ao Mestre. Não devia ter gostado de saber que a policia a tinha descoberto a tempo. Devia estar mais carrancudo e fechado que nunca. Milo precisava se encher de paciência e tentar uma abordagem diferente no dia seguinte.

Com a saída dos dois policiais, uma rajada de vento entrou no Rosal. O tempo estava a mudar. Um Inverno mais frio que nos últimos tempos.

- Por pouco não levámos um sermão…

- Não se preocupe, Aioria – respondeu o Kanon – por alguma razão temos os nosso queridos irmãos na polícia. Eles estão lá para 'resolver' alguns casos especiais.

- Não estou preocupado – o moreno esboçou um sorriso – quem parecia de mau humor era o seu querido clone.

- Com Saga entendo-me em casa.

As conversas com Saga limitavam-se a simples monólogos. Saga falava, ele ouvia. Ou fingia que ouvia. Bom, se ele se sentia bem ao pensar que alguma coisa entrava na cabeça de vento do gémeo…o que depois acontecia entre as quatro paredes não era assunto de mais ninguém.

O relógio de badalo indicou as seis e meia. Aos poucos o Rosal começava a ficar vazio. Kanon saíra pouco depois do irmão, Aioria e Shura alegaram ter 'planos' para uma noite bem passada. Não era preciso ser génio para descobrir que esses planos incluíam mulheres.

Afrodite tinha conseguido arrancar Death Mask a mais uma noite de jogo. Um bom jantar, uma excelente companhia, um delicioso vinho. In vini veritas. Única condição: sem assuntos de trabalho.

No calor do Rosal, o francês permanecia atrás do balcão acabando de arrumar, acompanhado por Milo. Este continuava na mesma cadeira de sempre, quieto, fixando-o. O ruivo sabia. Sentia. Arrumava os últimos copos na prateleira.

- São sete e meia…

Fez pouco caso da tentativa de o apressar, continuando com a mesma calma de sempre. No mesmo ritual sagrado de todos os dias. Arrumar o dinheiro no lugar seguro, limpar o balcão.

- Kanon está passando dos limites. – mais uma vez, Milo quebrava o silêncio.

- Kanon sempre passou dos limites.

O grego levantou-se calmamente, pegando no cinzeiro cheio e avançou a passos calmos até ao balcão.

- Ultimamente tem passado demais.

- Kanon é um amante de dinheiro.

- Por isso mesmo, não gosto quando ele tenta tocar no que não lhe pertence. – completou o loiro, um sorriso de canto nos lábios finos – o dinheiro é da caixa comum e ele que não pense em toca-lo para as fins megalomaníacos.

- Ele non conseguiria iludir-me.

Milo pousou o objecto sobre o mármore – Kanon é um mestre enquanto pickpoket. Consegue rouba o que quiser, a quem quiser, sem a pessoa descobrir tão cedo. Mesmo a sua atenção toda não ajudaria se ele decidisse subtrair algumas notas das suas mãos.

O ruivo murmurou em resposta, finalmente saindo detrás do balcão. Milo pegou no casaco que jazia desde o início da tarde sobre uma cadeira no canto na sala. Por mais que tentasse despachar, apressar; o ruivo não ligava. Fechar o Rosal era um verdadeiro ritual sagrado sem o qual o dia não acabava. Ai de quem impedisse o seu bom desenrolar.

Fechar as pesadas cortinas vermelhas, acomodar as cadeiras em volta das mesas, trancar a porta do fundo. Viviam tempos inseguros mas o ruivo não se preocupava com a extrema segurança para o café. Nas ruas era sabido que o Rosal era sagrado. Ninguém lhe tocava. Ninguém pensava em lhe tocar, ou seria um atentado contra o Patriarca. E com o Patriarca ninguém brincava.

Segurando a porta, mantendo-a aberta, Milo abrigava-se da pouca chuva que teimava em cair. Levou uma mão à frente do isqueiro, acendeu mais um cigarro enquanto esperava.

- O meu reino por uma cama quente… - suspirou deixando escapar a primeira lufada de fumo.

Saiu permanecendo de costas, esperando ouvir o tilintar do sino pela última vez naquele dia. O Francês seguiu-o. Aproximou-se a passos calmos, retirando o cigarro aceso dos seus lábios. Inspirou a primeira lufada, sentindo um delicioso alívio. O primeiro cigarro do dia.


Cantinho (mafioso) ariano:

Para melhor entendimento da fic… aqui vai uma pequena lista dos pseudónimos usados para as personagens.

Dandy: Aldebaran

Mestre: Dohko

Patriarca: Shion

Francês: Camus

Os restantes nomes que estão em itálico no texto, como Afrodite e Death Mask são igualmente usados como pseudónimos, mas logicamente associados às personagens do anime.

Esta fic é SIM uma oneshot. Apenas para me distrair, fazia tempo que pensava em lidar com o tema Máfia com os goldies. Primeira tentativa…

Depois desta… entrei demasiado no tema. Amei simplesmente escrever com eles dessa forma, começando instintivamente a pensar noutras cenas. O mais provável é que apareçam mais fics deste género da minha parte. Mas esta daqui, é uma oneshot! XD Não quer dizer que não apareça outra oneshot que compete esta mais adiante… (assobiando)

Concluindo agora… ENORMES agradecimentos a Washu, Deneb e Yuu que acompanharam a fic à medida que ela estava sendo acabada, incentivando-me a continuar.Aliás, a fic é dedicada a Washu!!!! quem diria XP AQUILO QUE NAO DEVE SER PRONUNCIADO (atrasado).

É um tipo diferente de escrita, uma ambientação diferente e um UA diferente… beijão a todos os que leram

A.s.