Nua e crua

Era novamente uma manhã crua, alva e fria. Dezembro. Em várias partes do mundo bruxo o terror fazia-se: mortes misteriosas, vidas corrompidas, famílias inteiras em mudança, desencontros, disfarces, inverdade. Ele lamentava. Lamentava por todos que tiveram suas vidas arrancadas da continuidade por uma disputa de poder negro. Mas tinha uma missão – dolorosa, mas uma missão a ser cumprida. Entrou na casa e suas vestes esvoaçaram atrás de si. Sentiu um imenso frio que parecia tomar conta dele. A casa não era fria. Ele estava frio. Seu corpo tremia de ansiedade e negação. Não queria fazer aquilo. Queria resgatá-la e fugir de tudo o que acontecia, mas precisava. Era uma missão, e ajudaria a todos. Sem avisar nem hesitar, lágrimas caíram de seus olhos e pararam na ponte de seu nariz, levemente adunco. Secou-as rudemente, como se denunciassem sua humana covardia.

Sabia onde ela estava. Bateu de leve e girou a chave na fechadura, abrindo a porta. Sentada na cama, ainda com as vestes trouxas, estava ela. Olhava para o nada, e seus olhos estavam vermelhos e dilatados. Não soube o que fazer. Seu sentimento de negação fazia com que suas mãos tremessem. Precisava controlar-se. Não soube se voltava ou entrava totalmente no quarto minúsculo. Tentou mover-se, mas seus músculos pareciam reprová-lo. Finalmente entrou. O quarto era tão diminuto quanto ele previra. Tinha uma cama de madeira, uma cadeira e uma mesinha com dois pergaminhos enrolados – mas nenhuma pena visível -, um tinteiro quebrado e um livro. Reconheceu-o imediatamente: Viagens com Trasgos, um livro medíocre que Gilderoy Lockhart tinha exigido em seu ano como professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. Tudo ali parecia cuidadosamente planejado para deixá-la irritada: pergaminhos e tinta; mas nenhuma pena e um livro que ela desprezava. O quarto também tinha uma porta anexa, provavelmente o banheiro.

- Olá, professor Snape – disse ela. Sua voz demonstrava que estava esforçando-se para não chorar.

- Olá, srta. Granger. Creio que já sabe por que estou aqui.

- Claro que sei. Garantiram que eu soubesse.

- Eu sei. Preciso desculpar-me – seus olhos brilharam – por isto.

Ela levantou-se e parou em frente dele.

- Por favor, não perca tempo – pediu ela, ainda fazendo força para falar sem tremer.

- Essa com certeza seria minha intenção no passado. Mas antes preciso falar-lhe. Só lhe peço que se sente e não chore.

Ela sentou-se na cama. Os lençóis pareciam imundos, embora estivessem perfeitamente esticados. Ele sentou-se ao lado dela.

- Ambos sabemos muito bem como esta guerra – fez um gesto amplo com as mãos – começou, e não sabemos como vai terminar. Esperamos que termine bem. Eu espero que termine. Já dei muitas contribuições para a guerra, e a senhorita também. Sei que deu, e incansavelmente. Todos são gratos. Eu... Eu não queria fazer o que tenho que fazer hoje. Não mesmo. Mas é preciso. Tem algo a dizer?

- Professor Snape, sinto muito que tenha sido responsabilizado por essa tarefa. Realmente sinto.

- Obrigado, senhorita Granger. Eu preciso dizer algo.

- Diga.

- Simplesmente falarei – disse secamente – e não vou tolerar interrupções, fui claro? Não sei como isso começou. Não sei se foi o peso desta tarefa. Não entendo e estive me concentrando em compreender qual foi o início disto. Deve saber que me sinto responsável por confessar-lhe. Ando pensando com extremo cuidado sobre esta situação e sobre como livrar – ele hesitou – você deste final. Antes julguei que estivesse preocupado apenas em livrar a mim desta função, mas... dediquei muito tempo para ignorar que estive indiscutivelmente pensando na senhorita.

Inspirou. Considerou a cena. Olhou para ela. Estava imóvel. Também estava assustada.

- Senhorita Granger, por favor, não me faça implorar por compreensão.

- Talvez queira dizer que me...

- Sim. – ele afirmou nervosamente. – Sinto o mais terno dos sentimentos pela senhorita. Sei que este discurso tem sido infinitamente ridículo. Perdoe-me. Mas precisava dizê-lo.

Finalmente levantou os olhos. Fixou-os na jovem. Os dela estavam grandes, arregalados e úmidos. Lágrimas rolavam e paravam nas maçãs do rosto, ruborizadas. Era a coisa mais linda que já tinha visto. Levou as mãos até o rosto dela e secou as lágrimas. Se afastava, mas ela o segurou e o abraçou. Ninguém nunca saberia quanto ficaram unidos, buscando um no outro o consolo para suas mágoas. O que sentiam era recíproco. Ele logo procurou sua boca e a capturou, sôfrego. Afastou-se. Ela sentiu que era hora, e levantou-se. Ele fez o mesmo.

- Perdoe-me por isto, por favor.

- Quero que saiba algo... Eu também o amo.

- Muito obrigado. Desculpe – ele também chorava, mas tinha que ser contorlar-se. Qualquer movimento confundiria a cena. Apontou a varinha para o peito dela e ordenou – Avada Kedavra!

Porém, no momento em que a luz verde dirigia-se a Hermione, ele virou a varinha em sua direção, e o jato do feitiço penetrou em seu peito. Caiu com um baque violento. Morto. Hermione Granger abriu os olhos. Por Merlin, não estava morta! Mas Snape...

- Não! Oh, meu Deus, não! – as lágrimas dela caíram copiosa e silenciosamente no rosto dele, enquanto o abraçava.

Tateou o chão úmido e achou-a. A varinha. Procurou o sentindo em continuar naquele mundo em que lentamente todo o bem era consumido. Já perdera a todos. Perder-se talvez era mais sensato do que continuar viva.

Quando, mais tarde, adentraram o pequeno quarto, os seus únicos ocupantes eram duas pessoas – um homem, adulto e uma moça, jovem. Mortos, abraçados. A morte também estava ali: nua e crua.