Caros Amigos,

Venho por esta informar que tive que partir da corte imediatamente. Meu pai querido enviou-me uma carta com notícias preocupantes e, devido ao estado de saúde de minha mãe, resolvi que o último precisava do apoio de sua filha. A pressa impede-me de contar maiores detalhes, por isso, assim que chegar em casa escreverei uma carta para deixá-los devidamente informados.

Atenciosamente,

Hermione Granger

Hermione sorriu ao pensar em quanto seus amigos ficariam frustrados ao lerem sua carta concisa. Porém foi necessário deixá-los dessa maneira abrupta, Harry e Rony protestariam contra uma dama entrar desacompanhada num barco comercial. Até mesmo Gina, que pouco tinha da submissão requerida à uma nobre, acharia imprudente essa forma de voltar para casa. Mesmo que entendesse a preocupação dos amigos, não estava arrependida da decisão de enfrentar essa empreitada. Seu pai, sua mãe e sua Cidade precisavam dela mais do que a pomposa corte real no momento.

"Lady Granger, chegaremos antes do meio-dia." Disse um homem de aparência ameaçadora.

" Obrigada, Capitão, mas receio que é senhorita Granger. " Respondeu Hermione.

" Perdão, Srta. Granger " Respeitosamente falou o homem com um aceno de cabeça. Ela observou-o retornar para seus afazeres e gritar ordens para a pequena tripulação. Embora tenha agradecido pela informação, Hermione não precisava dela para saber que estava perto de sua terra natal. Desde que o sol nascera, passara as horas observando a vegetação que margeava o rio e notara que a floresta adensara e tornara-se mais escura com árvores maiores e mais antigas. Uma paisagem propícia ao nascimento de lendas e superstições tolas. Se havia algo do qual não sentira saudade enquanto estava morando no exterior foi a qualidade que seu povo tinha de continuar com tradições e crenças pagãs. Eles temiam a velha floresta e os seres que acreditavam viverem nelas, jogavam sal para afastarem os fantasmas, ofereciam discretas oferendas e faziam outras séries de coisas que desafiavam a boa fé cristã. Até mesmo o padre fazia vista grossa para as pequenas rebeldias da população, pois sua influência ali era menor do que no resto do reino.

Sabendo que ainda faltavam algumas horas para a chegada, Hermione resolveu compensar as horas de sono mal dormidas. Apesar de acreditar que dificilmente os homens do barco fariam alguma coisa contra a filha do governador, a noite era sempre tensa para ela. Dormia afastada do resto da população com seu pequeno punhal sempre a postos caso precisasse dele. "É preciso confiar desconfiando" dizia seu cínico pai.

" Lady Granger, chegamos à Porto Vermelho. " Ela nem se preocupou em corrigir o homem dessa vez. Simplesmente levantou da posição desconfortável em que adormecera, retirou a quantia prometida da sacola de dinheiro e a entregou ao capitão. Logo depois desembarcou e seguiu seu caminho para a casa do governador no centro da cidade. Não pôde deixar de notar que o número de pessoas pedindo esmolas nas ruas havia triplicado desde a última vez que visitara os pais, além disso, foram raras as vezes em que vira algum camponês vendendo sua colheita nas ruas da cidade e, quando os vira, estavam vendendo artigos próximos do apodrecimento que surpreendentemente eram disputados com fervor pelos cidadãos. Continuou seu caminho até chegar na praça principal e parou em frente à Igreja para observar a simples estátua de São Jorge, toscamente esculpida em pedra. Fez uma nota mental de voltar ali para pedir proteção ao Santo. Apesar de ter morado em um convento, Hermione era pouco carola. Possuía fé em Deus ao mesmo tempo em que possuía fé na razão e raciocínio lógico. Por esses motivos, ao visitar seus pais, não podia evitar de se sentir incomodada com a proximidade que a população tinha com o paganismo. Não existiam, fantasmas, elfos, fadas, duendes e dragões. E mesmo se existissem, a fé cristã deveria ser suficiente para proteger-se de coisas do tipo. Dessa forma, precisava do apoio da espada sagrada que matou um dragão porque ela sabia que o dragão em questão era na verdade uma metáfora para o paganismo. Afinal, voltara para seu lar para salvar sua cidade da crise em que se encontrava e, para isso, precisava fazer seu povo ver além de suas superstições.

Deu um último olhar para o santo e atravessou a praça para finalmente chegar em casa. Bateu na porta e não se surpreendeu com quem viera atendê-la.

" Srta. Granger! Eu sabia que o gatinho laranja que encontrei ontem significava que nosso filhote voltaria para casa! " Exclamou a Sra. Trelawney, a governanta da residência dos Granger.

"Obrigado, Sra. Trelawney. É bom vê-la de novo. " Disse Hermione, sem se surpreender que a mulher dizia ter previsto sua chegada. Ela sempre dizia que havia previsto os fatos depois de eles terem acontecido. Entrou na velha casa e constatou que pouco havia mudado desde a última vez que estivera ali.

"É realmente uma excelente hora para a volta da senhorita, a doença de sua mãe não permite mais que ela cumpra a função de primeira dama da cidade e o velho governador está um pedaço de nervos. Eu avisei a ele que deveria ser cuidadoso este ano. Disse que seria um muito turbulento. Bem, é evidente que não ouviu. " Falou a Sra. Trelawney, acenando a cabeça em desaprovação. Hermione simplesmente a seguiu para o escritório de seu pai enquanto se segurava para não entrar em mais uma discussão tola com a mulher. De pouco adiantavam e só a deixava mais irritada e a governanta mais crente em seus poderes de previsão.

Quando chegaram à sala de espera que guardava o escritório de seu pai, a Sra. Trelawney indicou com a mão para que ela esperasse e foi avisar ao governador quem havia chegado. Encheu-se de alegria ao ouvir seu pai exclamando:

" Hermione? " Não se conteve e passou pela porta e abraçou seu pai que mal teve tempo de levantar da cadeira.

Caros Amigos,

Já estou em casa e agora posso finalmente explicar o porquê de ter partido de maneira tão abrupta. A situação em Porto Vermelho está caótica. É sabido que este ano foi péssimo para as plantações, as poucas chuvas permitiram que somente uma pequena parcela do que foi plantado fosse colhido. Por aqui choveu ainda menos do que no resto do país. Meu pai, temendo que os grãos disponíveis não seriam suficientes para o inverno, decretou que nenhum alimento deveria ser desperdiçado para oferendas na festa de fim da colheita. Os camponeses ficaram muito frustrados a princípio, mas como estavam cientes da gravidade da situação acataram ao decreto. No dia seguinte, um grande incêndio destruiu várias plantações e deixou um considerável número de fatalidades. A tragédia acarretou na fúria da população que agora pressiona meu pai para que ele permita que parte do estoque seja oferecido para acalmar o velho dragão. Demorou um dia para que esquecessem que o temos agora mal será suficiente para o inverno. Esqueceram também que muitos camponeses acendem fogueiras acreditando que agradará o dragão e falham em enxergar que elas poderiam ter iniciado o incêndio. Meu pai sabe que deve resistir à pressão do povo se quiser mantê-los a salvo durante o inverno. Como a doença de minha mãe está cada vez pior ela não tem condições de ajudá-lo ou cuidar da casa. Por isso, tive que atender ao pedido de meu pai que precisa desesperadamente do apoio de sua filha. Guardo com carinho todos os momentos felizes que tivemos na corte e assim que passar a crise espero revê-los.

Atenciosamente,

Hermione Granger

Após terminar a carta Hermione levantou-se para conseguir que um criado a enviasse para a capital. Não precisou sair da biblioteca, pois mal se ergueu e uma moça alegre entrou no quarto, dizendo:

" Olá senhorita, é muito bom tê-la de volta. "

" Olá, Lilá, é muito bom revê-la. " Respondeu Hermione genuinamente alegre. Lilá Brown e Parvati Patil eram ambas filhas de ricos comerciantes e eram constantemente enviadas à casa dos Granger para fazerem companhia à filha deles. Depois que ela foi para o convento passaram a morar na residência do governador para serem damas de companhia da primeira dama. Gostava muito das duas apesar de as achar um tanto quanto cabeça de vento e de idolatrarem demais a sabedoria mística da Sra. Trelawney.

"Sua mãe acordou e deseja vê-la. " Hermione levantou imediatamente e dirigiu-se para os aposentos da mãe. Sentia muitas saudades dela, todavia não pudera vê-la quando chegara porque estava dormindo após ter passado a noite acordada tossindo.

O quarto da primeira-dama de Porto Vermelho estava escuro e cheirava a fechado. A Sra. Trelawney provavelmente mantinha as janelas fechadas para que a brisa fria do outono não piorasse o estado frágil de sua senhora. A mãe de Hermione estava encostada na cabeceira da cama com uma aparência pálida e escuras olheiras. Um leve sorriso iluminou um pouco seu rosto quando viu a filha que sentou na cama e abraçou a mãe.

" Filha, que bom que voltou para cuidar de seu pai. " Falou tão baixo e rouca que Hermione teve que se aproximar para ouvir.

" Vim para cuidar da senhora também. " Respondeu Hermione.

" Já sou muito bem cuidada. " Falou referindo-se à governanta e às suas damas. "O seu pai por outro lado vive um momento difícil. Ele não me escutou e tirou do povo suas oferendas. " Hermione ouviu as palavras da mãe exasperada. O Sr. e a Sra. Granger formavam um excelente casal exatamente por terem um incrível senso prático e um imenso amor pelas ciências. Percebendo a consternação da filha disse:

" O povo precisa das oferendas Hermione, são elas que lhes dão a coragem para enfrentar o inverno. Pensei que soubesse disso. "

" E sei mãe, mas o que o povo precisa para enfrentar o inverno é de comida também. " A Sra. Granger respondeu ao comentário da filha apenas com um sorriso cansado, recusando-se a continuar a discussão. Hermione percebeu que poderia exaurir a mãe se continuassem e resolveu deixá-la descansando. Despediu-se com um beijo e seguiu para seu quarto. Em cima da cama estava uma adorável bola de pelos laranja. Não se preocupou em retirar o filhote de gato da cama e simplesmente deitou ao seu lado. Enquanto planejava o dia seguinte adormeceu.

Ao acordar, Hermione apreciou o fato de ter dormido cedo, pois fora capaz de despertar antes que a Sra. Trelawney viesse chamá-la para o desjejum. Para seguir conforme planejara no dia anterior precisava sair antes que notassem sua ausência. Sem demoras, levantou e vestiu as roupas de montaria que encontrou no armário. Estavam um pouco apertadas, contudo não tinha tempo de procurar por outras. Prendeu seus cabelos em uma trança embutida e desceu em direção à cozinha. Lá, pegou algumas maçãs, um odre de vinho e um pão que havia sobrado do dia anterior. Dirigiu-se ao estábulo e não pode evitar a alegria que sentira ao ver um enorme cavalo castanho na última baia.

"Olá, pão-de-mel. " Sussurrou para seu velho amigo. O animal fora comprado pelo Sr. Granger para puxar carroças, todavia sua pequena filha se apaixonara pela grande besta e implorava para deixá-la cavalgá-lo. E foi assim que pão-de-mel, o gigante gentil, deixou de ser cavalo de carga para torna-se a montaria da pequena filha do governador de Porto Vermelho. Não era fogoso e pouco se sentia disposto a galopar, no entanto era muito manso, leal e determinado, perfeito para a amazona pouco habilidosa que era Hermione quando pequena. Ela melhorara com o tempo, mas ainda assim era desajeitada se comparada com Harry, Rony e Gina.

Terminou de preparar sua montaria que parecia pouco disposta a deixar o estábulo quentinho, montou e dirigiu-se para fora dos muros da cidade.

Os arredores de Porto Vermelho consistiam em pequenas propriedades que abasteciam a cidade. Entre elas havia algumas residências de antigas famílias nobres que continham muita história e pouca fortuna. No entanto, naquela parte do reino, o poder vinha do dinheiro e esse estava nas mãos dos grandes comerciantes. A estrada passava por algumas plantações, mas a maior parte do trajeto era feito dentro da floresta. Hermione admitia que ali, cercadas pelas antigas árvores que permitiam passar somente uma fresta da luz do sol era mais fácil acreditar em elfos e duendes.

De repente, Hermione deparou-se com a placa de um caldeirão com fundo furado. Guiou pão-de-mel para a direção indicada e seguiu uma pequena trilha que levava a uma velha taverna. O que a fez sair da segurança da cidade era a necessidade de averiguar o quanto os camponeses estavam furiosos com o governador, uma tarefa que seu pai não poderia fazer por si mesmo e a melhor maneira de executá-la seria ouvir o que era dito na parada obrigatória para todos que se dirigiam para a cidade.

Amarrou o cabresto de pão-de-mel numa árvore e caminho para a taverna. Antes de entrar ouviu uma voz que demorou um pouco para reconhecer.

'Olha só que honra, a filha do governador veio me visitar. "

" Tom?" Hermione exclamou surpresa por ter sido reconhecida.

" Garota, você pode botar quantos capuzes quiser, mas é impossível não reconhecer aquela coisa que cresceu demais" Respondeu o dono da estalagem apontado com a cabeça para pão-de-mel que comia capim pacificamente. " Vamos. Entre. "

Hermione acompanhou o taverneiro e quando entrou percebeu seu erro. Ela chegara cedo demais, havia somente dois hóspedes comendo o desjejum e nenhum andarilho restaurando as forças. Sentou perto de onde Tom ficava e começou a indagá-lo sobre o descontentamento da população.

"Eles não estão felizes. Há mais de duzentos anos a população oferece parte de sua colheita e algumas moedas para não despertar a fúria do dragão. E no ano em que o velho diz para não fazerem isso tem um incêndio daquelas proporções. " Comentou o velho Tom.

" Então, admite que incêndios são comuns nessa época do ano? " Argumentou Hermione.

" Olha, garota, ninguém se importa com o que aconteceu nos anos anteriores. O que importa é que a colheita desse ano foi uma merda que mal vai durar metade do inverno no mesmo ano que seu pai proibiu as oferendas e metade das plantações foram queimadas. " Respondeu Tom. Ao ouvi-lo Hermione revirou os olhos e falou:

" É engraçado como as pessoas esquecem dos anos anteriores ao mesmo tempo que não esquecem do que supostamente aconteceu há centenas de anos atrás. " Resmungou Hermione.

"Talvez porque é mais fácil esquecer de pequenas queimadas do que esquecer do dia em que um dragão devastou estas terras. " Falou um homem em tom de deboche. Hermione e Tom viraram para ver quem se intrometera na conversa. Quando puseram os olhos nele perceberam uma áurea de realeza. Até mesmo os dois hóspedes pararam de falar quando o homem entrou. Ele estava finamente vestido com roupas limpas que jamais seriam vistas em um andarilho e usava sobre os ombros uma capa verde que não recebera um pingo de poeira da estrada. O taverneiro, animado com a provável riqueza do recém-chegado, ofereceu:

" Olá, milorde. Como posso ajudá-lo? Milorde deseja uma cerveja? Uma tigela de ensopado? " Disse Tom fazendo uma exagerada reverência. O homem pediu somente uma taça de vinho e sentou-se próximo de Hermione que observou seus cabelos platinados e olhar cinza, frio e arrogante.

" Então, crês que o governador fora sábio ao proibir as oferendas? " Perguntou o nobre. Hermione entendeu que a pergunta não era retórica e que precisava ser respondida. Porém, sabia que discussões facilmente tiravam-lhe a calma e facilmente a metiam em confusões.

" Eu creio que o governador fez o que fez pensando no que era melhor para o povo. " Respondeu Hermione de maneira fria sem olhar nos olhos do nobre. Durante seu tempo na corte, aprendeu que não olhar nos olhos das pessoas com quem discutia tornava mais difícil que a raiva a controlasse.

" Estás dizendo que o governado acredita que o melhor para o povo é condená-lo a sofrer com a fúria do velho dragão de Porto Vermelho? Que plebeu inútil. " Ao ouvir, Hermione botou as mãos na mesa, ergueu-se e falou:

" Meu pai não é um inútil! " Exclamou. Tarde demais percebeu que revelara sua identidade e levou as mãos para a boca num gesto de surpresa, simultaneamente, Tom levava as suas para a cabeça exclamando um palavrão. Os dois hóspedes que desfrutavam do desjejum ficaram boquiabertos. O nobre notou o desespero e choque instaurado no salão e disse rindo:

" O homem é tão inútil que precisa que a filha resolva as merdas que fez! Aposto que em menos de um ano será decapitado! Que piada! " Hermione ficou chocada com as palavras do homem. Segurando as lágrimas virou-se e saiu às pressas do caldeirão furado, no entanto não deixou de ouvir alguém dizer:

" Boa sorte, mulher! Espero que tenhas mais juízo que o tolo do teu pai! " Ela sentiu suas bochechas ficarem molhadas. Desamarrou pão-de-mel que pela primeira vez iniciou um galope de imediato. Contudo não deixou de reparar que seu amigo castanho era o único cavalo esperando o dono voltar do Caldeirão Furado.