Contos da Escola de Circo

Primeiro: O delinqüente e a princesa

Cinco meninas e três meninos sentavam-se sobre o primeiro degrau da arquibancada de madeira, todos conversando animados mesmo sendo esta a primeira vez que se encontravam. Aparentemente nenhum deles era ginasta desde os quatro anos como ela, mas todos estavam ali pelo mesmo motivo: queriam de todo coração fazer parte do Kaleido Stage.

Layla, diferente de todos, havia escolhido o canto direito, um tanto longe dos demais para não se misturar. Podiam ter a mesma idade, mas se sentia mais velha que todos eles, para não dizer mais madura e experiente. Só uma olhada na sala de treino já dizia que poderia pular o nível inicial: eram aparelhos de ginástica olímpica e rítmica, ambas artes que ela dominava com perfeição. Talvez o treinador percebesse isso depois de uma demonstração.

Sorriu com o canto da boca. Estava morrendo de vontade de se exibir nas barras paralelas: eram sua especialidade. Também não era nada má com a fita ou mesmo com os bastões, e se orgulhava de certas seqüências solo e também... Ora, quem queria enganar? Era sem dúvida a melhor ginasta da escola e aquele curso particular não tinha muito a ensiná-la se cobrisse apenas movimentos básicos.

A porta de entrada se abriu e uma mulher morena entrou. Considerando o horário, devia ser a professora, apesar da aparência não dizer isso. Ela não devia ter mais de um metro e meio, estava um pouco acima do peso e usava um conjunto de saia e regata vermelha e amarela. Parecia mais uma imigrante mexicana ilegal do que uma treinadora circense.

Buenas tardes, mis amores – disse sorridente – Meu nome é Ms. Fernández, y yo soy la profesora de usdedes.

Alguns desacostumados com a língua estrangeira entreolharam-se. Talvez ela não fosse ilegal, pensou Layla, mas com certeza era mexicana.

Hoy é o primeiro dia de ustedes, entonces vamos falar muito sobre o que é o curso – percebeu que tinha toda a atenção das crianças e tentou continuar em inglês – O curso básico é de noções generales em ballet, ginástica e malabarismo. Conforme o progresso de ustedes, vamos dificultar las cosas.

Ela sorriu durante todo o discurso sobre a importância de equilíbrio, ritmo e força muscular, sempre misturando espanhol e inglês de modo a confundir os menores. Passaram-se vinte minutos de monólogo quando a porta se abriu novamente, dessa vez para revelar um menino, ou um moleque, como Layla melhor caracterizou.

Devia ter a mesma idade que ela, usava uma bermuda vermelho-velha, camiseta preta sem estampas, um boné para trás combinando, tênis surrados e levava um skate vagabundo de baixo do braço. Isso seria o bastante para considerá-lo um idiota de primeira classe, para não dizer desleixado, mas algo impediu a jovem de pensar assim, provavelmente os olhos azuis mais místicos que já vira.

– Licença – disse com voz mole – mas é que me atrasei, pode entrar?

– Claro – disse Ms. Fernández colocando as mãos na cintura – Señor?

– Yuri – apresentou-se tirando o boné e em seguida se sentou no outro canto da arquibancada.

A mulher fez pose falsa de zangada e continuou a falar.

– Aproveitando interrupção do señor... – consultou uma prancheta – Killian, gostaria de explicar exatamente o que é um circo. Alguém se habilita?

As respostas foram diversas: "É uma tenda com gente legal dentro", "É um lugar que tem palhaços e acrobacias", "É um lugar igual ao Kaleido Stage". Ms. Fernández deixou que seus alunos conversassem até chegar à conclusão nenhuma, enquanto as extremidades do assento permaneciam caladas. Por fim, interrompeu-os com um pigarreio.

– Um circo – recitou – é uma tenda sob a qual se cativa e se alegra o bem mais precioso de todo nós: o público. Isso é feito com palhaçadas, acrobacias, danças, luzes, músicas e todos os outros tipos de entretenimento existentes.

Silêncio de admiração caiu sobre as crianças.

– E a pessoa incrível que faz esse sonho virar realidade é chamada de artista, e é nisso que pretendo transformar todos vocês neste curso. Vamos a ver...

Só então percebeu que ela estivera colando da prancheta. Bem, isso só provava que nem tudo no circo era mágico de verdade.

Yo creo que já falei demais, hora de hacer alguna cosa – fez sinal para que eles se levantassem – Vamos ver o que ustedes sabem.

Era tudo que Layla queria ouvir.

– Ms. Fernández – chamou – posso ser a primeira a tentar?

– Sim, señorita... – olhou a lista de alunos com foto – Hamilton.

Três passos para trás, respirar fundo e agora! Duas estrelas, um mortal, uma cambalhota para corrigir um erro de tempo e uma finalização quase perfeita. Depois de muitos "ah"s e "oh"s vieram os esperados aplausos e "Impressionante, señorita Hamilton".

Yuri, ainda em seu canto, sorria gozador. Levantou-se com moleza e estralou os dedos das mãos. Com a atenção da classe, foi para os colchonetes. Três estrelas e dois mortais com finalização perfeita depois, a performance da outra jovem foi completamente esquecida.

O garoto sorria triunfante e ela o mirava com a mais pura raiva. Como ele ousava? Ninguém fazia Layla Hamilton parecer a segunda, ninguém! Queria tentar o movimento novamente, mas a professora resolveu que já bastava de demonstrações ("Agora vamos ensinar o resto da classe a se exibir também").

As duas horas de aula passaram até que rápido. Ao final todos haviam dominado estrelas e algumas variantes. Seis meses de curso básico e começariam a usar o trampolim, garantiu a professora. Layla ficou a conversar com ela sobre pular essa fase ("Por supuesto que no"). Foi a última a sair e seu motorista ainda não havia chegado. Sentou-se no banco do lado de fora, mantendo a postura e a rigidez de sempre. Se tivesse sorte não seria esquecida de novo.

Foi então que, voltando pela esquina, veio o menino loiro de antes. Ele largou-se no banco ao lado dela, muito descontraído.

– Você é muito boa – comentou – Onde aprendeu a fazer aquilo?

Ele a pegou de surpresa. O que alguém de aparência tão baixa queria com ela?

– Na escola – respondeu sem olhá-lo – Sou do clube de ginástica olímpica.

– Ah.

Ela encarou os joelhos. Não era educado ficar em silêncio.

–... Você também é muito bom.

– Sério? – ele pareceu nunca haver escutado um elogio – Acha mesmo?

– Sim. Também é ginasta?

– Eu? – riu – Nem, não sirvo pra isso...

– Por que não?

– Tem que ter disciplina, manja? Não é o meu tipo.

– "Manja"?

Yuri mirou a jovem. É, ela fazia bem o tipinho: loira de olhos azuis, rica e educada, para não dizer alheia a qualquer gíria. Mesmo assim, era bonitinha.

– Desculpe, acho que não me apresentei – disse com maneiras que não tinha estendendo a mão – Sou Yuri.

– Layla – respondeu com o sorriso meigo fingido que lhe haviam ensinado – prazer em conhecer.

Que falsidade, pensava ele. Entrou no joguinho de cordialidades e beijou as costas da mão dela com um sorriso maroto.

– O prazer é todo meu, princesa. Sinto ter que ir, mas meu ônibus deve estar chegando. A gente se vê.

– Está bem...

Ele se levantou e voltou a virar a esquina. Ônibus? Crianças da idade deles podiam pegar ônibus sozinhas? Isso não vinha ao caso. Layla jamais havia sentido as faces tão quentes em todos os seus nove anos de vida.


Talvez tenha sido arrogância.

– Layla, comece de novo.

Pensando bem, era muita arrogância tratá-la por princesa. Devia mesmo era estar se divertindo as custas dela.

– Cuidado! Mais devagar...

Aliás, que sujeito chato. Dar aquele show só para fazê-la parecer boba. Realmente nada simpático.

– Layla, poderia, por favor, prestar atenção no que está fazendo?

Só então percebeu que o professor de ballet estivera reclamando de sua postura. Desculpou-se e começou a coreografia de novo. Não podia perder a concentração por culpa de um menino, que coisa mais nojenta!


Talvez tenha sido arrogância.

– Yuri, cuidado com a louça.

Pensando bem, era muita arrogância tratá-la por princesa. Não devia ter se divertido as custas dela.

– São só dois pratos, não acabou ainda?

Aliás, que menina chata. Dar aquele show só para se exibir. Realmente nada simpática.

CRASH

– Yuri!

– Desculpe...

– Vá buscar uma vassoura, seu traste...

Que coisa, não podia perder a concentração por culpa de uma menina, que coisa mais nojenta!


– Mais entusiasmo! – bradou Ms. Fernández – Andale!

Layla passou o braço pela testa aparando o suor que escorria. Depois de uma primeira aula leve não imaginava que a segunda seria tão puxada. Estava ofegante e com certeza teria cãibra no dia seguinte.

– E ustedes achavam que sabiam tudo, muchachos... – riu a treinadora – Outra vez!

Três giros, seqüência solo que ainda não memorizara, mini-tramp, salto e pose. E de novo até que estivesse bom o bastante, cada vez mais rápido e mudando algum detalhe para que ficasse mais artístico. Quem conseguisse tudo certo poderia começar outro exercício pior. Misturar dança clássica com ginástica era mais difícil do que pensara.

Seus colegas também não pareciam muito animados com o treino. Uma das meninas estava a ponto de chorar se errasse algo novamente, enquanto outra havia torcido o pé três vezes. Entre os meninos parecia haver mais persistência, porém menos leveza de movimentos. A exceção permanecia Yuri.

De fato, como ele conseguia? Havia dito que não era ginasta e que não tinha disciplina, mas era exatamente o oposto. Movia-se com enorme precisão, suficiente para deixar Layla com os olhos verdes de inveja. Como um relaxado daqueles podia ser melhor que ela? Jamais permitiria isso. Esticou bem os braços e os relaxou. De novo, e dessa vez tinha que sair perfeito.

O garoto loiro sorriu internamente. Era muito bom fazer aquilo, quase terapêutico. No começo estivera um pouco inseguro, mas aos primeiros passos sentira como se a mão paterna há muito tempo perdida o guiasse, simplificando o exercício. Deixou que o sentimento aflorasse em seu rosto e sorriu de leve. Era isso que viera procurar nesse curso, e o que sentia era muito mais do que o esperado.

O som de alguém caindo sobre os colchonetes o tirou de seu transe. Princesa parecia estar com problemas em relação ao tempo. Parecia frustrada, para não dizer envergonhada de ter errado algo que ela própria considerava fácil. Aproximou-se da forma diminuída dela e ofereceu a mão em ajuda para levantar. A resposta foi das mais hostis.

– Muito obrigada – disse emburrada – mas acredito que posso ficar de pé sozinha.

– Tá, então... – mexeu no cabelo já desarrumado – Eu só queria...

– Melhor voltarmos para a fila – cortou-o já em pé – Vamos nos atrasar assim.

– Tudo bem... Princesa.

Layla mirou-o com olhar flamejante.

– Pare com isso.

– Isso o quê?

– Pare de me chamar de princesa.

– Não gosta do seu título?

– Como você é chato!

– E você é uma fresca!

Los dos! – interrompeu Ms. Fernández – O que estão haciendo?

– Apenas uma discussão amigável – sorriu ele – Nós só...

– Não me gustan brigas – bateu palmas para chamar a atenção do resto da classe – Muchachitos, me parece que o problema são giros. Vamos treinar isso um pouco...

Demonstrou em passos sublimes de ballet clássico o procedimento, e em seguida instruiu-os para que tentassem sozinhos. Separou-os em duplas, dando preferência à formação de casais. Layla e Yuri não escaparam a regra.

Ustedes têm mais facilidade, vão se dar bem juntos...

Nenhum dos dois protestou, ela por querer agir com profissionalismo e ele por achar que seria divertido. Duas ou três repetições e Yuri resolveu tentar outro diálogo.

– Além de ginasta, bailarina também?

– Desde os dois anos... E você?

– Desde sempre acho.

– Bailarina?

– Não, estúpida. Dançarino.

– Ah.

– Escola de dança?

– A única de Cape Mary... Nunca te vi lá.

– Digamos que tenho aulas particulares.

– "Digamos"?

– Minha mãe.

Layla perdeu o ponto de referência e ficou com um pouco de tontura. Sua mãe costumava adorar vê-la dançando, era um de seus maiores orgulhos quanto à filha única.

– Algum problema?

–...Não...

Foram interrompidos pela professora, chamando atenção para um erro comum a alguns da classe. Minutos depois os alunos arrumavam suas coisas para irem para casa. Comportada, Layla trocou-se, soltou o cabelo e sentou-se no banco do lado de fora, esperando paciente pelo motorista. Yuri seguiu-a.

– Esperando alguém, muchachos? – perguntou Ms. Fernández – Não fiquem no frio por muito tempo, es malo para la salud.

– Claro... – ele resmungou, e recebeu um afago na cabeça.

– E tire esse boné, Señor Killian – sorriu já entrando na escola – Parece um delinqüente...

Layla riu baixinho.

– Que foi? – tirou o chapéu e olhou-o com cuidado – É um boné legal, qual o problema? – recebeu mais risos como resposta – Ah, não me diga que...

– O quê?

– Você também me acha com cara de pivete?

– Imagina, como se...

– Eu sabia... Não brinca, eu devo ser feio mesmo...

– Não diga feio – recitou como a mãe de Macquarie lhe havia ensinado – A feiúra está nos olhos de quem vê.

– Então todo mundo tem olhos muito feios...

– Se quer lisonjeio de mim devia ser menos vítima de si mesmo.

Yuri parou de girar o boné no dedo e a olhou como se mirasse um alienígena.

– Como?

– Isso mesmo que eu disse, você...

O que exatamente você disse?

– Ah, como os meninos são burros – bufou – Se quer confete seja menos joselito.

Ambos pararam por um instante e Yuri foi o primeiro a explodir em gargalhadas. Essa menina era mesmo uma piada...

– Você é estranho...

– Estranho? Como assim?

– Não sei... – enrolou o cabelo no dedo – É tão... Moleque.

– E você é certinha demais. Olhe só pra você: está sentada cheia de postura esperando papai e mamãe virem te buscar.

– Sento-me assim normalmente – mirou os joelhos – e meu pai não vem me buscar, é o motorista dele.

– Ah, além de tudo é riquinha. Isso explica muita coisa.

– E você? Esperando sua gangue para pichar a rua?

– Muito engraçado... Vou andando pra casa, acabei de perder o último busão.

– Você é bobo? Podia ter pegado o ônibus se não tivesse ficado aqui comigo.

– Assim é mais divertido, e posso tomar um sorvete no caminho... – viu-a revirar os olhos – E gosto mesmo é de pegar no seu pé.

– Que mal me pergunte, por quê?

– Não sei – levantou-se e pôs-se a caminho da saída – Melhor ir antes que comece a escurecer. Agente se vê!

– Já vai tarde...


Os meses passaram num estalar de dedos, e Layla logo se acostumou com a presença do menino "com cara de delinqüente". Sempre eram os últimos a sair e ficavam conversando de leve, ou seja, nenhum assunto em especial e mesmo assim não era silêncio. Era como se as palavras quase desarrumadas estivessem presentes só para cobrir um vazio de diálogo que ambos tinham em casa. A jovem, sozinha e de poucas palavras, passava a sorrir sempre que o via.

Naquele dia, em especial, sorriu mais ainda ao chegar no ginásio e encontrar um trampolim montado. Finalmente haviam terminado o treinamento básico, agora sim começariam as aulas que a interessavam! Correu para seu lugar de costume nas arquibancadas ao lado de Yuri e se sentou como mandava a etiqueta, sem conter sua alegria. Mal podia esperar para começarem.

– Tô vendo que cê ta animada – comentou ele mexendo no boné preto.

– Muito – sorriu ela – Você não está?

– Hm – riu de lado maroto, fazendo cara de expert – Também, mas sabe como são as coisas...

– Como assim?
– Já nasci sabendo isso, não há porque ficar tão alegrinho...

– Convencido...

– Pelo menos eu sou sincero, admito que já sei, diferente de alguém que vai para as paralelas fingindo que nunca tinha visto e depois esnoba os outros...

– Já te disse que não estava acostumada com aquele nível – cruzou os braços – Como eu podia saber que também conseguiria ir bem mesmo com...

– Tá, tá bom, princesa...

– Já te disse que odeio quando você me chama de princesa.

– Então senta que nem gente, droga! Olha só a sua postura!

– "Que nem" é uma expressão horrível, use "igual".

– Ah... – revirou os olhos – E depois quer que eu não te chame de princesa...

Niños – chamou Ms. Fernández – Atenção, por favor!

– O inglês dela anda melhorando, não? – comentou Layla.

– Melhor que o meu – respondeu cheio de sotaque forçado – Um dia chego no seu britaniquêis...

–... Como eu dizia, temos um novo professor ajudante, Mr. Gerald Goldenburry.

O homem ao lado dela não podia ser mais diferente da pequena e gorduchinha Ms. Fernández. Ele era alto, fortíssimo com músculos à mostra, magro e de aparência americana nata. As meninas sentadas na fileira da frente suspiraram sonhadoras quando ele sorriu galanteador exibindo dentes muito brancos. Yuri, por sua vez, cruzou os braços desaprovador e murmurou algo numa língua que Layla não compreendeu.

– Ele estará me ajudando nas próximas aulas, muchachitos... – sorriu orgulhosa – Mas agora ao que realmente interessa... El trampolin!

Com um bloquinho de notas em mão, a jovem anotou tudo o que pôde das instruções, incluindo anedotas sem graça. O novo professor demonstrou as técnicas descritas e os procedimentos de segurança. Ele era incrível, na mais singelas das descrições; leve como uma pluma dando piruetas e mortais como se fossem simples.

Quem olhasse perceberia expressões diferentes nos rostos de Layla e Yuri, no entanto, o pensamento era o mesmo em ambos: Vou fazer melhor que isso.

– Muy bien, chicos – Ms. Fernández bateu palmas – Vamos começar devagar... Quem quer tentar primeiro?

Houve correria de onze crianças para a cama elástica. O aparato provou-se não tão impossível a princípio, pelo menos para os jovens loiros. Yuri realmente havia nascido sabendo, pensou Layla, tamanha era sua facilidade. Ela também não ficou atrás. Em poucos minutos estavam equiparados no quesito habilidade enquanto o resto da turma mal ficava de pé após o primeiro salto.

Novamente a aula transcorreu devagar e divertida. Para o jovem de sotaque russo era melhor que qualquer outra coisa. A cada giro e cada pulo escutava a voz amiga dando-lhe dicas, e durante um mortal bem sucedido sentiu o que parecia ser um afago na cabeça. Ah, se pudesse fazer isso para sempre, parando nunca para que a voz não parasse de soar de leve em seus ouvidos. Tinha certeza de que enquanto escutasse e sentisse aquele que considerava seu anjo da guarda não poderia errar passo ou técnica alguma.

Belísimo, Señor Killian, belísimo... – aplaudiu Ms. Fernández – Impressionante a facilidade com...

– Legal, guri – disse o novo professor com voz grossa e estendendo a mão – Onde aprendeu tudo isso?

– Bem... – aceitou a ajuda para descer do trampolim – Sempre soube, eu acho...

Foi respondido com riso dos companheiros. Sentou-se para esperar sua próxima vez e assistir Layla. Nada mal, pensou. Ela certamente tinha um talento que ninguém da classe compartilhava, para não dizer uma força de vontade absurda. Guria legal, admitiu quando ela veio sentar-se ao seu lado ofegante, guria legal.

– Errei na última parte – queixou-se – Acho que da próxima sai melhor.

– Tenho certeza que sim – respondeu sem muita atenção – Você está se precipitando um pouco, só isso.

– Ai... – arrastou-se mais para o lado assim que a fila andou – Meu motorista vai demorar mais hoje...

– Sério?

– É...

Ele mordeu a língua para não rir do biquinho que a princesa estava fazendo só pela idéia de ter de esperar. Considerou esperar com ela também, mas sua mãe ficaria furiosa se chegasse tarde em casa de novo. Teve então outra idéia.

– Vou tomar um sorvete no parque depois da aula, quer vir?

– Sorvete? – ela corou de leve. Ele a estava convidando para sair? – Não, obrigada, não trouxe dinheiro e...

– Larga mão de ser careta, Layla – riu – Vamos!

A jovem menina fitou os joelhos, assim como sempre que estava desconfortável com algo. Estava uma tarde quente, só anoiteceria depois das dez da noite, e estava com o celular que ganhara de aniversário caso algo acontecesse. Olhou para os lados para certificar-se de que ninguém ouviria. Respirou fundo três vezes e só então balançou a cabeça afirmativa.

– Legal – ele sorriu – O cara que trabalha na sorveteria sempre...

– Pode ir na minha frente, Yuri.

Um pouco frustrado, o menino levantou-se e seguiu com o exercício. Que coisa, sempre que chegava um pouco mais perto dela era afastado daquela maneira fria. Tentou concentrar-se sem muito sucesso e errou a última parte. Talvez ele estivesse avisando que sair com Layla Hamilton não seria uma boa idéia.

O fim da aula se aproximou e, como previsto, Layla e Yuri saíram caminhando juntos em direção ao parque, a princípio em silêncio e depois conversando sobre os truques que haviam aprendido. Fulana era péssima e ciclano tira sarro dos outros sem motivo; Mr. Goldenburry era lindo (na opinião dela) e convencido (na opinião dele).

– Acho que a sôra tá a fim dele – comentou o menino.

– Está falando da Ms. Fernández?

– Ah, você não viu o jeito que eles se olham? Dá até nojo...

– Você não é nada romântico, sabia? Acho lindo que eles se gostem.

– Lindo? – colocou a língua para fora – Bleca...

– O nojento é você que fica andando pela rua com a língua de fora.

– Você tem medo de lesmas e eu que tenho nojo de tudo?

– Quem disse que eu tenho medo de lesmas?

– Não tem medo daquela ali?

Yuri apontou um caramujo gigantesco que descansava tranqüilo sobre uma folha por onde passavam. A visão repentina do molusco fez com que a pequena soltasse uma exclamação e pulasse para o lado, quase tropeçando na sarjeta e caindo em cima do amigo.

– Ai! – reclamou ela – O que pensa que está fazendo?

– Essa é a minha pergunta! Sai de cima de mim!

– A culpa é sua, você que me assustou!

– É só um caramujo, Layla! Não era pra tanto!

– Seu chato!

– Sua histérica!

Ela cruzou os braços e continuou andando. Entrou no parque e sentou-se emburrada no primeiro banco que encontrou. De braços cruzados fuzilou os joelhos como se fossem Yuri. Detestava ser pega de surpresa, detestava ainda mais quando era por culpa dele. Pelo amor de Deus, não tinha medo de lesmas! Pensou em pegar o celular e avisar o motorista, mas achou melhor não. Se a visse tão brava e (possivelmente) vermelha, contaria ao patrão, o que implicava que Macquarie logo seria incumbida de seguí-la para descobrir o que havia causado tal afronto à filhinha querida de Kevin Hamilton.

Yuri também cruzou os braços. Será que tinha que brigar com ela todas as vezes que estavam próximos? Não estava disposto a humilhar-se, afinal, não era do tipo que pedia desculpas. Enfiou uma das mãos nos bolsos e contou as moedas. Era pouco, mas nada que uma gracinha não resolvesse. Entrou no parque e passou reto pela amiga, sem sequer registrar sua presença. Continuou até um trailer funcionando como sorveteria e acenou para o atendente. Gastou até o último centavo que tinha e ficou devendo uns vinte, e só então voltou para o banco no qual Layla se abandonara.

– Pra você – estendeu-lhe uma casquinha de sorvete verde com bolinhas marrons – É de menta com chocolate.

Ela aceitou de mau gosto e não o fitou. Ele sentou-se ao lado dela meio quieto.

– Devia experimentar – recomendou – É muito gostoso e custou minha mesada do mês inteiro.

– O mês acaba amanhã, Yuri.

–... Eu estava economizando, oras!

– Para comprar o quê?

– Hm... – pensou disfarçando – Pra comprar mais sorvete pra mim, lógico.

Layla revirou os olhos.

– Você é tão orgulhoso...

– Você é mais – engoliu o sorvete e sentiu a garganta gelar – Chega de brigar, isso me cansa... E tome logo o sorvete, vai derreter.

Sendo que não se desculparia e que ele também não parecia disposto à tanto, resolveu obedecer. Era bom mesmo, deixava um gosto fresco na boca.

– Obrigada pelo sorvete – disse para os joelhos – Eu te pago na próxima aula.

– Não precisa – assegurou-lhe – Não foi tanto dinheiro assim. Pelo menos assim você esquece que está brava comigo.

– Não esqueci.

– Mas como eu dizia – interrompeu – Achei o trampolim bem fácil, não?

– É diferente – respondeu – Dá para criar muito com ele.

– Verdade... – mordeu a casquinha – Podíamos tentar alguma coisa da próxima vez, digo, é mais fácil se for em dupla.

– Pode ser.

– Layla... – cutucou-a – Sabia que você envelhece quarenta anos quando fica séria assim?

Incomodada com a cotovelada nas costelas, mirou-o. Ele estava sorrindo doce e, sob a sombra das árvores, naquela tarde de verão com a brisa leve soprando do mar, estava lindo.

A menina bateu-se mentalmente. Acabara de chamar Yuri de lindo?

– Algum problema? – perguntou ele com a mesma expressão.

– Não eu só...

Algo no bolso da jovem começou a vibrar e tocar o tema de "O mágico de Oz". Ela rapidamente atendeu o celular e instruiu o motorista para vir pegá-la no parque.

– Tenho que ir – sorriu desajeitada – A gente se vê.

– Tá... – ele pareceu desanimar – Acho que já vou indo também. Até semana que vem!

Com isso separaram-se.