"Ele está tendo uma parada"

"Ele está tendo uma parada". Um tom alto gritou, ecoando pela sala.

"Iniciando massagem cardíaca". Aquelas mãos tentavam reanimar seu coração, mesmo que nada parecesse funcionar.

"Eu entrei". Várias vozes pareciam estar ali, mas nenhuma delas capaz o suficiente. "Ventilem".

"Carrega em 100! Afasta". Mesmo com o choque os monitores não apontaram nenhuma mudança.

"Outra dose de atropina! Rápido". Uma das vozes repetiu. "Carrega em 200! Afasta".

Nada parecia adiantar, tudo conspirava contra, e o tempo era implacável. Por mais que ninguém ali quisesse admitir, era preciso desistir, era chegada à hora.

Depois de um novo choque, a única resposta foi o sinal sonoro constante do monitor, não havia mais nada que pudesse ser feito.

"Hora da morte 09h10min". Aquele era o começo do fim.

Acordei em um susto, passando minha mão ao lado da cama, procurando o corpo dele. Ao invés disso, apenas o lençol gelado atritava com a minha pele, dando razão ao imenso silêncio da casa.

Olho para o lado, acima do criado-mudo, um porta retrato. Aquela foto sempre fora a nossa preferida dentre todas. Guardamos com carinho e ela nos seguia aonde quer que fosse, até que quem deixou de seguir foi ele.

Olho no relógio e constato que eram quase 9 da manhã. Eu já estava atrasada, mas nada poderia desviar mais a minha atenção naquele dia, na verdade, naquela semana, que eu vinha vivendo agoniadamente.

Saio da cama, colocando o roupão que me protegia do frio do inverno nos EUA. Congelante, mórbido. Desço as escadas do apartamento, como se procurasse por ele. Preparando o café da manhã, dormindo no sofá por ter assistido TV até tarde, sem sono, voltando lá de fora, com o jornal do dia em mãos. Pequenas coisas que me faziam lembrar e sufocar ao mesmo tempo. 10 anos. Quem diria que eu agüentaria viver tudo isso sem estar ao lado dele? As vésperas do aniversário de morte do meu marido eram sempre assim. Os piores dias do ano, sempre.

Os detalhes ainda eram claros na minha mente, mesmo depois de tanto tempo. As últimas horas que eu passei junto dele, vendo tanto sofrimento e luta, em vão.

Naquele dia tudo parecia conspirar tudo contra mim, sabia que se ficasse em casa, sem nada para fazer, apenas me remoendo em memórias, ficaria louca, mas sabia também que seria impossível me concentrar o mínimo no hospital. Amanhã, há dez anos atrás, dia que minha vida acabava junto com a dele, mas infelizmente, eu seguia em frente ainda.

Das dores a menor... Como em quase todos os dias nos últimos 10 anos, me 'alimento' de uma xícara de café, vou até o banheiro para tomar um banho quente, visto uma roupa qualquer, e me dirijo ao hospital, que tinha praticamente se transformado a única razão da minha vida.

Por mais que todos tentassem me aconselhar, me animar... Nada daquilo nunca tinha adiantado, e agora não seria diferente, portando, se não estava no hospital estava dentro de casa, e assim por diante... Minha rotina se resumia basicamente àquilo, ir trabalhar e voltar para casa pra conviver com todos os meus fantasmas até pegar no sono, depois acordar... E começar tudo novamente.

Saio do apartamento pra logo sentir o vento forte e gelado, típico do inverno de Chicago, bater contra meu rosto. Atenta para não cair no gelo espalhado pela calçada, caminho rápido até meu carro, onde a temperatura também é fria, mas logo melhora com o aquecedor.

Aquele nunca tinha sido o nosso caminho, nem o meu, nem o dele, mas por alguma razão, naquele dia inoportuno, Luka optou por ele, para nunca mais voltar... E desde então, aquela havia se tornado minha nova rota, como se um dia eu fosse capaz de descobrir o porquê daquilo tudo, porque uma vida tão bela havia sido tirada aparentemente, sem motivo algum.

Ao passar pelo exato local do acidente, sinto um arrepio ruim percorrer minha espinha, já haviam se passado 10 anos, mas todas as marcas ainda pareciam estar ali. Era como se eu pudesse ver os cacos de vidro espalhados por todo lugar, as marcas dos pneus gravadas no chão, e o pior de tudo, ter a certeza que sua vida tinha acabado ali.

Atravessar aquela estrada já tinha sido mais fácil. As lembranças estavam especialmente doloridas hoje, mais do que em qualquer outro ano. Era uma dor quase sufocante, que me fazia querer gritar e chorar pelo dia todo. Mas eu não podia, tinha plena consciência disso. Eu era, há mais de 5 anos, responsável pelo P.S do County e ainda tinha grandes chances de conseguir a chefia geral. Não que fosse algo que fizesse minha cabeça, mas só era alguma coisa a mais pra eu me apegar e lutar por um ideal.

Chego ainda adiantada para o meu plantão. Geralmente eu pegava os turnos da noite, justamente por ser esse o motivo pelo qual eu não tinha mais meu marido comigo. O maldito plantão noturno que eu insisti tanto para ele não ir, mas de nada adiantou. Eu não conseguia dormir muito bem na escuridão e adorava trabalhar a noite agora, mas especialmente hoje tive que cobrir o plantão de Pratt.

- Bom dia – Eu cumprimento a quem estivesse na recepção, antes de subir os óculos escuros pra cabeça, mas não foco muito em ninguém. Pra falar a verdade, nem vi direito. Vou diretamente pra SDM onde, ao abrir o armário, é quase impossível não sorrir e ao mesmo tempo chorar. Mais uma foto. Mais um dia especial, assim como todos eram, quando estávamos juntos em vida. Sim, em vida, porque eu sabia que ainda estávamos ligados, mesmo estando distantes.

Eu nunca fora religiosa ou coisa parecida, mas depois que Luka morreu, eu realmente vi que uma parte de mim, que há muito estava adormecida, renasceu. Fé? Eu não chamaria de fé, mas creio que algo me deu forças de continuar, tivesse o nome que for.

- Abby? - Ouço Carter chamar meu nome na porta da sala. Rapidamente enxugo minhas lágrimas, para só então olhar pra ele - Tudo bem?

- Tudo bem – Respondo com o melhor sorriso que podia dar, mesmo sabendo que não passava de um sorriso triste. Viro-me de costas novamente para vestir o jaleco e pegar meu estetoscópio, não querendo levar aquela conversa adiante, mas sabia que não seria fácil assim. Amanhã fariam 10 anos que Luka havia morrido, e eu não era a única naquele hospital a saber daquilo.

- Abby – Ele diz se aproximando e tocando o meu ombro, como se pedisse para olhá-lo nos olhos novamente. – Nós estamos aqui se você precisar conversar, todos nós.

Eu sabia bem daquilo, todos os dias algum membro do staff fazia questão de me lembrar que não só ele, mas todos os outros estavam ali. Se por um lado aquilo me confortava, me mostrava que eu tinha com quem contar, por outro me deixava chateada. Era obvio para todos ali que apesar de ainda estar vivendo, minha vida não passava de uma vida banal, cheia de mágoas, dores e medos.

- Estou bem, Carter – Fecho meu armário e me direciono até a porta da sala. – Afinal, já fazem 10 anos não é mesmo? – Por mais que parecesse estranho aos olhos de qualquer um, aquele sempre tinha meu jeito de tratar aquele assunto, o jeito mais vago possível, talvez aquela fosse minha maneira de me proteger, por mais que ela só fizesse sentindo na teoria.

- Não é assim Abby – Ele diz me fazendo virar novamente – O tempo que já se passou não quer dizer exatamente que as coisas tenham ficado mais fáceis, talvez seja até mesmo o contrário.

Era sempre assim, o mais vaga que eu tentava ser, o mais eles queriam perguntar, aprofundar, aconselhar. – Estou bem Carter, é sério – Eu abro a porta o convidando para sair – Agora vamos ao trabalho, a triagem está cheia.