Gênero: Drama/Romance
Spoilers: Essa fic pode ter um ou vários spoilers seja do livro um, dois, três, quatro ou meio do quinto (haushaushaush). Eu não sei ainda aonde a minha imaginação vai me levar, no entanto estejam avisados desde logo, porque depois eu não quero gente reclamando comigo oká. E ela é uma fic slash/yaoi, então se você não curte, e nem se arrisca a por os olhos em tal espécie de texto, não o aconselho a ir adiante.
Sumário: Finalmente Seth teve sua impressão, afinal todo lobisomem tem o direito de tê-la! Mas e se essa pessoa em questão não é exatamente quem ele esperava?
Disclaimer: Essa fic foi baseada na série de livros Twilght. Todos os direitos autorais pertencem a Stephenie Meyer. Eu só peguei o gancho dela e criei uma estória a parte, só por diversão e falta do que fazer num domingo a tarde. Os novos personagens e o que acontece com eles... é tudo meu! My precious...
SUNRISE
por Ge Black-Masen
beta-read por Nathsnape
Cap. 01 – Lembranças. Transformação. Nasce um vampiro.
De longe eu conseguia ouvir o barulho do mar batendo contra as rochas, nas falésias ao pé da ala sul. Não raras às vezes, eu simplesmente esquecia que estava em casa. Em Patmos. Na Grécia.
"Andreas, você não é um assassino. Você fez o que era certo. Você fez o que era certo", eu ficava repetindo pra mim, tentando me convencer. Sim. Eu fiz o que era certo. Ou ao menos o que eu achava ser certo.
Mas então por que eu mesmo não acreditava nisso? Por que eu simplesmente não era duro o bastante comigo pra colocar um ponto nesse assunto e seguir em frente nessa maldita eternidade? Eu havia posto fim a outro monstro não havia? Então por que eu não me sentia no mínimo satisfeito com o que eu fizera?
Eu não fazia idéia de quanto tempo havia ficado ali, parado, de olhos fechados, lembrando daquela atrocidade que eu havia cometido. Eu sabia que eu nada poderia fazer. Eu tinha sido fraco. Sim, eu tinha sido. Essa houvera sido uma das raras vezes em que fui fraco. Por mais que não demonstrasse isso aos outros de minha espécie ou, às vezes, não parecesse a mim mesmo, eu ainda podia cometer erros. E essa fuga, fuga para dentro de mim mesmo, só servia como prova dessa minha fraqueza.
"Eu não consigo. Eu tenho que pedir ajuda. Mas para quem? Que me ajudaria? O que mais pode acontecer? Eu tenho que esquecer isso, simplesmente tenho. Mas como?! Não dá! Eu tenho que ir embora. De novo." - Eu tinha que ir. Essa tinha sido a única conclusão a que cheguei depois de incontáveis horas de autoflagelação muda, no escuro, num canto do quarto de uma casa que eu um dia chamei de minha. Na verdade, a casa, ou um castelo para ser mais exato, era dos meus pais, mas eles haviam partido há muito tempo. "Muito tempo" - repeti, rindo do meu eufemismo. Diante de toda essa tristeza amarga, eu ainda conseguia lembrar os sorrisos radiantes da minha mãe a me ver brincando na praia ou do ralhar do meu pai comigo porque eu tivera pegado um resfriado por conta da roupa molhada pelo mar. De repente, eu me peguei vendo-me de uma ótica diferente. Uma ótica humana. Do humano que a muito fui.
Eu sou dono de um dos castelos mais antigos de minha ilha. Herdeiro de uma fortuna mais que considerável espalhada ao redor do mundo. O último de uma das famílias gregas mais tradicionais e antigas que, com certeza, dadas as circunstâncias óbvias, terminaria em mim. Eu sou Andreas Icarus Aknos e, o que eu levei certo tempo para admitir, sou um vampiro.
Ao pronunciar para mim mesmo esta última palavra, minha mente me levou três séculos atrás, mais precisamente no ano de 1700. Acontecia o famoso Carnaval de Máscaras em Veneza. Meus pais sempre iam, pois fazia parte da natureza aristocrática comparecer a festas e bailes no continente. E a Itália tinha sempre aquela magia que eu não conseguia explicar.
"O Mardigras era sempre uma festa pra mim. Eu adorava a alegria, os risos e toda aura de contentamento que emanava no castelo do Grão-Duque de Giacomo, primo de minha mãe e que sempre nos convidava para as comemorações nessa época do ano. Mamãe sempre dizia para que eu não me afastasse demais dela, pois poderia me perder. Nunca dei ouvidos, claro. Que garoto de 18 anos, em plena flor da juventude, ainda dá ouvidos ao que a mãe diz? Então, fugi, vagando pelo labirinto de corredores do castelo, em busca da saída para as ruas, onde eu sabia que a festa era, no mínimo, mais "carnal". Não encontrei a porta, mas o que achei foi no mínimo interessante: um pequeno píer solitário que dava para o canal Leon. O luar era lindo visto daquela perspectiva, onde a luz da lua tocava de leve as águas do canal, enquanto a brisa marítima roçava a minha face e soprava meus cabelos em um perfeito retrato de paz." - Eu não pude deixar de rir nostalgicamente. Eu tinha que visitar Veneza qualquer dia, só pra sentir aquilo de novo.
Havia uma gôndola ancorada no píer e eu, como sempre fui curioso demais para o meu próprio bem, subi a bordo do pequeno barco e segui pelo canal, vendo como a cidade ficava mais fascinante sob tantas luzes e cores. Subi o canal, apreciando o que acontecia às suas margens, em cada casa de portas abertas, em cada praça por qual passava. Veneza em si era uma festa naquela noite. Notei que o canal estreitava até uma esquina e de lá não prosseguia, então resolvi voltar para o meu pequeno píer recém descoberto e ficar lá, só apreciando o que restava da noite. No caminho de volta, encontrei um rapaz que acenava para mim. "Ele deve pensar que eu sou um gondoleiro trabalhando. Mesmo eu não sendo, não custa nada ajudar" – pensei. Quando aportei, vi uma das coisas mais belas que até então, na minha parca vida, eu tinha presenciado. Um rapaz alto - ou talvez só um pouco mais alto que eu, e eu era bem alto, diga-se de passagem - com ombros largos, aparentava ser forte, estava bem vestido, cabelos negros compridos amarrados em um rabo de cavalo frouxo e um olhar penetrante. Eu só tinha uma palavra para aquilo na minha frente: perfeito.
"Posso subir?" – ele me perguntou.
"Primeiro, posso saber quem seria você?" – perguntei deslumbrado, mas ainda desconfiado. Eu tinha um mínimo de senso de auto-preservação. Mesmo sendo bonito ele ainda era um desconhecido.
"Chamo-me Giulliano Balla e, se você não se importar é claro, gostaria de lhe acompanhar no seu passeio" – Ele disse de forma galante e como se eu não conseguisse mais ordenar sobre minha própria boca, eu já estava dizendo, "Sim, por que não?".
Esperei ele embarcar, e depois segui canal abaixo, devagar, esperando que ele começasse uma conversa, se quisesse, porque Deus sabe que eu nunca tomaria iniciativa para tanto. Podia não parecer, mas eu era sim muito tímido. Não demorou muito para que o silêncio entre nós se quebrasse e ele me dissesse, de uma forma melodiosa, "Vejo que o carnaval deste ano resolveu me presentear. Nunca tinha visto um rapaz tão belo como você e tão pouco estive tão próximo assim..." – nessa parte ele simplesmente já estava atrás de mim, sussurrando as últimas palavras em meu ouvido – "a ponto de tocar tamanha beleza." – Aqui eu tinha que rir de novo. Como nós podíamos ser tão irresistíveis quando queríamos. Como eu fui cair naquela conversa?! Fácil, eu ainda era um humano.
Sua voz era de um toque aveludado, grave, melodioso, e porque não, hipnotizante. Eu arrepiei dos pés a cabeça, quando ele simplesmente encostou os lábios na minha nuca. Seus lábios são frios - eu pensei. Daí até ele ganhar a minha total atenção foi em um simples piscar de olhos. Eu não mais resistia, e como a atmosfera daquele lugar urrava por luxúria, me rendi a um beijo que com certeza foi o meu último beijo, vivo pelo menos. Em um borrão, as coisas seguiram-se muito rápido: eu já estava deitado de costas, no chão da gôndola, enquanto ele mordia meu pescoço tão delicadamente que eu poderia dizer que não senti "dor", só uma leve agonia passageira. Eu não me movia. Não podia, simplesmente não podia nem mexer um músculo sequer, mesmo se quisesse, com ele encima de mim daquele jeito. E antes que essa paralisia tomasse conta dos músculos da minha face, eu gritei. E para a minha total admiração, fui ouvido. Ouvido pela multidão que já havia sido arrebanhada pelo primo de minha mãe em minha procura. Desta vez eu tinha que agradecer a mamãe, caso saísse vivo disso tudo, por ela ser tão neurótica. Matem essa coisa horrenda que me ataca! Livrem-me das garras desse animal! Socorro! – era só no que eu pensava até sentir uma dor dilacerante descer pelo meu pescoço e ganhar terreno, célula por célula, espalhando-se pelo meu corpo. Tudo ardia em brasa. Tudo queimava. A última coisa da qual me lembro àquela noite foi dele me dizendo antes de fugir, "Não temas meu belo rapaz, não vou matar você. Só queria lhe retribuir o presente que me deste. Sua beleza é tão única que eu não resisti em preservá-la." Ele fez uma pausa para aspirar fundo o ar. "Além do mais, você tem um cheiro inebriante..." e com um leve toque de seus lábios nos meus, deixando a mostra um sorriso brilhante e macabro, ele completou, "Bem vindo à eternidade." Depois tudo escureceu.
Eu urrava de dor, gritando para que fizessem qualquer coisa, qualquer coisa para por um fim aquela dor dilacerante e acabassem de vez com a minha agonia. Naquele momento eu desejei a morte. Com certeza ela seria bem melhor do que aquilo. Que ironia – pensei ao lembrar-me do que havia desejado – eu acabei morrendo de qualquer jeito!
Após os três dias da conversão, eu acordei, num quarto sujo de uma estalagem fétida, com aquele sorriso macabro que eu nunca esqueceria, se abrindo de ponta a ponta, exibindo uma fileira de dentes ofuscantemente brancos, me encarando de uma cadeira ao lado da cama. Tudo era novo, intenso: as imagens os cheiros, as cores, os sons, minha cabeça latejando como se estivesse prestes a explodir. Inconscientemente rosnei para o meu espectador. Ele gargalhou alto, com prazer, e da mesma forma melodiosa com o qual ele me galanteou na gôndola, ele me disse:
"Vejo que finalmente acordou. O que sentiu durante esses três dias meu jovem? Dor? Sim, eu também senti dor. Mas a dor é boa às vezes sabia? Ela é nossa amiga, nos lembrando que ainda estamos "vivos"!" – e ele gargalhou alto novamente, como se o que tivesse dito fosse insuportavelmente engraçado, e então continuou – "Você ainda está em Veneza, caso queira saber. Todos ainda o procuram como desesperados desde que fugi com você naquela noite. Ainda tenho estampado na memória o grito daquela mulher de vestido azul. Aquela era sua mãe? Ela gritava seu nome? Andreas. É isso?" – eu rosnei ao som do meu nome. "É eu acho que é." - Ele deu um grande suspiro antes de sorrir uma última vez para mim, abrir a janela e bradar, "Você deve estar com muita fome. Ao menos eu fiquei. Vá minha criança, vá e sacie a sua fome! Seja livre!" Como que movido por um impulso frenético, um motor louco e desgovernado que me guiava, eu saltei janela abaixo e corri. Corri o quanto pude, porque eu tinha que sair dali, aquele lugar apertado me sufocava, e meu corpo clamava de fome, uma fome que nem eu mesmo sabia qual era!
Dias depois, quando o animal dentro de mim já tinha saciado a sua "fome", ou melhor, sua sede - coisa que eu vim a descobrir pelo rastro de vítimas que deixei pra trás - eu quis retornar para os braços da minha mãe, chorar neles e ouvi-la dizendo que tudo ficaria bem, que aquilo iria acabar, pois tudo não passara de um simples pesadelo. Eu sabia que eu a havia deixado preocupada. Havia deixado meu pai preocupado. Todos ainda me buscavam. Mas eu não podia voltar, não daquele jeito. O que eu diria aos meus pais?
"Olá, meu pai, minha mãe, eu estou... inteiro, mas sou um monstro agora e espero que ainda continuem me amando e me recebam de braços abertos e pescoços a mostra?!" – eu ensaiei e ri sem graça do meu pequeno teatrinho macabro.
Então, me apegando ao pequeno lapso de sanidade que ainda me restava, eu fiz a primeira coisa em dias que eu atribuiria a minha razão, decidi dizer adeus aos meus pais, em uma carta, com o coração, agora morto, doendo pelo pesar da despedida. Minha caligrafia geralmente bem desenhada estaria manchada se eu pudesse chorar. Mas era melhor assim.
A última vez que vi o rosto de minha mãe, foi naquela noite, na noite do ataque, quando estávamos na festa, e mesmo sorrindo divertida, com uma luz de prazer irradiando de si, me repreendia dizendo para que não me afastasse. Ah como eu queria estar mais do que perto dela agora. Poder abraçá-la de novo. Abraçar sem acabar por destruí-la. Achei que o meu coração tivesse dado um solavanco naquele momento. A despedida de meu pai foi breve. Acho que fora porque eu o via muito pouco, e até mesmo naquela noite eu não o tivera visto. Não que eu não o amasse, longe disso! Eu só sentiria falta da segurança de ter um pai. Eu tinha meus pais, ainda, mas me apartar deles, mesmo que fosse para o seu bem, era como se não os tivesse!
Nem a carta eu podia entregar pessoalmente. Então eu voltei àquela estalagem, pois naquele novo mundo em que eu havia sido jogado da noite pro dia, eu só conhecia uma pessoa, aquela pessoa. Ao entrar, logo me deparei com aquele homem que - ainda não conseguia acreditar - achei bonito e só de me lembrar daquilo, eu cuspira de nojo.
"Você destruiu tudo que eu mais amava, mais prezava! Você me tirou da minha família! Sua criatura imunda!", eu disse a plenos pulmões, totalmente encolerizado.
"Mas nós – e aqui ele apontou pra si mesmo – somos a sua família agora." Foi só o que ele disse em uma calma explicitamente sádica. Mostrei os dentes e rosnei alto, tamanha era a minha ira com aquele "ser" que se prostrava diante de mim.
"Você não é e nunca será minha família!" – eu gritei e cuspi no chão em direção a ele. "E se algum dia você foi humano como eu era a pouco, você vai me fazer um último favor. Eu não pediria a você se eu fosse capaz de fazê-lo, o que quer dizer que eu não tenho alternativa. Quero que entregue essa carta aos meus pais. Eu irei com você. Estarei vigiando de longe e me vingarei de você com tudo o que sou se alguma coisa acontecer com eles ou alguém daquela casa!". E ele entregou a carta. Tudo tão simples, tão rápido, que nem parecia que laços eram desfeitos ali, com o que eu escrevera na carta. Eu só esperava que eles entendessem e me perdoassem, pois afinal a culpa não houvera sido minha e tampouco o era agora, mas eu não queria pô-los em risco. Depois disso, eu nunca mais os vi. Era melhor assim. Foi melhor assim, eu por fim me convenci.
Vaguei sem rumo pela Itália, me centrando de início em locais de grande concentração populacional, principalmente de plebeus e aldeões, assim qualquer perda não seria sentida e eu conseqüentemente não seria notado. E foi caçando, em certa noite, quando a sede me abatera com a ferocidade acumulada pelos dias que eu me forçava a manter-me longe de qualquer presa humana, que eu descobri do que era capaz realmente, ou melhor, do que a minha mente era capaz. Os fenômenos estranhos que causei quando criança mostravam-se muito mais intensos e palpáveis à medida que eu me concentrava neles. Se eu quisesse que uma vidraça se espatifasse, era só eu me concentrar nela e no desejo de quebrá-la que ela se estilhaçava. Se eu quisesse derrubar uma árvore, ou ainda melhor, explodi-la, era só eu me concentrar e desejar que ela explodisse que assim acontecia! Eu não tinha idéia dos limites daquele meu poder, e tão pouco tinha idéia do seu tamanho, mas me sentia cada vez mais realizado enquanto o exercitava, o descobria aos poucos.
Naquela noite, minha cabeça doía pela força da sede, e eu estava próximo a um hospital, portanto dá pra visualizar a atração magnética que aquele cheiro todo de sangue, de alimento, causava no meu corpo. Eu estava em uma casa abandonada, na porta havia uma placa dizendo que a família ali tinha sido presa e executada por heresia, um exemplo a não ser seguido. A inquisição era sem dúvida uma pedra no meu sapato - se eu tivesse um, claro, já que eu andava descalço - porque me obrigava a ser três vezes mais cauteloso, mais controlado, mais... faminto. Ao menos, os meus atuais trajes - que eu facilmente classificaria como uma fantasia de mendigo - me camuflava na multidão abatida da época.
Eu queria acabar com aquilo. Eu queria por um fim aquela sede, mas não mais com sangue humano, não mais com sangue de pessoas inocentes, pessoas que certamente tinham uma família, alguém que as amasse e que se preocupasse com elas. Eu queria encontrar uma saída para a minha maldição! E foi essa minha agonia, esse meu tormento particular que fez eclodir mais um "dom" até então desconhecido: eu podia sentir as pessoas ao meu redor, mais do que isso, eu podia sentir a energia que emanavam, sua aura – por falta de palavra melhor. É como se eu tivesse sido cego por tanto tempo e de repente voltasse a enxergar, uma enxurrada de sensações me golpeava. Eu sentia cada vida pulsante em volta de mim. Suas vontades, seus propósitos de existência. Eu sentia o verdadeiro "ser" delas. Como tentativa de focalizar em um objeto específico, eu tentei o hospital. Eu via, quando fechava meus olhos, a cor que cada aura ali tinha, em que estado se encontravam e o que eu via naquele lugar me perturbou. Eu via o vermelho-sangue da dor, o roxo da morte, o cinza turvo do pesar e da culpa, e eu era capaz de sentir o que cada um passava ali, de uma forma empática. Aquilo se não fosse tão agonizante, eu classificaria como interessante. Desde quando eu era assim, tão empático? E desde quando eu sabia fazer aquilo? Foi ai que eu me descobri, além de psicocinético, pois eu já fazia o que bem entendia com a matéria ao meu redor, um sensitivo.
Com a brisa que varreu o quarto sujo em que eu me encontrava, veio um odor viajante novo, que eu nunca tinha sentido antes. Era tão forte, tão concreto que por um instante eu achei que seria capaz de tocá-lo e fechando os olhos, notei que aquele odor carregava um sentimento, o estado de espírito de alguém, então eu me abri para aquela nova possibilidade que se mostrava diante de mim. Eu fiquei ali por horas, testando e memorizando cada um, cada cheiro que, viajando pelo vento da noite, chegava as minhas narinas sensíveis de predador. O cheiro horrível da agonia, o ferruginoso cheiro da raiva, o doce cheiro da alegria, o leve odor da paz. Todos estavam ali, para me ensinar quando e onde cada um aflorava, sua intensidade e quem os produziam. Eu certamente, um dia, me tornaria bom naquilo.
Os anos fluíram, muito, muito depressa, e eu agora já não era mais a aquela figura animalesca que um dia eu tinha sido nos primeiros tempos, nos tempos que sucederam a conversão. Eu agora voltara a ser um nobre, e tinha que agir como tal. Não podia deixar que todo aquele instinto animal que teimava em emergir vez ou outra tomasse conta de mim e me subjugasse. Além do mais, meus pais haviam morrido, e como eu era filho único, quem iria tomar conta de tudo a não ser eu?
Foi breve o meu retorno ao lar, porque eu tenho que dizer que por mais que a Grécia continuasse deslumbrante do jeito que sempre foi, certamente não era um lugar... adequado para um vampiro com todo aquele sol brilhando sobre o Egeu. E se eu quisesse "viver" por muito mais tempo, eu não devia me denunciar aos habitantes da ilha. Além do mais, acho que papai fez o seu trabalho, espalhando entre os moradores, na sua maioria pescadores, de que existia um kathakano¹ caçando nas ilhas próximas. Sem dúvida a fofoca tinha se solidificado. Todos me apontavam como um candidato em potencial. Mas eu não caçava em Patmos. Para mim não era certo. Havia certo respeito que emanava de mim para com aquele lugar. Eu tinha crescido ali e houvera, num passado próximo, pessoas conhecidas para mim ali, hoje representadas por seus filhos e netos. Eu não faria nada contra a paz daquele lugar.
Então tranquei as portas para o meu passado, abandonei meu castelo e fui embora. Mudei-me para a França, onde tomei para mim como novo lar um chalé bem aconchegante ao sopé dos Alpes. "Aqui começa a minha nova vida, ou melhor dizendo, a minha nova existência começa aqui. Chega de carnificina. Chega de perdas humanas. Eu vou sobreviver a isso. Não sei como ainda, mas vou!" – eu disse para mim mesmo, ao terminar de me instalar, mirando, da sacada da varanda do meu pequeno jardim de inverno, aquela fascinante vista para as montanhas. "Eu serei o mais normal que um ser como eu pode ser". - terminei. De uma coisa eu estava certo: aqui com certeza eu estava livre do sol, pois com toda aquela neve e chuva, era uma coisa a menos para me preocupar.
Já estava no ano de 1849, quando as tropas francesas ocuparam a pequena cidade próxima e corria a notícia de que a República Romana sucumbia às investidas de Napoleão. "Um anãozinho medíocre e ganancioso. Inteligente, mas ainda assim medíocre e ganancioso" – disse com escárnio. Minha paz começava a sua contagem regressiva, supus a mim mesmo, já que com as tropas ali e constantes mortes, pois sempre haveriam rebelados, meus instintos, mesmo que acorrentados graças a décadas de autocontrole, estariam lutando contra seus grilhões.
A essa altura, eu com os meus 167 anos – isso em contagens normais, já que eu ainda conservava os meus atributos físicos de um jovem de 18 – já tinha aperfeiçoado os meus poderes, estava mais habituado a cada um deles e inclusive já os empregava há muito tempo em minhas caçadas, porque para se caçar animais, como seres irracionais que são, eu não podia apelar para a minha beleza ou galanteios. O que contava era a destreza, a velocidade, a astúcia e em todas essas qualidades eu era exemplar. Minhas presas preferidas eram os cabritos-montêses, dada a dificuldade e diversão que me proporcionavam na caçada. Era divertido e instigante correr atrás deles pelas escarpas das montanhas. Tinha que reconhecer que eles eram exímios escaladores, e em inúmeras vezes me fizeram saltar mortalmente de um precipício a outro, mas eu tinha o que eles não tinham: a minha mente poderosa. Até então eu não sabia se outros de minha espécie podiam "voar", mas eu certamente podia, fato que descobri em uma dessas minhas caçadas nas escarpas. Concentrando-me na mobilidade e leveza do meu próprio corpo eu era capaz de fazê-lo levitar e disso para o vôo, só bastava força de vontade. Minhas habilidades sensitivas já não eram tão estranhas para mim e nem um pouco limitadas, dado ao tempo de prática.
Eu tinha uma teoria acerca do porquê de eu ser detentor de tais dons: eu com certeza já os tinha quando pequeno, só que em menor potencial. Eles se intensificaram na conversão e o único trabalho que tive foi exercitá-los.
A minha decisão de mudar dali só foi intensificada quando, numa tempestade, os ventos trouxeram o cheiro impregnante de sangue da cidade vizinha, um campo de batalha onde uma rebelião houvera sido rapidamente massacrada pelas tropas do "anãozinho". Aspirei o ar uma só vez e foi o bastante para que eu perdesse todo o controle. "Quantos corpos...", disse trincando os dentes, "quanto sangue..." – eu ainda tentava fracamente me controlar. Mas eu não podia agüentar mais. "Os animais me bastam! Os animais me bastam! Eu não sou um mostro. Eu não vou me sujar assim".
E parti exatamente no dia 5 janeiro de 1850, levando comigo só as lembranças daquele lugar que me foi de grande valor. Eu nunca ia esquecer a pequena cidade de Bijou de La Couronne e o que ela havia representado para mim: ela houvera sido meu laboratório, meu lar, minha casa enquanto eu bravamente lutava contra a minha sede e a estabelecia bem no fundo do meu ser. Agora só existia uma sede, a sede da subsistência, e com essa eu podia lidar.
Eu fui primeiro para Portugal, fiquei em Lisboa somente alguns anos, o bastante para me distrair na Universidade de Coimbra e me formar com honras em Literatura e Música. De lá fui para Londres, onde passei outra curta temporada. Londres era linda, convidativa, nada comparada a Paris apática do domínio napoleônico, mas não tinha muito o que se caçar, e eu já tinha coisa demais para me preocupar como os "bichos" que eclodiam dos esgotos a noite, como vermes saindo de seus ovos, famintos por carne e sangue. Nem na minha forma mais primitiva, eu me parecia com... aquilo. Eu com certeza era superior, não deixava que a sede me sucumbisse. Eu era racional, instruído, culto... normal – o que quer que significasse essa palavra exatamente. E os anos passaram...
Muitos e muitos anos depois...
Quando se tem a eternidade a nossa frente, o tempo parece passar de maneira diferente, anos se tornam tão irrelevantes como segundos, e assim, séculos se passaram, vi as mudanças tecnológicas surgirem fronte aos meus incrédulos olhos, e se aperfeiçoarem, grande personagens surgirem, e irem...
Eu vi a Primeira e a Segunda Grande Guerra acontecerem e acabarem. Eu vi quanto um homem pode ser parecido com um animal irracional quando se tratava de matar o próximo, e olha que eles nem ao menos eram como nós, que matávamos só pela sede. Eles matavam por motivos fúteis, sem sentido, como a disparidade da cor da pele, ou da ideologia religiosa, ou simplesmente porque o outro discordava, seja qual for o assunto. Eram tempos de horror, de submissão, de ódio, de sofrimento. Quantos judeus morreram para que aquele monstro que os humanos chamavam de Führer se satisfizesse? Ou seria só Adolf para os íntimos? Na verdade, eu tinha certeza de que tinha dedo da nossa espécie por trás disso, daqueles que ainda bebiam sangue humano. Eu duvido muito que eles tivessem parado se não fossem os Aliados acabarem pouco a pouco com as suas tropas e Hitler se visse forçado a se suicidar. Lógico! Ele era covarde demais para enfrentar a situação de frente! Como se eu não soubesse que ele era mais uma criança mimada que só porque não tinha talento para as artes, viu na política uma forma de "aparecer". Ridículo. Talvez eu nunca chegasse a entender como os humanos pudessem ser tão frívolos, tão superficiais, e olha que eu tinha anos de experiência visual no assunto.
A Europa estava arrasada, e os escombros se espalhavam por quase todo o velho continente. Nem a velha Grécia havia se salvado. Pelo menos tinha sido bom por um lado, porque só um conflito dessa magnitude para unir em um Estado só todas aquelas ilhotas divididas. Mas a morte pairava por cada fresta, cada mísero buraco e os sobreviventes se contavam com os dedos. Eu sentia a aura carregada de cada lugar por onde eu passava. Eu já controlava a sede a essa altura, então ver corpos despedaçados por aí não mais me afetava. Eu tampouco me aproveitaria de uma situação dessas pra me alimentar. Que educação eu teria se profanasse qualquer daqueles corpos que tiveram suas vidas arrancadas de si de uma forma tão violenta, tão abrupta?!
'Refugiei-me' na Suíça - Zurique para ser exato - por um tempo, lamentando que a guerra tivesse destruído minha casa de veraneio na fronteira da Alemanha com a Áustria. "Eu terei tempo pra reconstruí-la depois. Foi uma perda insignificante comparada a todo o resto." – eu disse para mim mesmo. Lá eu aperfeiçoei meus talentos de músico e até descobri uma "veia" para as artes plásticas. De todos os quadros que pintei só um me marcou, do qual até hoje não sei qual é o seu destino. Devia estar no acervo de algum colecionador muito recluso, porque eu gastei longas décadas tentando encontrá-lo de novo. Era um quadro inspirado na noite em que me transformei. Um quadro de minha mãe, naquele vestido azul marinho que sempre dava uma cor vislumbrante ao moreno de sua pele. Eu a pintei como ela era nas minhas lembranças, sorrindo para mim. Sempre e pra sempre.
E aqui estava eu, caminhando sobre o séc. 21, nas ruínas da casa de meus pais. Para mim era incrível como construções como aquela podiam durar tanto. Mas se compararmos com a Acrópole de Atenas ou alguns templos em Éfeso, não era mesmo de se surpreender. Os gregos haviam surgido para deixar sua marca na sociedade, e isso se aplicava também a arquitetura obviamente.
Quando me lembrei do quadro, já era com certeza noite na ilha. O céu, estrelado mais do que eu lembrava ser quando criança se estendia negro, sob a luz de um luar digno de ser retratado. Respirei fundo, absorvendo aquele cheiro de sal que a maresia trazia até mim, o cheiro de peixe que ocupava cada canto da ilha, senão cada canto de cada casa. "Argh! Eu nunca gostei mesmo de peixe!" – falei com nojo do cheiro. Mas também senti, no meu campo psíquico, que um grupo de cabras corria solta na ilha vizinha, e eu sentia uma sede que me ardia há três semanas já. Eu precisava caçar. Deixaria que meus instintos me tomassem, mas só por hoje. Só para que aliviasse minhas tensões e eu deixasse de pensar, de lembrar. O caminho até a Ilha Arki não era tão grande assim e eu com certeza levaria cerca de cinco minutos para chegar até onde estavam as cabras. Eu podia sentir. Elas estavam agitadas, mas mesmo agitadas, elas não eram tão velozes assim. Huum, isso não vai ser tão divertido quanto às cabras montanhesas, mas vai calhar... Eu tinha um jeito peculiar de caçar. Eu não perseguia, eu esperava, esperava a presa cair na minha teia, tal qual uma aranha espera que uma incauta mosca caia na sua armadilha. Como eu podia sentir seus movimentos, eu também podia prever qualquer pequena variação na fuga, e correr direto na direção em que pretendiam. Pobres cabras... - eu pensei com os olhos já escurecendo e os músculos tensionados - seu fim, caminha ao seu encontro. Com um sorriso que eu sabia não ser meu e sim do monstro faminto, eu parti para a noite, para mais uma caçada, deixando Patmos ter uma noite de paz.
Pela manhã, quando eu já tinha acabado de caçar e de dar problemas suficientes por uma noite para os coitados dos pastores da ilha vizinha, eu me debrucei no parapeito da janela mais afastada da casa, a que dava de frente para o mar, sem que ninguém me visse, ofuscadamente brilhante, de onde eu estava. E ali, sem que eu pudesse controlar, eu lembrei novamente daquela noite a três semanas atrás e que tinha tudo para ser mais uma noite qualquer, mas como eu meio que já esperava por isso, não foi. Eu, aparentemente, devia ser perseguido constantemente pelo quarto cavaleiro do apocalipse, aquele amarelo que carrega atrás de si o pesar, a morte e o inferno. Eu com certeza era perseguido pelo inferno, pois eu tinha uma "sorte" que ninguém invejaria. E para ratificar o que eu estou dizendo, eis o que aconteceu naquela noite.
Andava calmamente pelas ruelas do vilarejo de Daxus, que se erguia na parte mais ao norte da ilha, esperando que alguma presa caísse na minha teia. Enquanto eu esperava, não custava nada apreciar o lugar, já que desde pequeno eu gostava de ver como o mar massacrava as pedras na praia naquele lugar, ainda mais a noite quando o calor amenizava – não que eu me importasse com o calor, claro – e o mar parecia um enorme espelho ante a lua cheia. A cidade estava vazia, já que se faziam umas boas onze da noite e era comum o povo dormir cedo por aqui, por isso não me importei em ser visto.
Mas o problema maior não foi ser visto, mas sim ver o que vi enquanto passava por mais uma das incontáveis casinhas brancas caiadas. Eu não vi na verdade, eu senti uma aura negra, uma aura de morte, de desejo de tortura e prazer nessa tortura e ao lado dessa aura uma aura bege tingindo-se aos poucos com o marrom do medo à medida que o detentor da aura negra que eu sentira se aproximava dela. Eu senti casa desejo que emanava daquele ser quando eu aspirei profundamente e entendi o cheiro: o peso sufocante do puro prazer envolto de morte. Eu fechei os olhos para ver mais precisamente agora que tinha o cheiro pra me guiar e cheguei à fonte daquela agonia em questão de segundos, a tempo de ver um homem grande, gordo e aparentemente velho, avançar em direção a uma pequena mulher que, ao que parecia e conclui em meio-segundo analisando a situação, estava tirando os lençóis que provavelmente esquecera no varal. Ela estava tão paralisada pelo choque que era incapaz de sequer reagir, gritar, clamar por ajuda. Ela não tem senso de preservação não? Por que ela não grita?! – eu pensei inconvenientemente da posição de vítima da mulher. Mas quando o homem finalmente a tocou e riu quando lacrou os lábios de sua indefesa vítima com uma das mãos é que alguma coisa dentro de mim despertou, e foi como se eu pudesse ouvir o "click" de algo ligando em mim. Eu não pisquei enquanto calculava o que deveria fazer. Eu simplesmente decidi que agarraria aquele animal pelo pescoço, quebraria cada osso de seu corpo tendo o cuidado de inutilizar suas cordas vocais para que nenhum som fosse emitido no processo, e ver como ele regia a dor, agora em que ele é que a estava sentindo. Ele sentiria prazer? Certamente que não. E eu ia cuidar para que não sentisse mesmo. E faria isso com as mãos, sem usar a minha mente. Quem sabe quantas outras ele já não houvera atacado e ficado por isso mesmo, sem que ninguém soubesse, como se o silêncio e impunidade o encorajasse a fazer aquilo mais e mais. Mas nas outras vezes nós não havíamos nos encontrado, ou melhor, eu não havia o encontrado, porque se houvesse certamente ele saberia que em mim residia sua morte e sua punição merecida.
No momento em que eu maquinava silenciosamente como dar cabo daquele ser imundo, a mulher olhou pra mim, como se só naquele instante tivesse me notado ali parado, assistindo o pequeno show de horror do qual era vítima. E o homem, percebendo que tinha platéia, virou na minha direção, ainda tendo o cuidado de continuar tampando a boca da mulher, e disse de uma forma séria, mas divertida:
"Você quer ver como se faz para satisfazer uma mulher, criança? Veja e aprenda." – ele disse rindo um riso sinistro, com dentes faltando e os que restavam amarelos e podres. "E não saia daí, porque eu posso apreciar ter uma pequena platéia, mas não gosto de ser alvo de publicidade."
"Eu só tenho duas coisas pra te dizer, gordo fedido!" – eu respondi calmamente, como se desmerecesse a tensão que a situação pedia. "Um: eu não sou uma criança, e você vai ter certeza do que digo daqui a um segundo. E dois: Veja e aprenda você!"
Em um piscar de olhos ou menos do que isso, eu já tinha minha mão envolta da garganta dele, de uma forma que não o matasse de imediato, mas só o imobilizasse. Com o barulho de alguma coisa sendo esmagada, ele cuspiu sangue fora, assim que eu acabei com a garganta dele, já impedindo-o de falar, o que sequer gritar. "Vamos ver o quanto você gosta de sentir dor." – eu disse quebrando o braço esquerdo dele em três partes sem esforço físico algum, só me concentrando em partir seus os ossos. Ele gemeu, tentando gritar de dor - o que só gerou ainda mais dor para si mesmo. Então eu me dirigi à mulher, "Eu acho, minha senhora, que os seus lençóis já estão devidamente secos. Então por que a senhora não os leva para dentro e fecha as portas? Tenho certeza de que não gostará de ver o que farei com esse aqui." Prontamente ela se afastou, com os olhos mais arregalados ainda e tremendo mais do que pelo que acontecia a ela ainda pouco, murmurando sem voz um 'obrigado' desnecessário. Só quando ouvi o barulho da porta se fechando e dos ferrolhos sendo passados nas trancas é que voltei a minha atenção ao animal que tinha em minhas mãos, que neste momento estava chorando pela dor gerada pelo braço recém-quebrado. "Quem é a criança agora hã? Ah, vamos lá! Isso foi só o começo. Um bracinho não é nada comparado ao que eu vou fazer com você." E olhos dele se arregalaram de tal forma ante ao medo e terror que eu não pude deixar de rir sadicamente, "Se você pensava que podia fazer o que bem entendesse e não ser punido... isso foi antes de mim."
Depois de reduzir o corpo daquele mostro – que em minha opinião, devia ser uma cruza do pai dele com alguma cabra ou vaca por ai – a um mero quebra cabeça irreconhecível, eu o atirei no alto-mar, aos peixes e aves famintas, que era o que ele merecia. De alguma forma eu senti como se tivesse feito um bom trabalho, feito um bem a alguém e aquilo redimisse ao menos uma partícula do que eu era realmente. Eu houvera posto fim a um mostro humano. O que não me fazia melhor do que ele na verdade, já que eu era um mostro também. Aqui a culpa finalmente me bateu, com um tapa forte e sem remorso.
"O que faz de mim superior a ele? Um monstro matando outro?! Isso pode ser qualquer outra coisa, menos nobre. Eu não devia ter feito aquilo. Eu devia tê-lo deixado atacar a pequena mulher então? Isso é que não teria sido nobre. O que eu deveria ter feito então?! Com certeza ela vai sair por aí falando assim que amanhecer. Contar pra Deus e o mundo grego que ela foi salva por um menino – porque todos costumam pensar que eu sou um menino, mesmo eu tendo meus um e noventa e cinco de altura – e como o agressor dela simplesmente desapareceu. Eu seria herói ou vilão? Com certeza o vilão, com certeza!" – eu disse findando meu pequeno monólogo.
Quando amanheceu, eu já meio que esperava ter que me mudar e procurar um lugar pra subsistir por mais algumas décadas antes de voltar pra visitar a minha ilha novamente. Ma o que se seguiu me pegou de surpresa: não havia um comentário, uma fofoca, um murmúrio acerca do que houvera acontecido na noite passada. Nada! Nem se quer tinham dado falta do animal gordo e fedido – porque ele fedia! Deus me ajude, como ele fedia! – o que significava que ele não tinha ninguém a quem gerar falta mesmo. E por isso eu senti alívio. Alívio por perceber que aquela mulher tinha para si sua gratidão, uma gratidão muda. E eu fiquei feliz por tê-la ajudado. Talvez ela nunca mais esqueça lençóis no varal – eu pensei, rindo disso em seguida.
A ignorância do povo do vilarejo sobre o que ocorrera naquela fatídica noite, foi o que me manteve por mais essas três semanas aqui. Mas eu mesmo não agüento mais ficar aqui. Cada lugar aqui me faz lembrar que eu não sou mais humano, e sim um monstro que não pensaria duas vezes antes de matar se quisesse. Aqui eu não pude deixar de me comparar com qualquer outro homem que a história tenha feito o trabalho de denegrir a imagem por conta das mortes que tenham causado. O problema não estava fora, estava dentro de mim, no meu consciente, me gritando a cada instante que eu não prestava para esse mundo, para ninguém! Eu tinha que fugir dali. Mas fugir para onde, quando o seu perseguidor é a sua consciência culpada? Para onde se foge da própria consciência? É nessas horas que eu desejava mais do que ardentemente poder dormir, poder sonhar e mandar a maldita culpa pro espaço.
Quando um vento forte varreu o meu rosto, jogando nele todo o sal quanto era possível dele carregar, eu acordei daquele maldito devaneio de novo. Lá estava eu pensando naquela maldita noite. Pensando bem, tudo em mim era maldito! E não havia nada naquele presente momento que me fizesse pensar o contrário.
A Grécia teria que se despedir de mim e eu dela porque Andreas estaria partindo de novo e quem sabe agora por quanto tempo. Eu tentaria me reconstruir em algum outro lugar, e me ocupar com alguma coisa em longo prazo, a fim de esquecer o que aconteceu aqui.
Eu já era formado em História da Arte, História Geral e da Guerra, pelo College of Christchurch na Universidade de Oxford; Música e Literatura, pela Universidade de Coimbra; Ciência Política, Comércio Exterior e Diplomacia, pela Universidade de Sorbonne em Paris; Sociologia Moderna e Histórica, pelo Colégio Politécnico de Berlim Ocidental; Cálculos e Engenharia pela Universidade La Sapienza em Roma; e a minha mais recente aquisição, Biologia Marinha pela Universidade de Atenas. E o que é mais surpreendente: tudo aos 18 anos, sem uma ruga sequer!
"Acho que vou fazer arquitetura ou biologia, ou qualquer outra coisa, desde que seja bem longe daqui." – eu disse e no mesmo momento eu emendei, iluminando a minha face, como se um mundo novo se mostrasse totalmente possível diante de mim - "Eu sempre quis ser um pesquisador! Por que não sê-lo agora? Bem... pra alguma coisa aquele gordo idiota serviu: motivar-me! Eu acho que é hora de novos ares, novas fronteiras. Talvez hora de finalmente visitar a América, de conhecer o Novo Mundo eu mesmo."
Comecei a preparar a minha partida para a América já no dia seguinte, e 15 dias depois eu embarcava em um avião no aeroporto de Atenas, rumo a Lisboa e de lá eu partiria para Washington D.C, pois por onde começar senão pela capital do país?!
E eu olhei para o destino que se erguia diante de mim, desconhecido, e o abracei, sem me importar com o amanhã, ou com o futuro.
"América, aqui vou eu!"
#################
(¹): kathakano é como os gregos chamam as "feras bebedoras de sangue" ou vampiros, simplesmente.
N/A: Gente, o capítulo um foi parcialmente reescrito para que eu pudesse dar continuidade na história. O gancho que eu estava seguindo era limitado, então parti pra outra, com outras idéias. E eu sei que este capítulo é meio chato e foi meio enfadonha essa crise existencial do Andreas, mas não se preocupem, porque isso vai passar. O capítulo dois já está postado e aguardando reviews. Desculpe a demora na atualização, mas é porque eu praticamente esqueci que tinha essa fic ainda por aqui. Vou tentar retomá-la ok. Espero que gostem dos novos rumos que ela tomou.
Bjunda da Gê!
