A Última Máscara III
I
É estranha a sensação que tenho agora. A vida parece rir de mim! Sinto-me um joguete nas mãos do Destino.
Porque você está vivo outra vez, e ao lado de Hades.
O que eu devo fazer? Se cogitar uma idéia maligna me rendeu dez dias naquela "maravilhosa" prisão, estando entre a vida e a morte, que diríamos de você, que realizou o que eu pretendia, logo após me condenar?
Mas o pior não é isso. Antes, você ainda tinha a patética desculpa da "dupla personalidade". Hoje, é a sua própria essência que está ao lado do rei dos mortos. Não há mais como escapar; a sua alma é realmente maligna, Saga, e eu sempre soube disso.
Não adiantou ter pedido perdão à Atena antes de morrer; você simplesmente mostrou quem é diante da ambição. E para mim? Se para Atena você ao menos fingiu estar arrependido anteriormente, que diríamos do seu "irmãozinho", como você me chamava na tenra infância? Não adianta; você, outrora tão severo, não vai escapar do meu julgamento interior.
Maldito. Desgraçado. Ao contrário de você, sempre fui impulsivo, parcial e subjetivo. Mandava às favas o dever, os encargos, tudo que não sentisse como meu na vida. E o que mais senti como meu foi você. Precisamente por isso, você foi quem mais amei. Aliás, me pergunto se já cheguei a amar alguém além de mim mesmo. Amo Atena hoje, não pelo exemplo que você supostamente me deixou quando éramos mais jovens, mas pela minha existência, que ela preservou.
E você? Bom, eu via meu rosto estampado no seu. Talvez por isso o amasse mais que tudo. Era um amor egoísta, hoje o sei; afinal, eu o sufocava, não é mesmo?
Por trás daquele comportamento agressivo e maldoso perante os outros, eu escondia insegurança. Eu era sua sombra, e com muito prazer. Não havia pessoa no mundo que eu pudesse ter mais satisfação em "imitar". O fato de eu ser inseguro não provinha disso, mas de eu não poder me identificar como seu irmão a terceiros; de eu ter que ficar me escondendo dos que o conheciam; de nunca podermos aparecer juntos em público. Enfim, de você ser meu único amigo. E se eu o perdesse? Ficaria só, completamente só.
Não havia muito o que fazer no Santuário em nosso tempo de aprendizes, a não ser treinar duro. Levantávamos cedo, íamos ao treino, cumpríamos mais algumas funções, voltávamos para casa, líamos alguma parte da teoria ou conversávamos sobre alguma coisa, e depois íamos dormir. Aquela vida já estava me enjoando. Não recebíamos nada, além da nobre perspectiva de protegermos a deusa. Ensinaram a nós, inclusive, que deveríamos matar qualquer um que ameaçasse a divindade, fosse essa pessoa até um de nós dois.
Comecei a pensar que você amava mais a Atena do que a mim, pois gastava toda a sua vida nisso, e parecia concordar mais com o que o Grande Mestre ou outros diziam a respeito dela, do que comigo, que sempre reivindicava alguma vida para nós. Daí para pensar que estava perdendo você definitivamente a ela, foi um passo.
Hoje, já adulto, me rio do medo mórbido que tinha de perdê-lo. Foi isso, exatamente, o que nos separou.
Porque ficar conjecturando tais coisas não bastou. Desenvolvi um ódio tão grande pela situação em si, de que estávamos sendo usados simplesmente, e da sua total submissão a isso, que comecei a ficar paranóico pela ambição.
Nós treinávamos juntos, apesar de a Armadura de Gêmeos ter escolhido apenas você como seu guardião. Mesmo assim, eu o sucederia caso algo lhe acontecesse. Então, tinha que desenvolver a cosmo-energia e outras habilidades tanto quanto você.
Ter sido colocado em contato com poderes descomunais sempre me fez pensar que éramos verdadeiros idiotas por usarmos tudo aquilo apenas para defender a tal deusa, e nada mais. Em seu coração ainda jovem, você pensava que isso por si só era algo nobilíssimo, e que não precisávamos daqueles atributos para outras coisas. Mas eu, mesmo tendo a sua idade, já não tinha intacta a inocência da infância, nem os princípios dos puros de coração. O que eu queria mesmo era me aproveitar da situação; era cuspir na cara daquele povinho que havia me posto no ostracismo apenas porque já existia um Cavaleiro de Gêmeos, e eu não podia sequer ter vida pública por conta disso.
Embora meu irmão fosse o "tal" Cavaleiro de Gêmeos, eu não sentia que a culpa era dele pela exclusão imposta a mim. Afinal, quem havia inventado isso era o Grande Mestre, ou não sei mais quem. Era dessa gente, da alta "nobreza" do Santuário, que eu tinha raiva.
Enquanto eu alimentava esses sentimentos contra tudo à minha volta em silêncio, Saga, meu irmão, ganhava a admiração de todos por sua honra e honestidade, além, claro, de ganhá-la também por seu poder grandioso. Mas o que mais impressionava as pessoas era o fato de Saga conseguir desferir algo tão potente quanto a "Explosão Galáctica", e consolar uma criança triste com a mesma sutileza e afeição de uma mãe. Meu irmão realmente só usava seu poder quando precisava, contra quem precisava. Jamais o fez para se vangloriar, para mostrar o quanto podia, como muitos menos fortes do que ele viviam fazendo.
Logo, até os moradores da vila que fica na parte externa do Santuário começaram a colocá-lo no patamar de "deus". E era incrível como ele nunca se classificava como um!
Assim que soube dessa admiração das pessoas, passei a dizer que eu era seu principal "adorador". E, de fato, eu era o que mais conhecia Saga a fundo, e o que mais o amava. Se bem que ele, sempre humilde, pedia para eu parar com aquela vangloriação exagerada.
Eu poderia ter ficado com inveja dele. Mas não havia como não pensar que a melhor pessoa no mundo para ter tantos privilégios, que não fosse eu, seria meu gêmeo, aquele que até mesmo dividiu seu óvulo comigo, e ostentava uma aparência igual à minha. Ver meu rosto num Cavaleiro comparado a um deus era o mesmo que ver a mim mesmo dessa forma.
Logo, Shion, o Grande Mestre, declarou que talvez indicasse em breve um sucessor a seu cargo, pois já estava bastante idoso, e uma nova Guerra Santa parecia iminente.
Assim que a notícia se espalhou, todos começaram a afirmar categoricamente que o escolhido seria meu irmão. Até porque não havia muitos outros Cavaleiros de Ouro com idade para se candidatar ao cargo, e ele parecia simplesmente perfeito para tal.
Fiquei muito contente com a notícia. Já ouvira falar que o Mestre, na prática, tinha poder para mandar em tudo se quisesse. Meu bondoso Saga jamais faria isso, mas eu o influenciaria. Como não cederia aos poucos a seu próprio irmão? E eu, finalmente, teria o usufruto de meu poder, junto com ele. Não seríamos mais dois panacas que trabalhavam de graça.
Como apenas enxergava eu e ele na vida, não tinha receio de ferir, prejudicar ou até mesmo matar quaisquer outras pessoas. Então, pensei que com um pouco de paciência poderia conseguir tudo o que quisesse, além de chegar à conclusão de que o destino finalmente parecia favoravel para mim.
Dia após dia, esperava ansiosamente pelo momento em que o Grande Mestre se decidiria de vez sobre seu sucessor. Até que tal hora chegou.
Num início de noite, Saga saiu de casa de forma repentina. Perguntei a ele onde ia. "O Mestre está chamando a mim e a Aioros para resolver algum assunto.", ele respondeu. Exultei. Só podia ser a convocação dele ao cargo. Para chamar dois Cavaleiros de Ouro juntos à Sala do Mestre... e em meu otimismo exagerado, Aioros estaria fora de cogitação para assumir a sucessão.
Assim que meu irmão saiu, fui ao mercado e comprei vinho, passando-me por Saga, para comemorarmos quando ele chegasse. Voltei pra casa, bebi um pouco e contemplei minha imagem no espelho. O futuro Grande Mestre teria minha aparência...
Não demorou para que meu gêmeo voltasse. Ele parecia feliz, como se um enorme peso houvesse sido tirado de suas costas. Felicitei-o, o chamei para que se sentasse ao meu lado e bebesse um pouco. Ele não quis; não bebia àlcool. Insisti, dizendo que era uma noite especial. Saga disse que não, e comecei a me irritar com seu conceito exagerado de fazer tudo certo. Eu não permitiria que meu irmão deixasse de se influenciar por mim; era um ponto de honra! Afinal, se não conseguia sequer convencê-lo a tomar um mísero copo de vinho, como faria com que ele usasse o poder de Mestre para não exatamente aquilo que seria considerado correto?
Comecei a dizer que só um gole não faria mal. Afinal, todos bebem um pouco de vez em quando. Ele retrucou dizendo que era um gosto pessoal seu, mais nada, e queria ser respeitado nisso. Fiquei chateado. Disse que ele jamais me ouvia; que deveria dar mais atenção a mim, e não simplesmente se basear em pessoas que na verdade mal o conheciam.
Aquilo o magoou de certa forma. Saga me fitou com uma centelha estranha nos olhos. Jamais havia visto tamanha carga de reprovação num só olhar seu para mim. Ele era muito bom, mas não deixava que as pessoas ultrapassasem certos limites para consigo, nem mesmo eu. Sua personalidade era forte e determinada.
Não encarei a situação com bons olhos. Ao invés de perceber que estava sendo intrometido, pensei que Saga era ingrato. Em toda minha doentia insegurança, me senti pouco priorizado. Então eu comprava um vinho pra comemorar algo que era bom para ele, e ele não aceitava! Rejeitava, como se rejeitasse a mim mesmo. Em minha cabeça então oca, pensava que se outros lhe oferecessem tal bebida, ele aceitaria sem titubear.
Fiquei calado, pois se continuasse colocando lenha na fogueira poderíamos ter uma briga séria. E nunca havíamos discutido por coisas mais importantes do que um brinquedo na infância, ou por alguma comida. Eram rusguinhas bobas, sem significado algum, e não seria na noite de sua indicação como Grande Mestre que teríamos a primeira desavença de verdade.
Respirei e tentei me acalmar. Procurei alguma fruta em casa, achei um cacho de uvas, fiz um suco e ofereci a ele. "Se não gosta de vinho, então trago a matéria-prima dele a você.", disse. "Mas ao menos sente-se ao meu lado, para que comemoremos." Saga melhorou sua expressão e aceitou minha oferta. Senti-me um pouco aliviado, e com a animação do início da noite quase restituída, perguntei: "E então, como foi a audiência?"
Meu irmão tomou um gole do suco, como se não quisesse responder de imediato. Estranhei. O resultado da conferência era confirmação de algo que eu ansiava; por que hesitava em me dizer?
Saga ainda esperou alguns segundos, inspirou mais profundamente, tentou sorrir levemente e disparou a bomba:
"O Mestre escolheu a Aioros como seu sucessor. Francamente, estou bem mais tranqüilo. No fundo, por mais que todos quisessem que eu assumisse, nunca almejei o cargo."
Meu rosto deve ter se transformado numa carranca muito feia. Pois Saga, que não costumava se surpreender facilmente com as coisas, fitou-me com estranheza.
"Aioros?", eu disse, com amargor e acento na voz. "Como! Aioros é um inútil, um verme no qual eu pisaria com facilidade, quanto mais você!"
Meu gêmeo lançou-me um olhar pior ainda que o anterior. Estranhei, embora não devesse, mas logo em seguida disparei meu arsenal de críticas e sarcasmos, não dirigidos a ele, mas a Shion e todo o resto. Era uma dor muito grande a de ver meus sonhos jogados no lixo, tudo por causa da escolha de um velho gagá como o Grande Mestre. Era óbvio que ele só podia estar delirando!
"Por quê, por quê!", continuei, levantando da cadeira. "Por quê não você! Todos o consideram um deus, o deus que eu sei que você é, Saga! Aioros não; ele é medíocre, e se apaga totalmente perto de seu esplendor! Então é assim que lhe retribuem por sua nobreza infinita, por seu poder, por sua abnegação e esforço! É como eu sempre disse, isso aqui é servidão gratuita! Não temos reconhecimento não temos! E jamais teremos!"
Bradei isso e muito mais, sentindo que meu sofrimento apenas aumentava a cada palavra proferida. Até a hora em que Saga me segurou pelos ombros, parando repentinamente a verborragia.
"Já disse que prefiro assim!", ele retrucou, o olhar tenso. "Seria um peso muito grande. Um cargo que eu não poderia, provavelmente, suportar. Não insulte os outros por conta disso!"
Peso muito grande? Saga nunca havia recuado ou fraquejado diante de um desafio, por maior que o obstáculo fosse. Por que então falava assim?
Indaguei a razão desse seu receio. Meu irmão hesitou mais uma vez, e seu semblante estava triste.
"Kanon, quero confiar em você. Posso?"'
Assenti. É claro que poderia. Eu jamais teria a intenção de trair Saga, apesar de tê-lo feito mais tarde sem saber.
Ele sentou-se novamente, olhou para mim e começou a revelar um segredo até então só seu.
"Sou dividido em dois. Enquanto uma parte de mim quer apenas servir à justiça, a outra diz coisas maléficas em meu ouvido. Ele insiste que devo tentar algo para meu proveito. Que não devo me importar com outros. Que os fins justificam os meios. Se eu assumisse como Grande Mestre, era bem capaz de esse ser tomar conta das coisas e fazer o que não fosse o mais acertado. É certo que até agora ele apenas se manifestou sob meu controle, mas nunca se sabe..."
Segurei um sorriso que despontava já nos lábios, involuntariamente. Afinal, eu e Saga não éramos tão opostos assim em idéias.
"Esse 'ser' não passa de sua ambição!", eu disse, abruptamente. "Entregue-se ao sentimento de posse e esqueça o dever, que jamais o levou a nada!"
Meu gêmeo parecia totalmente decepcionado. Seus dois olhares anteriores refletiam alguma dor, mas controlada, como para mostrar que eu não o havia ferido de maneira significativa. Sua expressão naquele exato momento, porém, era de angústia profunda, de uma falta de racionalidade repentina, como se o sentimento o comandasse agora, por mais incrível que isso parecesse nele.
Não sabia que podia machucá-lo de tal forma, só de sugerir algo que considerava apenas diverso do que ele pensava. Não tinha uma noção de fato do que a devoção representava a Saga.
"Nunca mais confiarei em você, Kanon. Sempre o ouvi dizendo coisas não muito bonitas sobre o serviço a Atena, mas pensava que era uma revolta passageira. Apesar de suas queixas, que eu considerava serem, na verdade, causadas pela espécie de exclusão a qual você foi confinado, achei que seu ser ainda teria alguma afeição à deusa; senão você já teria deixado o Santuário. Acabo de verificar que estava enganado."
Dava pra perceber com facilidade que meu irmão se esforçava para conter as lágrimas.
"Apenas não deixo este lugar", disse eu, já sem agressividade ou malícia na voz, "porque não quero viver longe de você, meu único familiar vivo. Ou pensa que continuo aqui por quê?"
Ele sustentou o olhar em direção ao meu.
"Então esta afirmação apenas confirma o que eu disse. Você odeia Atena, não é?"
"O que é mais importante: amar a ela, que é quase uma alegoria de tão distante, ou a nós mesmos? Eu amo apenas o que posso ver; o que pode me dar alguma esperança de futuro. Por exemplo você; eu o prezo, Saga, porque você está aqui, à minha frente. Não há como amar a uma deusa que sequer me dá alguma esperança de sair dessa escravidão eterna."
"Você não me preza, Kanon! Se o fizesse, não tentaria reforçar justamente a idéia do ser maldito que me atormenta!"
A voz de Saga estava alterada, quanse gritando. Vi-o abandonar o suco na mesa com certa brutalidade, correr até o quarto e bater a porta. Era um comportamento nada típico de sua parte.
Nunca o havia visto agir de forma tão sem controle.
Dei um tempo. Até minha impulsividade tinha com ele; levaria-o a pensar como eu, mas de forma mansa. Senão, era capaz de obter o contrário. No final das contas, os laços de sangue sempre prevaleciam; ao menos era assim que eu pensava.
Fui me banhar, a noite estava quente. Cerca de uma hora depois de nosso atrito, entrei no dormitório. Saga estava cochilando em sua cama. Todavia, ao reparar melhor, via-se que era um sono inquieto.
Durante o banho, parei pra pensar e resolvi que apenas uma farsa, mesmo que momentânea, me levaria até meus objetivos.
Acordei-o com sacudidelas leves. Meu irmão me olhou de má vontade.
"O que você quer?", balbuciou secamente.
E a farsa começou.
"Te pedir desculpas."
Saga deve ter pensado que ainda estava sonhando. Eu nunca havia sido a pessoa mais humilde ou cordata deste mundo, e não costumava pedir perdão, nem a ele. Continuei:
"Se você quer meu apoio para ir contra... hã... 'isso' que é oposto ao que você pensa e quer, eu o darei."
Ele fez uma expressão de descrença. Claro que eu não ia convencê-lo assim tão facilmente, justo logo após aquela cena toda.
"É sério.", continuei. "Não amo Atena, mas se ela é importante para você, tentarei ajudar. E... bem, no fundo... como sei que você a ama mais do que tudo... se você fosse o sucessor do Mestre... o representante da deusa na Terra... eu poderia vê-la em você, e ter algum apreço por ela através de sua figura."
A expressão de incredulidade não sumiu de todo de seu rosto, mas sua resposta veio na linha de meu raciocínio.
"Se quer me ajudar realmente, não veja Atena em meus olhos, ou a si mesmo neles. Tente, pelo contrário, ver Atena como Atena, eu como eu e você como você, sem projeções, e amar a cada um deles por suas individualidades."
"Tudo bem, Saga. E... ainda quanto ao 'ser estranho', não o endossarei mais. Nunca mais, se isso o deixa feliz."
"Isso deixa você feliz?"
"Se deixa a você, a mim também."
"Veja cada um como um só, será que já se esqueceu! Você não tem jeito, Kanon!"
Seu tom de voz já era mais descontraído, e os olhos viam seu conhecido "irmãozinho" de novo.
Sorri, e lhe pedi para que me acordasse no mesmo horário que ele pela manhã. Geralmente, Saga saía primeiro do que eu para treinar, pois sempre levantava mais cedo.
Também me recolhi para dormir, e senti que ele ainda não estava confiante quanto às coisas que eu havia lhe dito. Também o ouvi, mais tarde na noite, dizendo coisas como "Me deixe em paz", ou "Saia já daqui". Não era pra mim, nem parecia ser por causa de algum pesadelo casual.
Pela manhã, assim que o sol nasceu, fomos treinar juntos. Arrumei nossas camas enquanto ele separava a comida que levaríamos pra hora do almoço. Tudo corria morbidamente bem.
Quando deu meio-dia, paramos para comer. Saga estava com certeza estranhando o andamento das coisas. Afinal, eu estava fazendo tudo direito, não contestava as críticas (que sempre eram construtivas de sua parte, mas eu nunca gostava delas mesmo assim), estava me esforçando ao máximo. Meu irmão sabia que tinha algo de errado ali.
Quando terminamos a refeição, chamei-o de lado. Não agüentava mais conter a farsa no peito, por mais que a cabeça disesse que deveria mantê-la por mais um pouco. O anseio por ver Saga como Mestre fez com que, à noite, quase toda em claro por conta da angústia, eu bolasse um plano. Se Shion ainda não tivesse divulgado a sucessão como sendo de Aioros, havia um modo de fazer meu irmão assumir o lugar que eu considerava como seu por direito. Porém, para isso Saga teria de concordar com tal procedimento. Essa era a parte mais difícil.
"Fale logo, Kanon. Sabe que não gosto de interromper ou atrasar o treinamento à toa."
Ele me entenderia. É claro que sim. Se me prezava da mesma forma que eu o fazia para com ele, colocaria nossos laços acima de uma deusa inacessível, embora recém-encarnada num bebê.
"É só uma pergunta, Saga. Você me ama?"
Ele me fitou com surpresa.
"Por que pergunta isso?"
"Seria capaz de sacrificar algo seu por mim, por nós dois, pelo nosso sangue?"
O olhar de estranheza despontou mais forte ainda em seu semblante.
"Aonde pretende chegar, Kanon? Não precisa falar por meio de jogos comigo. Diga logo o que quer."
"O que é mais importante pra você, Atena ou eu?"
Saga se viu trincado pela indagação incisiva. Demorou um pouco para reagir.
"Não precisamos de um ataque de paranóia seu. Vamos, voltemos ao treinamento."
"Ainda não respondeu minha pergunta, Saga."
'Ora, não seja criança."
"Por que se esquiva em falar sobre isso? Tem medo de magoar seu 'irmãozinho'? Ou à deusa? Ou a si próprio?"
"Não há resposta. Como quer comparar a devoção à deusa ao amor fraterno? Nenhum dos dois, em nosso caso, é mais forte ou fraco. Apenas são diferentes. Satisfeito?"
"E se tivesse de escolher entre um dos dois? E se o Destino lhe impusesse o impasse entre nós? Mataria-me se a deusa mandasse? Ou o que você chama de 'fraternidade' prevaleceria?"
"Pra quê conjecturar sobre isso? É uma tortura inútil, não sei porque se submete a ela. Chega de perder tempo, Kanon, há mais o que fazer."
"Não é perda de tempo. O condicionamento às batalhas não é tão importante quanto a decisão de nosso futuro imediato."
Meu irmão, que até então
tratara aquilo tudo como mais um descontrole meu
sem importância,
me olhou sério. No fundo, talvez começasse a perceber o
que realmente vinha em meu coração, e a essência
do que eu pretendia fazer.
"Vejo que ainda não chegou onde queria, Kanon. Peço novamente que me diga, de maneira direta, o que quer. Não gosto do método de Sócrates entre nós. Não é preciso."
"Não mesmo? Ou você tem medo de que eu revele algo vagarosa e inexoravelmente através dele, algo do qual poderia escapar caso eu não o usasse?"
"Você é capaz disso para comigo? Se é, então quem deve duvidar da 'fraternidade' sou eu."
Parei. Como, depois de tudo, Saga podia pôr meus sentimentos para com ele em xeque!
"Não precisaria ser capaz", retruquei," se você ouvisse o que tenho a dizer."
"Estou te ouvindo. Sempre estive, e estou cansado de insinuações numa relação que deveria ser transparente. Fale logo."
"Seria capaz de mandar Atena pro inferno se fosse por mim?"
Aquilo o atingiu em cheio.
"Eu sabia, Kanon. Sabia que, junto com esse comportamento estranhamente perfeito de sua parte, viria alguma tormenta. Se quer a resposta à pergunta, então terá: Atena é a paz na Terra, e eu não deixaria que nem meu irmão a ameaçasse. Teria de esquecer que temos o mesmo sangue, e não seria seu comparsa nisto jamais."
"Você ama a ela acima de mim. Eu já desconfiava. Mas o que me diz do tal 'ser' que lhe é contrário, hein? Arriscaria dizer que ele é na verdade a parte de meu sangue no seu. Não existe nada mais forte do que isso, ainda mais em nós, que somos gêmeos."
"Cale-se!"
Saga bradou aquilo repentinamente. Então seu "fôlego" de discutir comigo havia acabado?
Ele deu alguns passos para trás, e quase se desequilibrou. Teria caído no chão, não fosse uma parede que se erguia atrás de si. Isso não era comum num Cavaleiro, quanto mais num de seu nível. Meu irmão se abaixou, segurando a cabeça e respirando com força. Parecia estar passando muito mal. Imediatamente me arrependi das duras palavras proferidas, que eram apenas um modo de dizer que o amava, porque não sabia como fazê-lo de outra forma.
"Saga, você está bem? O que está acontecendo?"
Acudi-o, mas não sabia o que fazer.
Ele não respondia. Apenas agonizava mais e demonstrava sofrer muito.
"Foi algo que eu disse?", continuei. "Hein? Responda!"
Aquele tipo de situação era totalmente inusitada em se tratando de alguém forte e resistente como ele. Nunca havia visto ele sucumbir de forma tão contundente a nada.
Ele levantou a cabeça de súbito, e me fitou com um olhar diferente do seu próprio:
"O... que... você quer?", disse ele enfim, com dificuldade.
Vi que seus olhos estavam levemente vermelhos, como se quisesse chorar. Mas sua expressão era de raiva.
"Irmão, eu... o que..."
"Você quer a vida de Atena, não é? Eu... eu... não sei porquê se importar tanto com a preservação dela, não é mesmo?"
Estaquei. Será que ele finalmente estaria caindo no meu jogo?
"É claro que nosso sangue é bem mais importante que ela. Nossos laços... sempre mais fortes...", ouvi-o dizendo.
E sorru debilmente.
Sorri também, mas com vontade. Tomei coragem e, diante de sua declaração, revelei meu plano:
"Então matemos a maldita enquanto ela é bebê, e demos ao Grande Mestre o mesmo destino! Ainda há tempo para torná-lo Mestre, Saga, se você destruí-lo e se passar por ele!"
De súbito, ele se ergueu e recuperou a posição anterior.
"O quê! Está me dizendo efetivamente para matar Atena e Shion! Isso é uma afronta! Não a aceitarei nem de você!"
E nessa hora, ele fez algo que nunca havia feito antes fora dos treinamentos: me bateu, a ponto de me jogar no chão.
Não me abati. Ele estava perplexo, naturalmente, já que eu havia sido tão direto, mas cederia. Aquele inócuo ataque havia sido apenas para me impressionar.
"Sim. É isso que eles merecem. E como ninguém no Santuário sabe que somos gêmeos, eu poderia te ajudar a realizar o intento. Vamos, Saga, acabou de dizer que a vida de Atena não importa tanto!"
"Como ousa! Eu não disse nada disso!"
Foi aí que percebi que havia tido um pequeno contato com o ser que o habitava. Ele também ficou assustado. É possível que tenha sido aquela a primeira vez que o tal "outro lado" tenha se manifestado fora de seu controle.
"Você me substituiria caso eu faltasse", continuou ele. "Não deveria jamais chegar a esse ponto!"
"Você chegou a ele sem sentir. Afinal, nada entra em nós sem que no fundo deixemos. É certo que sempre agimos e pensamos diferente, tal qual um anjo e um demônio, mas agora estou constatando que você tem a mesma ambição que eu aí dentro, prestes a despertar por completo! E quando isso acontecer, e não tardará, o mundo será nosso!"
Passei a uma alegria imensa ao dizer aquilo. Não contive um riso alto, descontrolado e insano, que veio do fundo de meu âmago.
Todavia, logo ele seria interrompido. Senti um duro golpe em meu estômago. O ar não pôde ser inspirado. Olhei para frente, e era Saga quem havia me golpeado.
Não pude acreditar. Acima de tudo, tive confiança para contar a ele meus planos porque pensava que havia um irmão acima do servo fiel e devotado à Atena. Mas não... o servo vencera, e como ele mesmo havia dito anteriormente, esquecera que tenho seu sangue, e protegera a vida da deusa.
Senti a visão turvar. Enquanto caía no chão, acreditava cada vez mais que Saga me odiava. Que queria me ver longe dele.
Era a primeira vez que ele me feria tão profundamente. No corpo e na alma.
Antes de perder totalmente a consciência, só pude dizer o nome de meu gêmeo, quando o que queria de fato era dizer que não queria perdê-lo, mas sentia-o se esvair de minha vida mais do que nunca.
Ao acordar, estava dentro de uma cela de pedra com barras de ferro. Tentei arrebentá-la, mas o material que as constituía não era exatamente "ferro", porque elas não cederam nem um pouco.
Do lado de fora estava Saga.
"Onde estou!", e ao falar, ainda senti alguma dor no abdômen.
Com uma frieza nunca sentida antes por mim em seu olhar e voz, ele disse:
"Na Prisão do Cabo Sunion."
Continua...
