A reunião da Ordem
Cansado, meu pescoço inclina-se em direção ao seu ombro (como se eu pudesse!) , mas imediatamente eu recupero a lucidez e alteio minha cabeça : olhos cansados quase sempre emoldurados por olheiras escuras não me tornam mais belo, mas fazem com que as pessoas perdoem esses pequenos deslizes de conduta de um corpo alquebrado pela maldição que o tempo insiste em manter vivo. A que preço sei apenas eu; eu e meus demônios.
A vida poderia ser um pouco menos madrasta comigo, mas parece que ela se compraz em me mostrar que eu só devo receber os restos regurgitados dela : quase, quase, você se soltou e se apoiou em mim. Seu cansaço me constrange, me comove, me motiva a ser mais ágil mentalmente ainda, e mais imóvel fisicamente : se o inusitado acontecer, eu vou apenas te empurrar, com um ar de asco no rosto que enganaria o próprio Lord das Trevas...mas com mãos de veludo, como a voz que vou falar contigo. Suave como você merece, e eu desejo.
Ouço outro plano insípido para acabar com a desgraça do mundo mágico; não sei se é a proximidade da Lua Cheia, se é vida demais que eu já vivi, mas até o Lobo já sabe que apenas o confronto do filho de James com o que se tornou Tom Riddle é que vai acabar com isso. Nada de nossas estratégias vai surtir efeito, nada vai ser efetivo, nada. Mas mesmo com essa certeza, eu meneio a cabeça em concordância com a parte da cova que terei a cavar desse latifúndio maldito. E essa vai ser das grandes.
A cabeça dele se move praticamente sozinha em concordância com o osso que lhe deram para roer : sempre, sempre é ele a fazer a cabeça de ponte, a ser o homem-bomba... só o deixam descansar quando o Lobo não permite que abusem dele. Quando ele irá se rebelar contra essa tirania ? Quando ele poderá descansar no meu ombro...Enfim, a maldita reunião acaba. Como sempre, não levou a lugar nenhum, apenas mais um provável lance nesse interminável e sórdido jogo de xadrez onde os peões sangram de verdade. Mas tenho minha oportunidade de me aproximar dele.
- Lupin ?
- Sim, Severus ?
- Já tomou a poção ?
- Ainda faltam dois dias, eu achei melhor...
- Você não está em condições de achar. Beba. Agora.
É susto isso que vejo em seus olhos ? Falei alto demais, fui brusco demais ? Ou você está ainda mais frágil do que eu suponho ? Ah, amor meu... o que fizeram com você nesse tempo que eu fiquei longe ? De todos eu esperaria isso, mas não de você. Pelo menos você, eu acho que me entenderia, pelo menos você.
- Severus, eu agradeço a preocupação comigo, mas realmente...
- Lupin, a preocupação é com a sua missão para daqui a uma semana. Do jeito que você está, não estará bem o suficiente para ela, e teremos de reformular tudo. Devia ter pensando melhor ao aceitar a missão. Se bem que pelo seu ar, pouco ouviu da reunião.
Bem... doce ilusão minha que o chanceler de ferro ia pensar em mim. Só pensa na missão, na Ordem... eu sou apenas um peão, e dos mais descartáveis. Tanta gente e eu tinha que me apaixonar pelo sonserino arrogante e perfeito que é Severus Snape.
Ah, essa dor que eu vejo, eu sinto no mais profundo de minha alma... eu te desapontei com minhas palavras. Mas, entenda, não estamos sós : nunca estamos sós, quando eu vou poder te dizer ? Eu só quero seu bem... quando eu não estiver por perto para te proteger, alguém - ou algo - deverá fazê-lo.
- Sugiro que veja um medibruxo, ainda hoje. Está com aparência pior que o normal, se é que isso é possível.
- Snape, não e´ tão sério. E eu ouvi perfeitamente bem todos os detalhes da minha próxima missão, obrigado.
Snape. Ao invés do habitual Severus. Esse olhar gélido perfuraria um Protego, se fosse feito de outra coisa que não pura energia... mas eu também sei das mesmas artes que você, velho amigo. Amigo ? Queria poder chorar ao pensar nisso, mas até isso me é vedado.
- Se não é tão sério, Lupin, então troquemos : você faz minha ronda hoje, e eu volto para Hogwarts mais cedo.
- Se é uma troca, Snape, então hoje eu faço sua ronda, você se transforma amanhã. De acordo ?
Espanto ? Onde está a tua máscara, sonserino ? Achou que eu sempre seria a vítima, que não conseguiria falar com tanta... tranqüilidade sobre minha licantropia? Você não me conhece, Severus. Para minha tristeza, você não me conhece.Aliás, ninguém me conhece. Eu não permito. Ah... aí está ela. Espero que você não se descontrole assim na presença dele. Ou eu não me responsabilizo pelo que eu venha a fazer para te tirar de lá.
Tenho vontade de agarrar essa sua mão estendida e puxá-lo para mim, beijar essa boca marota sorridente, apoiar seu corpo grande - mas tão evidentemente frágil, hoje - e deitar-me a seu lado, só acariciando seu cabelo e confortando por essa vida madrasta. Mas só olho como se sentisse nojo de tocá-lo. Afinal, Olho-tonto continua a nos observar, e já estava começando a vir para cá. Enfim, já trocamos mais que três frases em seguida, isso é prenúncio de tempestade. Nada que desagregue a Ordem... vigilância constante. E corações vazios. E almas rotas. E viva a Fênix !
- Não pense que me alegro com sua situação, Lupin. Mesmo que eu quisesse, não é uma alternativa factível. A ronda é minha, porque só eu poderei fazê-la. Apenas tome a poção e descanse. É melhor para todos.
- Para todos, Severus ?
Severus... de novo. Eu amo esse tolo.
- Para os que interessam, e se interessam, sim. Remus. Boa Noite.
Remus ? O que deu nesse sonserino, será que realmente estou tão mal assim ?
- Boa Noite.
Inferno Sangrento ! Porquê você tem de passar a língua nos lábios quando alguém te surpreende, seu grifinório maldito ?
