Podiam sentir-se pequenas partículas de electricidade estática pelo ar, no entanto, este fenómeno nada tinha a ver com física ou mesmo clima, ocorrendo em cada um dos doze distritos de igual forma. Havia silêncio, um silêncio que ninguém precisava de tentar explicar ou fazer esforço para compreender; havia silêncio porque, nesse dia, dois jovens de cada um dos distritos eram escolhidos para a morte.

Opondo-se a todas as ornamentações dignas de uma grande festividade, encontravam-se caras tolhidas pelo medo de perder um filho para a arena, o medo de ser escolhido, o medo de não ser suficientemente forte para sobreviver. Contudo, havia um contraste significativo entre os distritos mais ricos e os mais pobres: nos primeiros, denotava-se a ferocidade no rosto de crianças criadas para matar que se ofereciam elas mesmas para tributos, nos segundos, a maioria dos jovens tinha o nome tanta vez repetido por conta do tesserae que a apatia começava a entranhar-se-lhes no sistema, uma vez que as probabilidades estavam sempre e definitivamente contra eles.

Eram movidos em filas, em ranques que iam dos doze aos dezoito anos, todos possíveis vítimas daquele dia amaldiçoado ao qual chamavam de Ceifa. Vestidos nas suas melhores roupas, o coração apertadinho algures dentro do peito, muitos demasiado novos com as bochechas de bebé malogradamente nutridas. Estavam todos sujeitos e limitados pelos Hunger Games - mesmo que não fosse o nome deles a sair da grande taça de vidro, seria o nome de um familiar, um amigo, um conhecido, alguém que vivia sobre o mesmo solo que eles. Era duro, mas não havia como escapar e qualquer acto de rebelião poderia acabar em tragédia - o distrito 13 e o vídeo que rodava no ecrã recordavam-nos disso.

Distrito 2, o distrito da pedra. Uma pessoa designada pelo Capitol mergulha os dedos na taça e tira um papel, no qual estará escrito o nome de um dos rapazes locais. É agora, a sorte está lançada e só falta anunciar-se o escolhido em voz alta. Os tributos são geralmente fortes, bem preparados, alguns voluntários, outros não voluntários, mas igualmente letais. E então, a voz masculina soa ampliada pelo microfone.

- Lennart Braun.

Um arrepio percorre todo o corpo coberto de cicatrizes do rapaz anunciado. Lennart pisca os olhos duas vezes, assenta do choque e move-se corajosamente na direcção do palco que o espera. O seu rosto frio comporta uma expressão ameaçadora e as marcas espalhadas pela pele fazem crer que ele já está na arena, no entanto, são feridas há muito tempo cauterizadas. Ouve o nome da rapariga que o acompanhará, mas mantém o olhar preso no que se lhe afronta, demonstrando estar alheio a tudo e sem medo visível. A moça tem treze anos, é bem mais baixa que Leo, mas espelha uma imagem de confiança e arrogância. A multidão aplaude, segundo as ordens, e o homem que lhes ditou o futuro elogia-os como candidatos de força.

Lennart não sente nada, escuta as palmas ecoarem abafadamente na sua cabeça e fita os rostos com os olhos vazios como se estivesse já sem vida. Tecnicamente, sentia-se morto há muito tempo.

Distrito 3, o distrito da tecnologia. Enfileirados, estão filhos de engenheiros, pessoas que se habituaram desde cedo a lidar com electricidade e afins, um distrito especializado em computadores, televisões...a ironia era produzirem aparelhos que, mais tarde, poderiam ser os transmissores das suas mortes para o olho público. Aqui, a anunciadora é uma mulher com o cabelo quase até ao umbigo, pintado da cor das algas, assemelhando-se incrivelmente a um peixe, ainda que aquele não seja o distrito da pesca. Mergulha o dedinho débil na taça e esboça um sorriso como se estivesse a tirar à sorte o nome do próximo candidato a um prémio e não a uma possível viagem só de ida.

- Sebastian Blackwood!

Sebastian estremece e não tem tempo de disfarçar o choque patente na sua cara de feições agudas. Mira desnorteadamente os adolescentes e crianças a seu lado, sem compreender inteiramente o que acaba de acontecer e, então, em poucos segundos, recupera o porte hirto e segue para o sítio onde é esperado.

Os olhos cristalinos rolam de umas caras para as outras, pois Blackwood não está inteiramente ciente do que acaba de acontecer. Tem, porém, que se recompor ou será considerado um caso perdido desde a primeira vez que as câmaras põe as lentes em si. Não, ele não vai sair derrotado no primeiro encontro com as objectivas, vai fingir um ar confiante, sabendo no seu íntimo que não tem nem a força, nem a agilidade necessárias para sair da arena com vida. Pelo menos, tem a inteligência e sabe que vai tentar manter-se vivo o maior tempo possível.

Permite-se a um ligeiro sorriso e um aceno para a multidão. Tomá-lo-ão por corajoso e confiante que é a imagem estratégica que ele deverá mostrar. Não estava à espera de ser chamado, o seu nome estava na taça apenas as vezes necessárias, uma vez que ele nunca se inscrevera para o tesserae. Parecia tudo tão improvável que nem as capacidade racionais de Sebastian assimilavam o sucedido. Mas a sua imagem estava o mais inabalada que ele conseguia comportar. A rapariga a seu lado voluntariou-se como tributo, é um ano mais velha que Sebastian e parece genuinamente segura, ao contrário do porte auto-programado que o rapaz projecta. Deita-lhe um breve e cortês sorriso, aquando dos cumprimentos, premitindo-se até a deixar algum charme para ela. Tem na cabeça que o carisma será a sua maior arma na luta por patrocinadores.

Distrito 7, onde se dá a extracção de madeira. Todas as caras parecem iguais, todas gastas, todas dormentes, todas maltratadas pela vida e pelo trabalho. Desta feita, a apresentadora é uma mulher na casa dos trinta que seria bonita, acaso não seguisse as tendências do Capitólio tão severamente; estatura muito baixa, cabelo da cor de um arco-íris e um pequeno ramo de folhas verdes no peito - se alguém se preocupasse com frivolidades, ponderariam se era um apoio ao distrito (uma alusão às árvores) ou mera questão de moda.

- Ora, ora, ora... - estica os dedos curtos para as folhas e retira um papel de onde lê o nome de uma das candidatas. De seguida, faz o mesmo na taça destinada aos candidatos masculinos. - Nathaniel Rossi!

O ruivo inspira pesadamente e dá um passo corajoso para o palco, mas a expressão, que tanto se esforça para controlar, desfaz-se em pranto quando se ouve o choro de uma rapariga atrás de si. Não precisa de voltar o rosto para saber que a irmã se contorce em sofrimento pelo irmão mais velho. Tivera o nome colocado demasiadas vezes na taça, não só pelos seus dezassete anos, mas pela alimentação dos seus quatro irmãos, um dos quais já livre dos Hunger Games por ultrapassar a idade limite.

É muito forte, parece um gigante junto da mulher do Capitólio e tem consciência disto, mas a cara é lavada por lágrimas como um bebé e Nate teme realmente pela sua vida. Não vai passar da Cornucópia, vai morrer no inicial banho de sangue e tem perfeita noção disso. Quem cuidará da sua família? Então, lança os olhos negros à figura ao seu lado, uma menina cuja família conhece tão bem, uma criança de doze anos muito cálida e frágil que chora ainda mais compulsivamente do que ele. Quer abraçar a pequena a seu lado, mas sabe que não pode, pior, sabe que a certo ponto poderá até ter de a matar.

No final da Ceifa, 24 tributos foram escolhidos para lutar uns contra os outros nos Hunger Games. A acção realiza-se para diversão do Capitólio e como forma de recordar aos distritos que eles não são donos nem da própria vida. A liberdade de escolha é inexistente, é matar ou ser morto porque, no final, apenas um pode ser o vencedor.