Marcas Indeléveis / Paradise/Lost Heaven/Dark Paradise
Parte 1 - Os maus Tempos
A primeira coisa que se podia detectar era a imobilidade estática do lugar, envolvido pelo mormaço, engolfado pelo som em ritmo constante de uma obsoleta máquina em funcionamento.
Era um local pouco espaçoso e encardido, com escoriações e manchas desconhecidas, além de mofo nas paredes que um dia haviam sido brancas, contribuídos por um odor duvidável no ar. Potes e caixas de comida velha se espalhavam pelo chão, além de garrafas de bebida que se amontoavam, brigando por espaço, para onde quer que se olhasse, prontos para acumularem moscas.
O chão que um dia havia sido madeira tinha tacos soltos em toda parte e outros faltavam. Manchas de água se espalhavam pelo piso que já não tinha nada do glamour do verniz original.
No centro, um único móvel velho e de estofamento rasgado reinava.
A menina encontrava-se jogada no sofá, o chiclete que tinha na boca há muito perdera o gosto, algumas mechas dos escuros cabelos bagunçados presos aos dedos, onde ela os enrolava. A bola do chiclete explode e ela faz outra. Sentada de lado, com os pés para fora da beirada, era a única coisa viva na sala decrépita que a rodeava.
O calor infernal entrava pela janela, moribundo, fazendo uma camada de suor brotar em sua pele, a preguiça impedindo-a de se mexer. Uma mosca se movia em algum lugar perto, incomodando-a.
Tinha os olhos fechados, permitindo que o sol das quatro da tarde a banhasse. Era uma imagem eternamente imóvel.
Do lado de fora do bairro pobre onde estava, ouviam-se carros passando na avenida mais a frente, uma mãe gritando e uma criança chorando, mais longe, um cachorro latia sem parar, agudo.
A sala, caída e gasta era no quinto andar de um pequeno apartamento, composto somente por uma cozinha emendada à sala, separada somente por um balcão; um quarto e um banheiro.
Na sala, ao seu redor e até onde se podia observar, só se via o sofá, na diagonal com a janela e uma geladeira ligada a tomada. Além disso, no pequeno quarto, dois colchões antigos e de aparência duvidosa eram os únicos móveis da casa. Ela o esperava. O irmão a prometera que voltaria cedo.
Vestia-se com um minúsculo shorts jeans que colocava em dúvida sua virtude, além de uma baby look de alça, surrada, manchada de suor, branca. Botas nos pés completavam o estranho visual rebelde que a acompanhava há alguns anos, onde quer que fosse.
O zunido da antiga geladeira não mais a incomodava, sua falta sendo sentida quando se calava subitamente, sem explicação, de tempos em tempos.
Alguém bate na porta e a menina se levanta, em um salto, empurrando com o pé algumas das caixas velhas a seus pés. Chuta mais algumas enquanto caminha, abrindo um novo caminho no caos da sala, sem perceber que seu isqueiro caíra no estofamento do sofá.
Sem destrancar a corrente da porta, a abre de leve, mas uma surpresa faz seus olhos arregalarem ao mesmo tempo que a corrente se rompe, com um chute. A porta abre com tudo, em um estrondo, arrebentando, batendo no rosto da menina, jogando-a para trás, fazendo-a ir de encontro ao chão.
-Cadê o seu irmão, cadê o Heero? - A menina se encolhe, olhando-o de maneira ferina, frígida. Ele a encara sem se intimidar, cuspindo no chão a seu lado. - Não vai responder não? Puta! - E a agarra pelos cabelos, jogando-a de cara contra a parede. Ela geme alto, mas nada fala, apenas se encolhendo mais. - Fala que o Marcu passou por aqui, é só um aviso. - E ela nota, pela primeira vez, que eles eram em três, talvez mais. Não responde, olhando-o feio. Ele ri alto e sai, sem se dar o trabalho de se voltar para trás.
Ela passa a mão pela testa, sentindo a mesma voltar com algo viscoso e escuro. Sangue.
A moça ouvia a música clássica alta, calmamente, levantando a perna com suavidade. Enquanto alguma das outras meninas em torno de si levavam aquilo bem mais a sério e queriam fazer daquilo sua profissão, para ela não passava de um divertimento, um momento para relaxar.
-Vamos lá meninas, movimentos mais delicados! - A professora grita, vistoriando tudo, levantando de leve a perna de uma menina, ajeitando o movimento de seus braços - Postura!
Era um estúdio de balé. O salão era grande, com espaço para cinquenta pessoas dançarem com tranquilidade, a madeira polida no chão sem exageros, para não ficar escorregadia, as paredes cobertas com vidros para que você pudesse visualizar seus movimentos.
Era sábado de manhã, nove horas e no momento, menos de vinte moças dançavam, treinavam, rodopiando pela sala com movimentos leves e precisos.
Menos de duas horas depois, Relena irrompia do estúdio, um sorriso acolhedor e caloroso, satisfeito no rosto. Ricard a esperava do lado de fora com um frapuccino em mãos e um sorriso travesso nos lábios.
A loira de tranças o abraça. O frio começava a passar e logo, logo o agasalho pesado e cinza que usava não seria mais necessário.
-E aí? Como foi a aula? Quer ir comer alguma coisa em algum lugar? - Ele pergunta, com a voz energética, bem humorada.
Ela lhe dirige uma estreitada de olhos, antes de rir um pouco, encaixando o braço no dele.
-Sinto-me renovada e faminta! - Exclama. Joga a trança para trás e os dois riem mais quando ele levanta uma sobrancelha pela declaração.
Relena era uma verdadeira moradora de Nova Iorque, trabalhava com editoração e publicação, em uma área voltada para publicidade e propaganda, muito embora tivesse feito artes visuais e fazia balé para se exercitar e libertar nos finais de semana. Morava em um apartamento médio onde estava muito bem instalada. Ricard era seu melhor amigo já há muito anos, desde o colegial. Ocupados, atualmente tinham como combinado se encontrarem todos os fins de semana.
Ricard, incrivelmente, também trabalhava com publicidade e propaganda, embora sua situação fosse sutilmente diferente, uma vez que seus pais eram donos de uma companhia de hotéis e esbanjassem dinheiro. Muito embora não gostasse disso e lutasse ao máximo contra, sempre era favorecido pelo nome de sua família. Sua irmã mais velha, Galina, sempre dizia que isso era uma benção. Ricard discordava.
De qualquer forma, era um bem sucedido diretor de arte em uma empresa grande e estava bem de vida.
O relacionamento entre Ricard e Relena sempre fora algo falado. Seus pais, secretamente, sempre esperaram que os dois acabassem ficando juntos, mas, depois de uma ou duas tentativas frustradas de namoro decorrentes da vivência dos anos, acabaram desistindo por uma falha e incompatibilidade irreparável.
Não eram o tipo um do outro. Galina gracejava dizendo que faltava graça em Ricard. A verdade é que faltava uma faísca. Então continuavam como amigos, eram infalíveis desse jeito.
A conversa ia animada enquanto contavam os causos da semana, esperando em uma fila para entrar em uma padaria com doces que os dois consideravam simplesmente maravilhosos. A rotina não os cansava, pelo contrário, eram apaixonados por ela, satisfeitos com seus trabalhos, com sua família, sua amizade e sua vida.
Justamente quando mencionavam um velho amigo em comum, da cidade de onde tinham vindo, o telefone de Relena toca.
-Duo? - E ela se exaspera, rindo. - Falávamos justamente de você. Como você anda?
O homem de tranças ouve a porta bater, já esperando quem estava do outro lado, abrindo-a de supetão. O amigo entra rapidamente, cumprimentando-o com um aceno.
-Heero - E Duo diz, sempre segurando um ar divertido, embora soubesse que para o amigo tê-lo chamado, a situação não podia ser boa. É quando vê Celine entrar logo atrás, com o conhecido agasalho do irmão nos ombros, uma marca roxa nos lábios. Admira-se e já virava para inquerir o amigo, quando este começa.
-Marcu quer que eu lhe pague o dinheiro.
O amigo deixa a boca pender, aberta.
-O dinheiro de sua mãe? - O moreno apenas anui, com um aceno rápido e quase imperceptível da cabeça.
-Por isso preciso fazer uns negócios por aí, você entende - E era evasivo em suas explicações. Não que Duo esperasse muito mais do rapaz de cabelos castanhos bagunçados e postura arredia. Com seu um metro e oitenta e três intimidava facilmente quem esbarrasse seu caminho, com sua expressão taciturna. - Preciso que fique com Celine uns dias.
É só então que o de tranças volta a relanceá-la. Para Heero estar lhe pedindo um favor, a coisa realmente deveria estar feia.
-Pode fazer isso por mim? - Ele parecia impaciente e dominante, parado gigantesco no meio da sala, as mãos nos bolsos de um agasalho surrado, as jeans escuras também de aparência envelhecida, a franja cobrindo-lhe os olhos e dando uma impressão perigosa para os escuros olhos azuis. Passava o peso de um pé para o outro, impaciente.
Duo pegou-se comparando os intensos azuis com os densos verdes da irmã menor.
Pondera a probabilidade de fazer uma brincadeirinha. Aquele definitivamente não era o momento. Acena com a cabeça.
-É claro que sim - Era sua responsabilidade como amigo e sabia disso. Heero parece suspirar, apenas um momento de alívio, antes de sua expressão carregar-se novamente. Sai intempestivo, como tinha vindo, batendo a porta com força.
Duo é deixado sozinho com a moça, nitidamente desconfortável, lhe relanceando. Ela tinha uma postura parecida com a do irmão, fechada e agressiva, quase aérea, os braços nos bolsos da jaqueta de couro, os olhos agressivos e independentes pregados no chão.
Os dois tinham a mesma pele branca, a mesma intensidade e introspecção. Eram muito parecidos em muitos aspectos.
A menina balança o rosto e os cabelos escuros, azulados mexem-se em ondas longas, de um lado para o outro, antes dela fixar o olhar profundo nele. Era como se agulhas o perfurassem com concentração.
Ele engole em seco. Ela só podia ser irmã de Heero.
-Querida! - Chama alto, sem quebrar o contato - Acho que temos mais visitas!
Cléo sai apressada do quarto e se surpreende ao ver a menina que estava parada no meio de sua sala. Abre um sorriso, vindo apressada em sua direção, o vestido azulado que usava balançando com graça sobre seus joelhos, enquanto andava. A ruiva a abraça e é então que Celine vê duas pessoas que vinham atrás da ruiva, seguindo pelo corredor escuro.
-Que bom te ver menina! Há quanto tempo! - E Cléo solta um de seus marotos sorrisos de lado, jogando longas madeixas do cabelo cacheado para trás, quebrando o quadril para o lado. Cléo não parecia sem graça com o jeito da menina, pelo contrário, com seu jeito naturalmente caloroso, a envolvia.
A atenção felina da menor estava atrás da ruiva, enquanto uma moça loira despontava no corredor, carregando um pequeno bebê nos braços com um alto rapaz moreno a segui-la.
Os dois trocavam sorrisos, mas logo parecem sérios ao avista-la. É como se um clima pesado pairasse subitamente na sala.
A expressão interrogativa devia estar tão clara no rosto límpido de Relena, que a garota se adianta um passo.
-Prazer, sou Celine Mabelle Yuy - Era tão séria e taciturna para sua idade que chegava a ser desconcertante, o olhar intenso e levemente arrogante fora de lugar em um rosto tão jovem. Relena anui e pega a mão estendida, apoiando o quadril para o lado para compensar o bebê que carregava.
-Relena Darlian - E sorri, simpática e doce. Ricard então se adianta também.
-Ricard Roman Desrosiers - O moreno diz com outro sorriso estampado no rosto. A menina parece fazer um chiado desagradável com a boca, mas o cumprimenta. Ela não confiava nele, ele era bonito demais, bonito demais para seu próprio bem. Até onde aprendera, os melhores rostos sempre revelavam as piores intenções.
A menina volta a colocar a mão nos bolsos traseiros e vira-se para Cléo, estalando os lábios.
-Aileen cresceu - Constata e Cléo ri, agradada, tomando as dianteiras de boa anfitriã.
-Sim, ela vai estar enorme em pouco tempo, não para de crescer essa menina! Logo, logo a danada vai estar adulta, e aí o que seremos de nós? - A ruiva faz um pouco de cócegas na menina de cabelos loiros acobreados que ri, esticando os braços para a mãe, que a pega, beijando sua bochecha. - Pais velhos e babões!
É a vez de Duo rir alto.
-Nem brinque com isso, ainda precisamos de bons anos dela dessa maneira! Longe de namoros e principalmente da adolescência - Relena e Rick riem um pouco disso também.
-Vamos, vamos jantar - Cléo avisa e olha para Celine por cima dos ombros - Estávamos a caminho quando você chegou, nos acompanha? - A menina acena, seguindo o grupo para a sala de estar na sala ao lado.
A casa de Duo e Cléo Maxwell não era grande, mas tinha um bom tamanho e era confortável, com um certo ar de requinte e bom gosto. Duo e Heero eram amigos de infância, tendo-se conhecidos quando vizinhos há muitos e muitos anos antes. Como Heero não era muito de fazer amigos e Duo não era muito de perdê-los, tornaram-se oficialmente inseparáveis no colegial, chegando a ser uma dupla curiosamente engraçada, um taciturno e quieto, o outro comunicativo e palhaço. Foi nessa época que o menino de tranças acabou conhecendo a ruiva por quem se apaixonou e mais tarde, depois da faculdade, acabou casando.
A sala de jantar, ligada a sala de estar e a cozinha era espaçosa e bem distribuída, com uma mesa com lugar para dez pessoas no centro, uma cristaleira na parede oposta a entrada pela sala de estar, alguns quadros, uma janela para o exterior à direita e a porta em arco para a cozinha à esquerda. As cores eram pastéis e a luz era amarela e agradável aos olhos cansados.
Celine caminha como um gato acuado, olhando para todos os lados, lenta e atenta, antes de sentar-se. Ricard segura a cadeira para si com cortesia, fato que ela estranha, lançando um olhar mordaz e desafiador, o queixo orgulhoso erguido.
Ele sorri, estranhando a atitude, sem compreendê-la, mas permanece cortês, cordial como fora ensinado.
Em um instante, Cléo deixa a menininha sentada em sua cadeira alta e parte para a cozinha, com Duo em seu encalço para pegar a comida. Relena e Rick trocam um olhar constrangido, mas Celine não parece perceber, absorvendo tudo a seu redor.
-Então… - O moreno incita, sem jeito, tentando iniciar um diálogo - Você conhece o Duo e a Cléo há muito tempo?
Os olhos de sereia encantados, distantes e complexos o relanceiam. Relena ajeitava o tecido das calças brancas sobre o colo, sem atitude, tentando manter as mãos ocupadas. Os cabelos loiros estavam presos em um rabo-de-cavalo alto e a blusa lilás tinha um corte delicado e um tecido suave e macio, marcando os contornos de seu colo.
Ricard suspira, percebendo que a menina não fazia questão nenhuma de responder a seus esforços, parecendo ignora-los por completo, sua força magnética atraindo os olhares, parecendo ser capaz de permanecer em silêncio durante todo o tempo, sem precisar de ninguém mais. Por fim a menina deposita os cotovelos na mesa, inclinando-se. O tilintar de louça se encontrando é ouvido suavemente.
-Sim. - Diz simplesmente, estalando os lábios. A mudança súbita de atitude era um pouco intimidante, beirando o grotesco. E agora ela o olhava com uma intensidade absurda, sem desviar o olhar. Ele engole em seco. Ela parecia uma espécie de menina selvagem.
Finalmente, Duo e Cléo voltam e o burburinho que os acompanha faz a moça dos cabelos azulados desviar sua atenção, para o alívio do rapaz, que se percebe respirando fundo. Um novo olhar é trocado entre os amigos visitantes, que dão de ombros, entre o estranhamento e a confusão.
-Mas e então? É tanta coisa para se colocar em dia que mal consigo escolher! - Cléo exclama, sorridente - Vocês deviam aparecer mais vezes! Assim me deixam confusa! - Diz maliciosa e provocativa, para os presentes, que riem sentindo-se a vontade.
A primeira é Relena, comentando sobre sua vida em Nova Iorque, suas aulas, seu trabalho, seu dia-a-dia, seu irmão, algumas futilidades, rapazes, roupas, comidas, as amigas trocam detalhes vívidos divertindo-se, com uma opinada ocasional dos rapazes, que limitavam-se geralmente a observar enquanto comiam, trocando olhadelas divertidas e rindo quando se fazia oportuno.
Depois Ricard entrelaça sua narrativa à da amiga, completando-a com os detalhes mais vívidos, restaurantes, sua família, obrigações, tudo com muita animação e descontração, dessa vez uma agitação quase febril, todos falando ao mesmo tempo e rindo. Duo dando a papinha para a pequena Aileen, que parecia também querer participar da brincadeira, olhando de um para outro e rindo, extasiada.
O agito é tanto, o badalo tão empolgado, que quase se fazem esquecer a presença de Celine, que não diz uma palavra durante toda a refeição, assistindo a todos calada, introvertida. É só quase no final da refeição, quando Duo vira os holofotes para ela, que sua presença se faz lembrar, deixando a todos um pouco constrangidos pelo lapso de atenção. Ela não parece se importar.
-E como está seu irmão? - Duo se dirige sem enrolações - Eu digo, mesmo? Porque Heero tem a mania irritante de deixar coisas importantes de fora…
-Ele está bem - Diz simplesmente, dando de ombros, jogando uma mecha do cabelo para as costas em um gesto natural, parecendo um pouco menos retraída - Como sempre, eu diria. Ele não muda muito.
-E quanto a… Você sabe, esse negócio da sua mãe.
Celine enrola um pouco, limpando a garganta e brincando com os talheres, abaixando o olhar. Seus olhos repousam de leve primeiro em Relena, com uma expressão inescrutável e depois em Ricard. Era como se os medisse, decidindo que não poderia lhes dar confiança.
-Não teve muita mudança. Marcu simplesmente decidiu ficar mais agressivo. Heero me quer fora do caminho para conseguir consertar as coisas do jeito dele - E ela dá de ombros, simplista. Relena sente um torvelinho de emoções formarem-se em sua garganta por não saber o que aquilo queria dizer. E pode ver o espelho de seu olhar na expressão de seu amigo.
Cléo e Duo pareciam impassíveis, completamente inabalados. Até Aileen calara-se.
-O resultado dessa agressividade - Duo faz um barulho rouco com a garganta, tirando a franja dos olhos, afastando as longas tranças do ombro esquerdo - é esse machucado no seu rosto?
Celine o encara, com seu típico olhar vazio, controversamente expressivo. Faz um gesto assertivo com o pescoço, em uma pose elegante, destacando a pele esbranquiçada.
-Isso e isso aqui também - E a menina levanta o cabelo no lado direito do rosto, mostrando uma marca roxa profunda, um hematoma doído, um corte que percorria quase toda sua feição escondida pela franja.
Cléo engole a expressão de surpresa.
-Line! - A ruiva levanta-se, correndo para o seu lado, mas a menina a afasta.
-Está tudo bem - A tranquiliza, segurando suas mãos, em um raro momento de ternura pela preocupação demostrada - Heero já cuidou de tudo, desinfetou e todo o resto. - Relena e Ricard pareciam grudados a cadeira, entre embasbacados e tontos. Onde tinham ido se meter? De alguma forma sentiam que aquilo não era de sua conta.
-Tem algo que possamos fazer? - O senso de justiça de Ricard sempre falava mais alto, além de seu estúpido instinto prestar auxílio, que berrava para ser usado. Celine o encara por um momento, veemente, mas depois suspira, negando.
-Não - É o que diz simplesmente, mas as palavras ressoam nos ouvidos do rapaz, inconformado. Ele leva as mãos a mesa, em um gesto expansivo, caloroso e ia se levantar para prostrar-se a seu lado, quando Cléo a ajuda levantar-se.
-Venha, vou te levar ao quarto, podemos dar uma olhada nisso aí, você deve estar cansada - A menina anui, sem resistência. Duo e Cléo se comunicam em silêncio e Duo sabe-se responsável pela bebê antes mesmo que a ruiva estivesse fora de sua vista. Celine permanece olhando para Ricard com intriga até sair da sala.
Ninguém diz nada por um momento e então Duo solta um risinho.
-Está aí um jeito de quebrar o clima - Ele leva a taça a boca, bebericando um pouco vinho. As palavras quebraram a camada de tensão inicial, mas ainda permanecia a falta de jeito e o processamento do que acabara de acontecer.
-Quem é essa menina? - Ricard finalmente se adianta, dirigindo-se a Duo.
-E o que está acontecendo aqui? - Relena completa, tão inquieta quanto o rapaz a seu lado, exigindo respostas, aflita e preocupada pelo bem estar alheio. Ela e Ricard às vezes podiam ser tão parecidos em seus comportamentos e considerações que poderia ser engraçado.
O de tranças respira fundo, tentando manter o ar trancado nos pulmões. Então estica-se na cadeira de madeira maciça, aperta um pouco os olhos fechados com os dedos em uma atitude nervosa e depois imita a atitude inicial de Celine, apoiando os cotovelos à mesa.
Aileen boceja há apenas alguns metros de distância. Seus olhos cor de celeste começavam a fechar-se sozinhos. Logo logo seria hora de pô-la na cama.
-A história é comprida, então farei um resumo. Celine é a irmã mais nova de Heero, um amigo de infância. Quando a gente estava no colegial, a mãe deles, a única parente viva que tinham veio a falecer, não lembro o motivo e não vem ao caso. Heero teve então de largar a escola para sustentar Celine. Era tudo o que ele podia fazer se quisesse manter a guarda dela. Desde então ele pulou de emprego em emprego, um pior que o outro. E não acaba aí. Parece que a mãe de Heero, antes de morrer, tinha algum negócio com um traficante aí, eu não sei dizer exatamente o que, Heero nunca entrou em detalhes e eu nunca pressionei. Ele então herdou a dívida da família, mas, aparentemente as coisas tem ficado piores.
-Eu não tinha ideia - Rick começa, mas para. Para os dois, de classe média ou alta, a ideia de uma história tão absurda quanto aquela era tão ficcional que beirava o inacreditável e digeriam a história como podiam, aos poucos, por partes.
Duo suspira, voltando a apertar os sinus, aliviando o ponto de pressão. Solta o ar dos pulmões em um de seus raros momentos de preocupação séria.
-Sinceramente, eu não sei como ele conseguiu se virar sozinho até agora. - Completa, fazendo a sala voltar a cair no sólido silêncio.
Depois disso o clima de comemorações é cortado mortalmente, como uma navalha indo certeira na artéria do pescoço, silenciosa e mortal, causando uma comoção. Duo pega sua filha, sonolenta e a aninha contra si. Ela coloca o dedo na boca e aconchega-se contra o peito largo, confortável.
Ele a põe para dormir e o grupo se despede na porta. Cléo desce pouco depois e os quatro trocam palavras de desculpa pelo resultado da noite. Abraços, risadas sem graça e até um pouco de ânimo voltam a rutilar, com relutância, pouco antes de Relena e Ricard encaminharem-se para o hotel em que estavam instalados.
O caminho no táxi até o hotel é feito imerso em elucubração. Relena quebra o momento, não conseguindo mais ficar calada. A voz macia e suave enche o ambiente com sua confiança.
-É uma história e tanto não?
-Inacreditável - Ricard completa, antes mesmo de ela terminar a sentença. Os dois soltam um ar que não percebiam que estavam segurando há muito tempo, talvez desde que a notícia se abatera sobre eles como uma onda gelada na mesa da sala de jantar.
Os dois trocam risinhos nervosos.
-É quase demais para se acreditar - Ele diz, soltando um assovio. Ela assente.
-É mesmo, se eu não soubesse melhor, essa história de traficantes, irmãos órfãos, pessoas em perigo, diria que tudo não passava de uma boa história de ficção - E dessa vez ela realmente ri um pouco, mais cristalina e próxima ao usual de si mesma. É a vez dele concordar. A familiaridade entre eles fazia os gestos serem mera formalidade.
-Mas isso explica. - Ela se volta, atenciosa - A expressão daquela menina, aquele olhar pesado...Molesto - Ele balança a própria cabeça fazendo os poucos cachos do corte curto balançarem em sua cabeça - Enervante! - Completa e Relena tem de rir da afirmação.
-Essa certamente eu não esperava. Quero dizer, como se reage a algo assim? - Relena diz de repente e os dois riem, voltando a sentirem-se mais leve. Pouco a pouco, com naturalidade, o baque ia sendo vencido e quando se viam defronte a porta de seus quartos, com o assunto já quase esquecido, riam, trocando insultos e palavras leves, abobados.
-Boa noite, ma chérie! - Solta ele de repente, fazendo-a corar mesmo sem estar sem graça, esquecendo-se do charme e da força da gala do amigo, principalmente quando falava em francês, a voz rouca e o tom grave deixando-a sem graça, toda a vez que utilizada.
Ele bate em seu ombro com a bolsa de mão que carregava, fingindo irritação.
-Ricard! - E o reprime, mas as bochechas vermelhas não estavam a seu favor - Você sabe que eu odeio quando você faz isso! - E ele ri de sua reserva, fazendo-a ainda mais vermelha.
Depois os dois entram em seus respectivos quartos, e, apesar do bom humor e da leveza, uma pontada do ocorrido ainda assombrava seus pensamentos, a passagem sendo muito anormal para ser esquecida.
Assim, em um ritual quase sincronizado, escovam seus dentes, lavam seus rostos e jogam-se na cama macia e deliciosa do hotel renomeado, permitindo-se um sono profundo, uma fuga e possibilidade de escoamento fácil dos pensamentos e situações difíceis.
Por agora, não tinham nada mais com que se preocupar.
A balada alta tinha luzes fosforescentes que brilhavam, rodando a pista de dança. A música agressiva envolvia os corpos dos jovens, que remexiam-se ao som dela, entregues ao momento, indiferentes ao resto do mundo, brutais em sua intensidade.
Heero se via refastelado em uma bancada, onde serviam-se as bebidas, o cotovelo esquerdo como apoio, a ponta da mesa lhe machucando a coluna. Os olhos vorazes e perigosos semi-protegidos pela densa franja perscrutavam o local, a procura de algo, ou alguém.
A blusa branca era rasgada na altura das omoplatas e pendia para frente, larga. As calças jeans justas também eram rasgadas em diversos lugares, não só nos joelhos, dando-lhe um ar esfarrapado e rebelde, quase estiloso sem esforço.
Ao contrário da multidão a seu redor, não mexia um músculo com a música, mantendo-se firme e imóvel em sua análise clínica do local. Cada luz, cada vapor frio que o sistema de refrigeração soltava, criando a ambientação semi-gótica, brincando com as luzes coloridas.
A seu lado, nas cadeiras altas uma menina tropeça, causando um derramamento de bebida alcóolica pela madeira que, certamente, já vira dias melhores. Heero permanece impassível, os olhos cortantes a procura de algo, o maxilar cerrado mostrando desgosto e concentração, assim como os punhos fechados.
A franja desfiada era um atrativo incomum no cabelo bagunçado e na postura imponente, da qual Heero sabia fazer o melhor uso possível, em sua arrogância nata. Quase todas as meninas e vários meninos que passavam por ali a procura de algo alcóolico lhe dirigiam um longo olhar aprovador, alguns até ousando uma piscadela, mas o rapaz nem sequer lhes dirigia algum segundo de sua atenção. Estava ali em uma missão e dali só sairia quando a visse cumprida.
É quando sua áquila visão identifica o que viera caçar.
Do outro lado, cercado por tipos conhecidos do rapaz, claramente perigosos, enviando ondas para manterem outros afastados, estava a pessoa que viera procurar. O rapaz inicia sua caminhada, cruzando o longo salão. Pessoas esbarravam em si, mas ele as empurrava com brusquidão, não se desviando do caminho, fazendo-as incomodadas.
Chega do outro lado com relativa facilidade, prostrando-se perante o grande homem, que nessa altura já o vira e o encarava com um olhar divertido e um leve sorriso de escárnio. Os dois permanecem alguns segundos se analisando, de cima a baixo, até o homem estalar os lábios, passando a mão no brilhante e espesso cabelo negro. Com um suave movimento de cabeça, segue para a parte de trás, no seu escritório, com Heero e os seguranças logo atrás.
Por detrás das portas do segundo andar, o barulho ainda era alto, embora abafado e o ar condicionado melhorava consideravelmente o ambiente do anterior. A sala era limpa e prática, com apenas um ou outro quadro abstrato na parede, dando uma impressão de uma sala de negócios de um homem organizado e metódico.
A decoração era moderna, assim como os móveis, de metal.
Um carpete novo no chão não mostrava quaisquer sinais de desgaste. Por detrás da mesa o grande homem sentava-se, confortável em seu lugar de reinado. Heero prostrava-se insatisfeito a sua frente, passando o peso de um pé para o outro, tirando a franja dos olhos, com a mão direita.
-Heero! Que surpresa vê-lo por aqui! - E sinaliza a cadeira a sua frente - Sente-se!
Heero encara o homem dentro de seus olhos negros, mas anui, sentando-se. Dois guarda-costas permaneciam dentro da sala, em pé, perto da porta fechada, calados, fazendo-se invisíveis. Sabe-se lá quantos mais haveria lá fora.
O homem à sua frente usava terno e gravata, apesar das roupas parecerem levemente fora de lugar em sua pessoa grande, maliciosa. Os olhos negros brilhavam com interesse na figura de Heero a sua frente. O rapaz mal vestido parecia deslocado no local e parecia perceber isso, acuado, olhando em volta.
Heero respira fundo.
Conhecia Ambrosius há longos anos, devido há alguns temporários trabalhos ilegais que fizera. O homem estava sempre envolvido em qualquer espécie de problema, mas era um homem regido por um forte senso de conduta e Heero confiava nele, na medida do possível.
Sua aparência, que ficava entre um mafioso e um empresário refinado combinava com ele e sua inteligência, sempre sabendo tirar o melhor da situação. Os olhos inteligentes e a boca fina estavam sempre manifestando opiniões, mesmo em silêncio. Os cabelos e olhos escuros e a pele levemente morena reforçavam sua dualidade, assim como seu tamanho, altura e ossos, contribuíam.
-O que o trás de tão longe? Achei que você me dissera que nunca mais ia voltar - Isso faz Heero hesitar e o homem sorri, satisfeito com o resultado. Heero abre e fecha a boca algumas vezes.
-Marcus veio atrás de mim. Ele quer o dinheiro de minha mãe. - A voz era fria e monótona, mas o homem era mais inteligente do que as aparências sugeriam.
-O que mudou? Eu avisei que isso aconteceria, você mesmo sabia. - Diz, descrente, voltando sua atenção para alguns papéis a sua frente, nitidamente perdendo o interesse, uma sobrancelha levemente levantada.
As palavras a seguir custaram a sair e quase um minuto foi passado em silêncio, apenas o leve ruído de papel sendo movimentado.
-Ele agrediu Celine. - Diz por fim. Embora não houvesse hesitação em sua voz, aquilo chama a atenção de Ambrosius. Ele conhecia Heero, sabia o que sua irmã significava e sabia que podia tirar proveito disso. As coisas começavam a ficar interessantes. - E eu preciso de alguma coisa para trabalhar.
Disclaimers: Primeiro, Gundam W não me pertence e eu não ganho nada com essa história, além do prazer de planejar, executar e talvez torturar um pouco.
Segundo, o personagem Ricard pertence a Nique (Co-star) e todos os direitos estão a ela atados. Só peguei emprestado o príncipe de Mônaco mais amado da minha vida Ai ai...Rick, Rick...
E terceiro... As personagens Cléo e Celine são minhas. A pequena Aileen também. Se quiserem usa-las, peçam!
Olá!
Esse é um projeto relativamente novo. Deve ter o que? Uns 2 anos de existência talvez?
De qualquer forma, gosto muito dele, é um de meus favoritos...Ele tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, então pode ser difícil de ver para onde a trama vai se direcionar, mas prometo, estamos com tudo sendo plantado aos poucos. Espero que curtam essa história, que é tão querida ao meu coração.
O projeto vai ter um tamanho médio. Provavelmente uns 10-12 capítulos(?) por aí e espero atualizar com freqüência (de preferência todo o mês ^^')
Sei que o título da história é um pouco estranho, mas aos poucos, meio que me apeguei a ele e agora não posso mais mudar, é simplesmente parte de toda a história :/
Acho que é isso, fazia um bom tempo que não postava nenhum projeto novo de Gundam Wing, então confesso que estou animada, um pouquinho hihihi
Os vejo em breve (ou assim espero)
Ja ne
XoXo
Suss.
12.02.2015
