Disclaimer: Os personagens de "Bi no Isu" não me pertencem, sendo propriedade de Ike Reiburn.

Sinopse: Kobu reflete sobre os novos caminhos que sua vida tomou após tudo que mais prezava estar por um fio. (Continuação da oneshots 'A Última Chance')

Notas: Não é o meu departamento, mas se é pra "viajar", aí vamos nós...


All standard is you

Entardecer. Silêncio.

O homem sentado no escritório acabara de desligar o telefone, encerrando mais uma das tantas ligações das quais se ocupara durante o dia. Respirou fundo e recostou-se na confortável cadeira, sem tentar se concentrar mais no que estava na tela de seu computador. Não precisou olhar para o relógio para que resolvesse dar suas horas de trabalho como encerradas. Cumprira suas tarefas dentro do prazo que programara e não se ocuparia mais disso por alguns dias.

Ainda não se acostumara plenamente à vida no campo. Após tanto tempo envolvido na liderança dos negócios, Kobu as vezes sentia falta do barulho e da adrenalina a sua volta. Hábitos que estavam enraizados após tantos anos de vivência, que aos poucos estava deixando para trás.

Sim. Deixando para trás. Sabia que um passado yakuza não era algo que simplesmente se deixava de lado, ainda mais na posição de Wakagashira, mas estava cuidando para deixar as coisas em boas mãos. Havia apresentado ao seu pai, o Kumicho, a intenção de não ter mais o comando consigo. Como seu velho não apresentara qualquer objeção além da esperada ao desejo, o plano estava sendo cumprido de forma simples. Desde então, Kobu estava empenhado em cuidar daquela transição e no mais, assumiria somente as decisões que coubessem as empresas que possuíam e não mais que isso.

Sua ideia era diminuir o ritmo gradativamente, ocupando-se daquilo que era realmente importante. Havia uma razão para estar ali e era em nome disso que guiava todos os seus atos. Havia feito uma escolha sabia que era a única decisão correta que tomara na vida.

Cansado daquele escritório e sem querer mais pensar em trabalho, levantou-se e deixou o cômodo, atravessando o corredor, indo em direção ao quarto. Girou a maçaneta e abriu a porta lentamente, tentando não fazer barulho. Encontrou-o deitado, imerso em um sono aparentemente tranquilo e não quis incomodar.

Olhou para o criado-mudo ao lado da cama e observou a cartela de remédios. Contou o número de comprimidos, conferindo se Nirasawa havia tomado a medicação. Em seguida tocou a testa e o pescoço do rapaz, procurando por algum sinal de febre, mas tudo parecia correto. Certo de que estava tudo bem, deitou-se ao seu lado bem devagar, esforçando-se para não acordá-lo. Sabia bem o quanto Nirasawa precisava de descanso e não pretendia atrapalhar.

Deitado, manteve-se em silêncio, olhando para o teto e escutando o som da respiração tranquila do menor. Deixou-se levar em pensamentos, contando o tempo passado desde que as coisas tomaram aquele rumo e em tudo que aquilo significava.

Três meses, duas semanas e cinco dias. Kobu nunca deixava de conta-los. Era esse o tempo em que estavam ali, naquela casa no campo. Era o tempo passado desde o dia em que Nirasawa finalmente teve alta do hospital após um outro longo mês no qual tudo lhe parecera incerto.

O ataque sofrido pelo amante nas mãos da gangue Ryumman tivera o seu troco. Kobu nunca deixaria uma afronta daquelas sem um revide a altura, mas a verdade era que aquilo ainda povoava seus pesadelos. Nunca se esqueceria da imagem do amante jogado no chão e ensanguentado, das palavras dos médicos, de cada prognóstico ruim, de cada ocasião na qual sentira que não haveria outro dia para eles.

O Wakagashira nunca acreditara em muita coisa, mas sentia que os Deuses ouviram as preces que balbuciara incoerentemente diante do medo da perda. Contra tudo e contra todos, Kobu tinha ganhado uma segunda chance e diante disso tudo que podia fazer era cumprir a promessa que fizera e se dedicar a construir um futuro. Havia pesado todas as possibilidades. Era isso que tinha de fazer: mudar tudo. Começar de novo.

Planejara tudo nos mínimos detalhes. Com toda a frieza e rigidez que lhe eram características, tratou de seu afastamento do comando dos negócios e dos detalhes referentes a transição; buscou e adquiriu uma propriedade no campo, onde Nirasawa poderia se recuperar plenamente e estar em segurança. Inteirou-se de todos os cuidados que o estado de seu amante exigiria acompanhando os procedimentos que lhe eram permitidos ainda no hospital. E depois disso, desde a permissão de alta, Kobu fez tudo que estava ao seu alcance para garantir que tudo estaria em ordem e a mantinha como tal: controlava a alimentação, horário dos remédios e acompanhava as consultas médicas necessárias. Tudo isso com a rigidez de um Yakuza, porém em prol de algo que lhe era mais caro. No mais, tentava deixar aquele passado e aquelas atitudes para trás.

Era difícil, mas estava decidido a fazer com que acontecesse. Tudo valia a pena quando via Nirasawa se recuperando ainda que devagar, quando notava as cicatrizes da pele do amante sumindo pouco a pouco, que ele não sentia mais tanta dor e não tinha mais tantos pesadelos quanto antes. Quando sabia que ele gostava do que estava ao redor e aos poucos seu sorriso não parecia mais ser tão inseguro quanto antes.

Talvez finalmente estivesse conseguindo fazê-lo acreditar que aquilo era de verdade e não uma brincadeira de casinha do qual poderia se cansar mais tarde, como seu pai chegara a perguntar. Ainda se lembrava do tom de voz de seu velho, inquirindo a respeito de sua certeza de se afastar do comando. Kobu dera a ele a sua certeza, preparado para escutar alguma reprimenda, mas a censura não veio.

Nenhuma acusação sobre loucura, traição ou desperdício. Sequer a cobrança por um herdeiro vindo de sua parte, nenhum sermão sobre responsabilidade. Não julgava que Kumicho pudesse lhe compreender de alguma forma, mas sabia que o silêncio era compassivo. Ele compreendia.

Kobu não sabia o que acontecera, nem vislumbrar um motivo para tal. Sabia que sobre Kumicho havia mil histórias, mas nunca quais eram as reais. Ele nunca fizera qualquer questão de desmentí-las, confirmando algumas delas com bom humor, como quem aceita algo que lhe reforce a reputação, mas tampouco revelava verdades. Pouco sabia sobre seu pai: um reflexo daquela vida que levavam a margem de quase todos... e uma das histórias falavam sobre uma mulher. Por coincidência, a história menos falada e a qual era lhe oferecido apenas o silêncio como esclarecimento.

Talvez tivesse havido alguém, ou passado pelo mesmo dilema. Talvez Kumicho tivesse perdido essa pessoa seja diante de alguma tragédia ou então por aquela vida que tinham. Não sabia qual era a realidade, mas fosse ela qual fosse Kobu lhe seria grata. A compreensão silenciosa dele era melhor que qualquer encorajamento, assim como a percepção de que não era o primeiro a sentir alguma coisa.

E que sentir não era uma fraqueza. Ceder talvez fosse uma forma de ser forte.

Talvez fosse possível haver alguma chance de equilíbrio naquela história toda afinal.

Talvez apesar de tudo, Yakuzas tivessem um coração.

Sentiu-o mexer-se na cama, mudando de posição, virando-se para o seu lado, esfregando os olhos, mas ainda longe de acordar. O remédio que ele tomara tinha a sonolência como efeito colateral então Nirasawa ainda teria algumas boas horas de descanso pela frente, o que era bom. O amante não era mesmo um paciente cordato, pelo contrário: Nirasawa era teimoso, apressado e acima de tudo desobediente. Achava tudo aquilo um exagero e também não parecia acostumado a ter quem lhe cuidasse e muito menos que essa pessoa fosse justamente Kobu. Era como se o fato de estar debilitado frente a ele lhe envergonhasse.

Bom, não era difícil imaginar a razão, afinal o Wakagashira nunca fora alguém que tolerasse fraquezas. Nirasawa mal podia saber o que fizera tudo aquilo mudar e talvez nem nunca soubesse ou entenderia. Não que isso importasse a Kobu, pelo menos por hora. Sabia que tais atitudes eram normais e não poderia esperar por outra coisa depois de tudo. E tudo que poderia fazer por ele era prosseguir e mudar o quanto pudesse.

Ainda seria aquele homem que gostava de ter tudo e todos nas mãos. Que gostava de controle, de posse e de exercer autoridade. Que era ríspido, egoísta e implacável e do qual mesmo deixando tudo para trás, seria sempre o Wakagashira: temido e respeitado como tal. Porém não se importava em se esforçar e agir de outro jeito caso isso pudesse despertar o sorriso do outro.

Não era um romântico e nem nunca seria, mas precisava admitir que se sentia bem quando tentava dar a Nirasawa o seu melhor. Sabia que tudo aquilo valia a pena quando o via ali, ao seu lado e em segurança; quando aquela pretensa normalidade afastava a ambos de qualquer forma de tristeza. Acima de tudo, quando sabia que fazer o bem a ele significava o fazer o bem para si mesmo.

Porque o seu destino estava irremediavelmente ligado ao de seu companheiro em um laço ao qual nunca mais seria capaz de romper e que protegeria com todas as forças até o fim.

Fim