1. O anime/mangá Naruto não me pertence. Todos os créditos são do mestre Masashi Kishimoto.

2. Como não tenho muita afinidade com os títulos honoríficos japoneses — e quero evitar a ocorrência de erros graves — tentarei não os aplicar com frequência. Caso você perceba algum erro, por favor, informe-o.

3. Plágio não machuca ninguém, verdade, mas isto não significa que seja legal. Você pode encontrar essa história também no Social Spirit e no Nyah! — postada por mim — e em nenhum outro lugar.

Espero que esta história chegue a você em um bom momento.

Divirta-se!


SOBRE O PALCO ARMADO NO CENTRO da Vila Oculta da Folha um grupo de atores itinerantes, vindo do sul, apresentava uma tradicional peça teatral em homenagem ao Festival da Raposa. Havia em cena atores que interpretavam homens nobres, com os rostos pintados de branco em expressões rígidas, usando elegantes sokutai[1]; e tinha aqueles que representavam os valentes heróis de guerra, exibindo máscaras ferozes e kamishimo[2] coloridos com detalhes dourados bordados como símbolos de força e equilíbrio.

As espadas brilhantes, lanças longas e arcos finíssimos surgiam como contraparte dos leques coloridos, pincéis sujos de tinta e pergaminhos em branco — alusões discretas, mas bastante óbvias, das habilidades essenciais de um ninja: ninjutsu, taijutsu e genjutsu.

Os personagens tinham diferentes funções na trama. Ora se apresentavam como coadjuvantes dispensáveis, que simplesmente acompanhavam o fluxo da história, e ora se revelavam como protagonistas improváveis, lutando até o fim de suas forças pelo que consideravam certo. Todos os movimentos dos atores eram orientados pela música constante — fosse ela instrumental ou vocal —, onde a maior carga dramática transcorria ao som cadenciado do tsuzumi[3], e os momentos de batalha ocorriam ao som frenético dos shamisen[4].

Sem que uma única palavra fosse pronunciada os bravos guerreiros mascarados se postaram diante dos homens de rostos brancos e agiram como se ouvissem a mais terrível história de destruição e morte já contada. Mulheres vestidas de branco surgiram ao fundo, agitando os braços, balançando os corpos ou caindo no chão, tomadas pela mais profunda agonia. Eram elas as mães, filhas e irmãs dos homens cujas vidas foram ceifadas pelo inimigo monstruoso.

Diante daquele sofrimento os honrados heróis tomaram sua decisão.

Levantaram-se de suas confortáveis almofadas douradas, ergueram as mulheres aos prantos e juraram acabar com o sofrimento daquelas pessoas.

Cortinas negras, manchadas de vermelho, foram baixadas e as luzes diminuíram dramaticamente.

Diante da nova paisagem um ator vestido de laranja, vermelho e negro percorreu o palco com passadas largas, propositadamente barulhentas. Seus movimentos eram erráticos, imprevisíveis. Se num instante era rápido e nervoso nos gestos, no segundo seguinte se mostrava plácido e sorrateiro. Saltos e piruetas assustavam as crianças na plateia e os rodopios, acompanhados pelo som agudo do shakuhachi[5], agiram como gargalhadas provocativas. A máscara daquele personagem apresentava as feições de uma raposa demoníaca furiosa, com os dentes brancos arreganhados num sorriso perverso e olhos vermelhos, cruéis, que encaravam a todos com ódio e desejo de sangue.

De súbito a criatura monstruosa se viu cercada pelos bravos guerreiros. As espadas sussurram sua canção de guerra, as flechas cortaram o ar e atingiram o oponente em todos os lugares possíveis. Parecia que o demônio-raposa não teria a menor chance contra aqueles humanos e suas armas... ou ao menos foi o que pensaram no início. Surpreendentemente a criatura reencontrou as forças e se levantou mais uma vez, golpeando violentamente, derrubando cada homem que fosse corajoso o bastante para se colocar em seu caminho.

E muitos caíram, abandonando a dança para nunca mais se erguerem.

O demônio-raposa, girando sobre um único pé, comemorou a carnificina.

Em diversos pontos da plateia fascinada crianças prendiam a respiração e estremeciam ao pensar sobre o desfecho daquela aventura épica. Elas assistiam a comemoração do demônio com ressentimento óbvio e algumas até tentaram escapulir de fininho para longe, simplesmente por não suportarem mais o escárnio da besta desalmada.

Para alívio geral dos espectadores o momento mais aguardado chegou: a última esperança, o grande herói da Vila, entrou em cena.

Comparado aos outros personagens, este se vestia com extrema simplicidade. Suas roupas, em tons de azul e verde profundos, o teriam deixado passar despercebido no cenário sombrio não fosse pelo manto branco e vermelho que usava sobre elas. O mando de um Kage. Seu rosto, coberto por uma máscara de porcelana branca, era plácido e mostrava a mais profunda paz de espírito. Ele era o perfeito oposto da raposa e, justo por isso, cabia-lhe a descomunal missão de impedir a destruição da Vila.

Com o manto de seda balançando graciosamente às suas costas, o Kage se postou bravamente à frente dos homens caídos, protegendo-os, e desafiou o poder do demônio-raposa.

Aquele, sem sombra de dúvidas, era o Yondaime Hokage.

Reagindo ferozmente à provocação daquele mísero mortal, o ardiloso demônio saltou para trás e se colocou em posição de ataque, firmando ambos os pés no chão enquanto mantinha as mãos em garra, pronto para estraçalhar ao menor movimento. Seus olhos fixavam o opositor com prudência e fúria. Acompanhando os movimentos da raposa o Yondaime assumiu sua própria posição ofensiva e, sem desviar a atenção ou esquecer-se daqueles que protegia, avançou.

A batalha final ia começar. O inconfundível som do taiko[6] estremecia o ar noturno. Os batuques pareciam estar no mesmo ritmo acelerado dos corações dos espectadores. Homem e demônio travariam um combate extremo. Correram um para o outro como se nada temessem ou tivessem a perder.

Uma voz rascante rompeu a noite — um lamento triunfante e atônito demais para ser explicado — e o confronto chegou ao inexorável fim.

O demônio-raposa desapareceu nas sombras sem deixar rastros.

A humanidade estava salva!

E, todavia, aquela conquista teve um preço caro a ser pago.

Quando os senhores nobres se aproximaram para ver o desenlace da batalha, quando os guerreiros sobreviventes se ergueram dentre os corpos de seus companheiros, assistiram ao valoroso Kage cair de joelhos, erguer a dramaticamente a face para o firmamento estrelado e, lançando um trêmulo suspiro, cair por terra para jamais levantar.

Assombradas pelo final inesperado as crianças mais jovens irromperam em soluços de partir o coração e as mais velhas, mais rápidas e discretas, enxugaram as lágrimas que ameaçavam transbordar; os adultos agradeceram a apresentação fantástica e muitos ficaram a observar — com sorrisos misteriosos e cheios de tristeza — os pais correrem para seus filhos na esperança de animá-los novamente.

O arauto selecionado pela equipe teatral subiu ao palco para explicar a história por trás da peça. Falou-lhes dos personagens envolvidos, citou nomes e lugares conhecidos, e relatou com a maestria dos bons contadores de histórias, os pormenores conhecidos sobre a heroica batalha entre o Yondaime Hokage e a cruel Kyuubi no Youko.

Para muitas crianças aquele foi um momento de revelação, quando enfim compreenderam porque não tinham pais, avós ou tios como as outras crianças da Vila; para os mais velhos foi uma amarga recordação de como perderam pessoas queridas em uma única noite de horror. A morte em batalha podia ter seu caráter poético e heroico, mas todos que ficavam para trás concordavam: honra e heroísmo pouco valiam quando a solidão e saudade batiam com mais força em seus corações.

Encerrando o longo discurso, o arauto fez uma reverencia profunda para o público e a multidão, comentando animadamente a peça exibida, dispersou noite adentro. Membros da anbu, sorrateiros como sombras, observavam cautelosamente a movimentação frenética dos visitantes, atentos a qualquer sinal de ameaça ou distúrbio. Nas ruas, homens e mulheres, sozinhos ou acompanhados, seguiam de perto das crianças no Festival, guiando-as por entre as barracas multicoloridas até chegarem à área onde os fogos de artifício seriam lançados.

Música e riso se misturavam no ar. O aroma inebriante das comidas vagava pelas ruas apinhadas, convidado os fregueses a sentarem nos banquinhos de madeira e pedirem grandes porções de gyudon ou comprarem saborosos temaki feitos na hora. O clima festivo era, talvez, a melhor maneira que tinham de homenagear os bravos ninjas que sacrificaram suas vidas para salvar a Vila.

Havia, no entanto, um garotinho solitário para quem pouco importava aquela celebração barulhenta. Ele ignorava a algazarra geral, dando pouca atenção às vozes altas ou aos cheiros maravilhosos que vinham das tendas próximas, e permanecia sentado nas sombras da área de apresentação, observando discretamente os atores e assistentes de palco desmontarem os cenários e encaixotarem as fantasias.

O menino pensava numa ideiazinha que lhe ocorrera durante a apresentação teatral, e sentia que não dormiria naquela noite se não obtivesse uma resposta para aquela questão. Ele queria saber — com toda a sinceridade de seus ingênuos quatro anos de idade — porque ninguém perguntou ao demônio-raposa a razão de estar tão furioso. Em sua opinião ninguém machucaria outra pessoa sem um bom motivo e não lhe entrava na cabeça que Kyuubi odiasse a humanidade simplesmente porque estava em sua índole odiar.

De repente, arrancando uma exclamação surpresa do garoto nas sombras, o céu estrelado foi iluminado pelos fogos de artifício e a cidade mergulhou numa mistura infinita de cores e sons ensurdecedores. Distraído pelo espetáculo de luzes ele já não via nem ouvia nada além daquelas flores chamejantes que surgiram no firmamento com estalos estrondosos e desapareciam sem deixar vestígios. Apenas sorriu. Sorriu com alegria genuína, sem invejar os meninos e meninas que gritavam e abraçavam as pernas dos pais ou que, eufóricos, podiam para serem levados nos ombros para verem os fogos mais de perto, e mantinha os olhos fixos nos céus, esperando a próxima onda de cores.

Se as coisas fossem diferentes, se houvesse ali um adulto que se importasse sinceramente com a segurança da criança ou se esta não ficasse tão fascinada pelo show noturno, o garoto teria se lembrado do quanto era perigoso andar pelas ruas àquela hora, teria voltado para casa mais cedo e nada de mais teria acontecido.

Mas não foi assim.

O mundo ficou verde.

Um grupo de aldeões embriagados chegou à praça de apresentações. Olhavam fixamente para o alto, para os fogos ao longe, e pensavam na dura batalha contra a monstruosa Kyuubi. Lembravam-se do terror inenarrável daquela noite há quatro anos, das vidas preciosas que foram perdidas sem qualquer justificativa, da lenta reconstrução da Vila.

Depois se tornou azul.

Seus olhares foram atraídos pelo garotinho escondido nas sombras de um beco. O causador de todos os males — o último Uzumaki — estava sentado confortavelmente naquele canto assistindo a comemoração como se nada daquilo significasse algo. Seus corações, já cheios de mágoa e rancor, se encheram de ódio e, desprezando os pedidos do Sandaime Hokage para que jamais prejudicassem a criança, sorriram entre si e avançaram.

Então amarelo.

Em seu posto de observação, no telhado plano de uma residência, o anbu encarregado pela guarda do menino viu os homens se aproximarem e não moveu um único músculo para impedi-los. Dominado por um senso de direito torcido acreditava ser correto permitir que aqueles homens tivessem sua merecida desforra pelos danos causados pela raposa. Não fazia ideias de quais seriam as consequências de sua decisão, mas achou que o preço a pagar compensaria a felicidade de ver um pouco de justiça.

E vermelho.

O primeiro golpe, uma garrafada certeira na cabeça do garoto, o deixou atordoado o bastante para não pensar em fugir. O pavor nos olhos do menino foi engolido pela ira descontrolada e pela repulsa injustificável no dos aldeões. Eles riram quando os gritos começaram e gritaram quando o silêncio os surpreendeu. Socos e pontapés eram distribuídos sem piedade. O reflexo fugaz de uma lâmina surgiu na penumbra enquanto puxavam a criança cada vez mais para a escuridão do beco.

Ali, naquela noite, o inferno foi aberto e uma criança desapareceu nele.

Naruto Uzumaki, pela primeira vez, entendeu que talvez — só talvez — o terrível demônio-raposa tivesse razão em odiar a humanidade.


[1] Sokutai— era a roupagem usada pelos homens da aristocracia durante a Era Heian (794 – 1185) e se caracterizava pela ampla saia-calça – chamada oguchi e uma enorme túnica bordada com mangas longas.

[2] Kamishimo— roupagem comum aos samurais da Era Azuchi-Momoyama (1568 – 1600) e consistia de uma saia-calça ampla, longa e estruturada chamada nagabakama. Tudo era feito com o mesmo tecido ou, ocasionalmente, completado por uma jaqueta sem mangas com os ombros alargados.

[3] Tsuzumi— pequeno tambor japonês, sendo o único tambor a se tocar sem uso de baquetas. É um instrumento comum tanto no teatro Noh quanto no Kabuki.

[4] Shamisen— instrumento musical com três cordas cuja a caixa de ressonância tem um tampo de pele de gato ou cobra.

[5] Shakuhachi— instrumentos de sopro com cinco orifícios.

[6] Taiko— No Japão o termo se refere a qualquer tipo de tambor, mas fora do país o termo é empregado para se referir a qualquer um dos vários tambores japoneses chamados wadaiko.