Nica estava em frente a uma tela a segurar um pincel numa mão e a palete noutra. Claro, ela tinha as mãos acorrentadas, mas a quantidade de elos conectados fazia uma corrente suficientemente grande para ela satisfazer as necessidades básicas. E além do mais, tinham retirado da sala tudo quanto pudesse ser perigoso…não para Nica, mas para eles.
A tela estava em branco. Nica simplesmente fitava o olhar nela, com o pincel erguido, mas sem tinta alguma no bico.
"Quando é que vais começar a pintar?" Uma voz pergunta. E não era a voz de um rapazinho, de longe isso. De um jovem adulto, talvez. Mas a voz era certamente masculina.
"Eu já acabei. Estou a dar os toques finais."
"Mas a tela está em branco…"
"Errado." Nica olha para o homem que estava ali "As telas nunca estão vazias. Elas são preenchidas com a mente. Se a tela está vazia, é porque a mente também o está." Nica volta a olhar para a pintura "Olha novamente. O que é que vês? Diz-me."
"Hng." O homem sorri e olha para o quadro "Acho que não faz sentido eu dizer o que vejo se a minha mente está sempre a meter novos preenchimentos na tela. Não é algo fixo que possa descrever."
"Oh?" Nica sorri e ri-se de modo triunfante "Boa resposta. Parece algo que eu diria. Estamos no lado certo da cela?" Nica pousa os materiais de pintura e senta-se numa cadeira – daquelas cadeiras com rodinhas por baixo. "Já tentaste regular a respiração? É mais difícil do que parece."
"…"Ele vigia os movimentos de Nica "Tu andas a tomar alguma medicação?"
"Medicação?" Nica ri-se que nem uma louca "Essa é boa! Hahahaha!" Nica continua a rir-se, mas passado um bocado acalma-se "Se a medicação servisse para alguma coisa, já tinha saído daqui. Além do mais, como se cura um louco? É só uma desculpa."
Realmente…Nica, para uma louca, tinha mais coerência no pensamento do que muitas pessoas. Talvez fosse ela a sã e o resto os loucos.
Mas foi então que do nada Nica, ainda sentada na cadeira, começa a andar a roda e a andar de um lado para o outro, como se de uma criança se tratasse, – Nica também não estava longe de ser uma criança, de qualquer modo – até que embateu na esquina da secretária e caiu no chão.
"Nica!" A voz do homem tinha um tom aflito
Nica levantou-se meio zonza do chão "Cadeeeeeira…gira…e 'bowa" Nica começa a rodopiar com os braços esticados "'Bowa como o helicóptero!" Nica acaba a frase com um último giro rápido e acaba por cair de cu no chão. E assim ficou a olhar para o tal homem. "Ah, olá." Nica sorri "O que é que estás aqui a fazer?"
"O que é que…mas não é óbvio, vim ver-te!"
"Não, essa não era a minha pergunta." Nica levanta-se e aproxima-se das grades "O que é que estás aqui a fazer…neste tempo." Nica olha para os olhos do homem – olharia, caso conseguisse, mas o tal homem estava a usar um enorme capuz e com a pouca luminosidade do sítio, só se via parte do nariz e boca. "Esta não é a tua era. Ou…estou errada?"
"Acho que era melhor descansares. Não estás a dizer coisa com coisa."
Nica ri-se "Bem…eu sou maluca…dizer coisa com coisa é que não fazia sentido." Nica pausa por um bocado. "O Inku?"
O homem acaba por se engasgar "Cof…cof… Inku…? cof" Ele limpa a garganta "Ah-ham. Desculpa. Quem é esse Inku?"
"Esse…?" Nica sorri diabolicamente "Esse. Não isso. O que te leva a pensar que é alguém e não algo?"
"Bem, isso, hun…Parece-me nome pessoal."
"A mim parece-me uma marca de esferográfica." Nica olha para a manga esquerda do casaco do homem por uns momentos antes de dirigir a atenção para o tecto "Como tens passado? … Lemi."
O homem ri-se de modo triunfante, parecendo Nica "Lemi, hun? Já não ouvia esse nome há um bom tempo." 'Lemi' mete o carapuço para baixo e aproxima-se das grades, revelando o seu volumoso cabelo espetado – que tinha levado um corte mas continuava a tapar-lhe os olhos "Como é que descobriste? És a primeira."
"Bem…" Nica segura as grades e aproxima a sua cabeça de 'Lemi' "Tu és o único que me chama de Nica. Mais ninguém me chama pelo meu nome. E quando mencionei 'Inku', sendo que Inku é uma palavra estranha, tu fizeste caso disso. O resto não faria caso a algo sem sentido que eu dissesse. E perguntaste quem era, não o que era. Dá a entender que sabias que era alguém e não algo." Nica olha para os 'olhos' de 'Lemi' – com tanto cabelo a frente, era de admirar como 'Lemi' conseguia ver alguma coisa "Mas principalmente…A tua voz. Achas que não a reconhecia? Não mudou assim tanto. E tu também não."
'Lemi' sorri "Devia saber que não te ia conseguir enganar."
"Porque é que voltaste ao passado?" Nica pergunta "E não venhas dizer que foi por minha causa, porque se estás aqui agora é porque não conseguiste tirar-me daqui antes e duvido seriamente que consigas fazer alguma coisa mais só por estares mais velho. E é que estando por dentro, tinhas mais mobilidade, portanto no passado tinhas mais possibilidades de me tirar daqui."
"E como é que sabes que não estou por dentro?"
"Se estivesses, não terias de te esgueirar para vires ter comigo." Nica responde, com um sorriso de satisfação. Ela podia ser louca, mas não era estúpida "Qual é o motivo?"
"Já nem me lembrava a dor de cabeça que podias ser…" 'Lemi' coça a nuca por uns segundos "Vim tratar de uns assuntos. Nada de especial."
"Oh…" Nica faz uma cara de espantada "Uns assuntos…uau…Então no futuro as pessoas viajam no tempo para tratar de assuntos nada especiais. Isso não ia alterar o rumo das coisas?"
"Apanhaste-me aí." 'Lemi' suspira "Mas eu não posso dizer o que vim aqui fazer. Quero interferir o menos possível."
"Eu vou morrer em breve, é?" Nica afasta-se das grades a olhar para o tecto. "Não precisas de responder. Dizes que queres interferir o mínimo possível com o passado, mas vens falar comigo. Além de que quando te chamei Lemi afirmaste não ouvir esse nome há um bom tempo. Se o assunto não é comigo…Então que motivos terias tu para vir falar comigo?"
"Ninguém vai morrer." 'Lemi' agarra as barras "Eu não vou deixar."
"Então alguém morreu de facto."Nica pensou.
"E tenho um favor a pedir-te." 'Lemi' pausa até ter a certeza que tem a atenção de Nica "Não digas a ninguém que eu estive aqui."
"Não digo a ninguém que alguém veio do futuro falar comigo?" Nica ri-se "Iam pensar que era maluca. Mas oh, eles já pensam isso. Eu já sou maluca." Nica volta a olhar para 'Lemi' "Não chegaste a dizer…e o Inku? Se não o trouxeste na manga…é porque ele já deve ter crescido bastante, não?"
"Oh sim. Não tens noção. Agora até o posso montar. Imagina o tamanho dele."
"Ele é um dragão, afinal. Um…Farbe Darche, não é?"
"Isso mesmo." 'Lemi' olha para o relógio de bolso que trazia "Está quase na hora. Só tenho uma oportunidade. Esta viagem no tempo é única."
O olhar de Nica fixa-se no relógio "Esse relógio…não é…?"
'Lemi' olha para o relógio por uns momentos antes de guardar no bolso "Sim…Ele ajudou-me com a viagem no tempo."
Nica aproxima-se das grades "Lemi…antes de ires…"
'Lemi' aproxima-se das grades, e assim que o faz, Nica mete os braços por entre as barras e abraça-o – pelo menos da maneira que pode.
"Adeus." Nica diz.
'Lemi' fica surpreso pela acção de Nica, mas mesmo assim retribui o abraço "Até já."
"…" Momento de silêncio.
"Tenho mesmo de ir" 'Lemi' larga Nica e mete o capuz para cima. "Já falamos."
Num ápice, 'Lemi' desapareceu. Nica voltou-se então para a pintura.
"Bem…" Nica molhou a ponta do pincel na tinta preta e pressionou-o contra a tela "Altura de traçar o meu destino…"
Nica vai traçando o pincel na tela até que a obra final é um círculo preto com uma bolinha branca no meio.
Nica larga a palete e o pincel e admira o seu trabalho.
"Espero não ter de também pintar a bolinha."
N/A - Okai, mais um one-shoot! Sim, pode dizer-se que vem a seguir a "Quem é o louco afinal".
Fiz isto pelas insistencias chatas de fazer uma continuação, mas é que aquele final era perfeito...:
E alem do mais, não fazia sentido este capítulo ser continuação do outro.
Bem, provavelmente a ultima coisa que vou upar aqui este ano...
Ou talvez faça outros one-shoots.
A Nica é uma louca bem esperta, não acham?
~Anna Ildefonso
