- Katekyo Hitman Reborn® e seus personagens pertencem à Amano Akira;
- Essa é uma fanfic yaoi, ou seja, contém relacionamento homossexual entre os personagens. Se você não gosta ou sente-se ofendido com esse tipo de conteúdo sugiro que vá ser feliz lendo shoujo;
I
"Você tem certeza de que não precisa de ajuda, Chefe?"
Alaudi ergueu levemente os olhos azuis, lançando um único olhar na direção do homem parado à porta de seu escritório. O subordinado de sobrenome Smith encolheu-se como um animal assustado, sorrindo de maneira covarde e fechando a porta sem demora. O escritório tornou-se silencioso novamente, e o homem sentado por detrás da larga mesa de madeira escura pôde finalmente retornar ao trabalho.
Havia uma grande pilha de papéis do lado esquerdo e sua atenção estaria monopolizada pelo trabalho durante as próximas horas. Não importava. Não importava se ele tivesse de passar a noite naquele local, assinando e revisando papéis, tendo como única companhia uma xícara de café e alguns petiscos dentro da gaveta. Ninguém sentiria sua falta. Não havia ninguém esperando-o em casa com um jantar fresco, um banho preparado e uma cama feita.
Desde sempre era apenas ele... e ele.
A caneta parou de dançar sobre o pedaço de papel. O Guardião da Nuvem dos Vongola tinha o rosto apoiado em uma das mãos, enquanto seus olhos pareciam ver algo além do mural de recados pendurado do outro lado do escritório. A noite estava fresca do lado de fora da janela semicerrada, e uma agradável brisa tornava o lugar menos vazio e mais confortável. O barulho do tique-taque do relógio no alto da parede atrás de Alaudi também não chamava sua atenção. Na realidade, o que realmente chamava sua atenção?
O louro voltou a apertar a caneta, pegando o primeiro papel da pilha à esquerda. Seus olhos correram através das letras, lendo e compreendendo o significado das palavras que formavam frases e que assim criavam sentido ao texto. Não era assim que as coisas funcionavam? Para entender era preciso conhecer. O Guardião da Nuvem só compreendia que um dos setores havia apreendido um sequestrador porque ele sabia ler o significado daquelas letras.
Por um breve momento Alaudi desejou que tudo fosse tão simples quanto um relatório da polícia. As frases ditas de maneira direta, sem rodeios ou entrelinhas. Informações precisas e pistas divididas entre relevantes e irrelevantes. Não havia meio termo ou talvez naquela linha de trabalho. Infelizmente ele não poderia dizer o mesmo a respeito do restante de sua vida.
O Guardião da Nuvem respirou fundo, deixando que o ar entrasse e saísse por seus pulmões manualmente. Aqueles pensamentos haviam retornado, mas ele não tinha tempo no momento. E mesmo se tivesse, não haveria garantia alguma de que o tempo que ele gastaria pensando em certas coisas lhe traria algum benefício.
Alaudi não era um garoto. Pensamento positivo soava sempre como algo otimista e que era dito para pessoas que não gostavam de encarar a realidade. Ele não era desse jeito. Porque por mais duro e difícil que fosse, o louro preferia encarar a vida de frente ao invés de inventar teorias e fantasias ridículas apenas para se sentir melhor.
Então não havia motivos para mentir para si mesmo, pois não importava quantas vezes ele pensasse a respeito, as coisas não mudariam magicamente. Aquele homem não aparecia porque ele queria vê-lo.
Alaudi jamais esqueceria o dia que conheceu pessoalmente o responsável por roubar-lhe tantos pensamentos. A pessoa cujo nome sempre lhe cantou aos ouvidos e despertou em seu peito um interessante surreal também foi responsável por encantá-lo de diversas maneiras. Após conhecer o Chefe da Família Cavallone, a vida do Guardião da Nuvem não foi a mesma. Aquela estranha e perigosa atração que ele sentiu cresceu com o tempo e as visitas daquele homem. O moreno no começo aparecia uma vez por semana, sempre em momentos inusitados. As visitas então se tornaram mais assíduas, a ponto de Ivan Cavallone comparecer todos os dias no horário de almoço, sempre com um largo e charmoso sorriso nos lábios.
O louro nunca negou os convites para almoçar, ou enxotou aquele homem quando ele aparecia somente para permanecer cinco minutos. Porém, o convívio o fez criar grandes expectativas, apenas para perceber que no final das contas ele era o único que estava prestando atenção àquela situação.
Foi somente quando o moreno deixou de frequentar o escritório que Alaudi notou que estava se deixando perder naquela estranha companhia. As visitas voltaram a se tornar semanais, e em alguns momentos Ivan não aparecia por semanas, retornando de repente como se nada tivesse acontecido.
A última visita havia acontecido há quase vinte dias. Desde então o Guardião da Nuvem não soube mais nada sobre aquele homem.
Por diversas vezes a ideia de procurar seu paradeiro passou pela mente do louro, mas ele não fez nada a respeito. Não era assunto seu. O Chefe dos Cavallone era uma pessoa importante e seus assuntos provavelmente eram responsáveis por tirar o tempo livre que tinha. Provavelmente. Entretanto, ele mentiria se dissesse que suas mãos não tremeram com a ideia de perguntar à Giotto. O Líder dos Vongola certamente saberia alguma coisa, mas isso significava pedir ajuda, o que ele jamais faria, ainda mais para um homem problemático como aquele.
Reduzido a sua própria insignificância e solidão, o Guardião da Nuvem tentava ignorar os estranhos sentimentos que lhe vinham ao peito preferindo focar-se no trabalho. O tempo que ele tinha para si mesmo havia diminuído, e o louro passava mais tempo no escritório e rodeado de papéis. Qualquer coisa que o fizesse parar de pensar naquele homem era bem vinda.
x
Alaudi não teria percebido que um novo dia havia rompido se o nascer do Sol não invadisse sua janela. O alaranjado adentrou através da persiana, atingindo-o direto na altura dos olhos. O Guardião da Nuvem então ergueu o rosto e espreguiçou-se. Aquele fora o último documento que merecia sua assinatura. O trabalho estava feito.
Os olhos azuis pareciam cansados e foi impossível para o louro esconder um bocejo enquanto encarava seu escritório. Era incrível como os lugares pareciam diferentes no decorrer do dia. O local de trabalho que durante a noite soava solitário e grande tornava-se pequeno e aconchegante com a luz do Sol. O mais incrível de tudo aquilo era que até mesmo os pensamentos de Alaudi pareciam mais iluminados.
O Guardião da Nuvem levantou-se para arrumar a mesa. Os documentos foram divididos e seriam entregues a cada um dos subordinados. Por cerca de uma hora o louro não fez nada além de organizar e arrumar. A sede da Polícia ainda estava vazia, e ele pôde caminhar com liberdade e tranquilidade pelos corredores, sem ouvir barulhos de máquinas de escrever, conversas e toda a bagunça que fazia parte do dia a dia.
Quando não havia mais nenhuma folha fora do lugar, Alaudi vestiu seu sobretudo azul-marinho e trancou a porta de seu escritório. Os passos ecoaram pelo chão encerado, e ao descer ao segundo andar, o Guardião da Nuvem percebeu que a vida retornava ao prédio pouco a pouco. Alguns subordinados começavam a chegar para mais um dia de trabalho.
Os homens cumprimentaram o louro com um baixo bom dia e um respeitoso menear de cabeça. Alaudi retribuiu a reverência com a cabeça, mas não abriu a boca. Sua mão puxou a porta de saída e então tudo se tornou claro demais.
O brilho do Sol o fez virar o rosto e fechar os olhos. Ele não estava esperando por isso. Talvez a noite de trabalho o tivesse deixado cansado demais. Por alguns segundos tudo o que ele fez foi manter os olhos fechados. Aos poucos sua visão retornava, embaçada e confusa.
A luz do Sol havia ido embora. Não, espere. Ela ainda estava lá, radiante e penetrante, encarando-o de frente. Despindo-o com sua presença. Não... aquele não era o Sol.
Dois grandes e brilhantes olhos cor de mel o encaravam em uma proximidade perigosa. O Guardião da Nuvem demorou alguns segundos para entender o que estava acontecendo, dando um passo para trás e batendo as costas na porta de entrada da sede de Polícia. Duas mãos tocaram seus ombros, e então ele percebeu que os olhos cor de mel faziam parte de um belo rosto. Os traços eram delicados, mas masculinos. Os lábios eram finos e avermelhados. O cabelo era negro e perfeitamente escovado. E os olhos... os olhos o encaravam com preocupação e curiosidade.
"Você está bem? Você pode me ouvir? Eu perguntei se você está bem."
A voz entrou pelos ouvidos do louro e por alguns segundos tudo o que ele fez foi encarar o homem à sua frente sem saber ao certo o que deveria ser dito. Sua mente estava confusa, provavelmente por causa das horas ininterruptas de trabalho que ele vinha acumulando nos últimos dias. Entretanto, sem que Alaudi pudesse ter conhecimento, seus lábios sussurraram um baixo "Estou bem", e então os olhos preocupados tornaram-se mais brilhantes e satisfeitos. A luz do Sol não atingia mais os olhos azuis do Guardião da Nuvem, pois ele estava bem protegido na sombra do homem. E como algo que fora esquecido, o louro entendeu o que estava acontecendo. Ele sabia quem era o estranho homem.
A realização o deixou desconcertado. As sobrancelhas louras se juntaram e Alaudi pediu licença em voz baixa, afastando-se com passos rápidos daquela pessoa. Seu coração batia apressado e forte em seu peito. Não era possível. Depois de todas aquelas semanas não era possível que aquele homem tivesse retornado e que o procurara. Por noites ele imaginou, enquanto rolava na cama, como agiria quando os dois se encontrassem novamente. As reações variavam, mas o que seu coração sentia nos fantasiosos encontros era somente alívio. Porém, o que ele sentia naquele momento de inevitável realidade não era nada disso. O alívio deu lugar ao ressentimento. Ele não queria mais ver aquela pessoa.
Ivan Cavallone olhou surpreso para o local em que o louro estivera, virando o rosto e começando a andar. Seus lábios chamavam o nome do homem à sua frente, mas parecia que quanto mais ele se aproximava mais o Guardião da Nuvem aumentava a velocidade.
Percebendo que teria de tomar uma atitude drástica, o moreno abriu o sobretudo negro que vestia e ampliou o ritmo, que mais parecia uma corrida. Uma de suas mãos segurou o fino pulso de Alaudi quando a distância diminuiu, mas tudo o que ele recebeu foi um olhar frio como resposta.
"Solte-me." O louro moveu lentamente os olhos, puxando a mão para longe.
"Desculpe..." Ivan ergueu as mãos, mostrando que não tinha intenção de machucá-lo. "Eu não quis assustá-lo."
"Não assustou." Alaudi desviou rapidamente os olhos. "Com licença."
O Guardião da Nuvem voltou a dar as costas, e novamente o homem segurou seu braço. A paciência do louro estava por um fio, e se ele não fosse tão controlado certamente teria retirado seu par de algemas de dentro do sobretudo e atacado o insistente homem. Como fazer com que aquela pessoa entendesse que ele não queria vê-lo?
"Desculpe." O Chefe dos Cavallone repetiu as palavras ao sentir por uma segunda vez os olhos frios em sua direção. "Mas eu vim vê-lo e depois de todo esse tempo eu esperava uma recepção mais... calorosa?"
A veia na testa de Alaudi palpitou com aquele comentário. As palavras do moreno o faziam tremer de raiva, imaginando o quão egoísta aquele homem poderia ser. Ele desapareceu por semanas e retornou tão de repente como foi embora, e ainda esperava por algum tipo de recepção? Não. Não com ele.
"Eu não tenho tempo agora, então se deseja algum tipo de trabalho sugiro que se dirija a recepção e procure o encarregado do dia. Meus serviços terminaram por hoje."
A resposta saiu muito mais educada e calma do que Alaudi gostaria. Seus lábios mal se moveram, e ele tentou se focar no lado profissional da relação entre eles.
Bem, aquele era o único lado para ser sincero. Não havia nada além de uma relação puramente profissional.
"M-Mas eu gostaria de falar com você." Ivan insistiu. Havia um tolo meio sorriso em seus lábios rosados. "Eu estive cheio de trabalho e n-"
"Nada disso me diz respeito." O Guardião da Nuvem ergueu os olhos. Os dois estavam parados ao lado de seu carro. "Se deseja conversar então apareça amanhã com o trabalho e então poderemos discutir a respeito."
A chave foi retirada do bolso do sobretudo e encontrou fácil acesso na porta do carro. O Guardião da Nuvem ergueu levemente os olhos, olhando com certeza curiosidade para o vidro do carro. O reflexo mostrava o belo rosto do Chefe dos Cavallone, que o olhava com uma expressão séria. A face no reflexo aproximou-se devagar e Alaudi sentiu quando uma das mãos tocou a sua com gentileza.
"Pelo menos me deixe dirigi-lo até sua casa. Você trabalhou durante a noite, não foi? Não é seguro dirigir. Eu o deixarei em casa e retornarei amanhã para conversarmos. Por favor, Alaudi. Permita-me pelo menos fazer isso por você."
A voz que seguiu aquele pedido era baixa e delicada, forrada por uma fina camada de ternura e genuína preocupação. O louro desviou lentamente os olhos, encarando o homem ao seu lado que estava próximo e o olhava de maneira amável. A mão sobre a sua estava quente, segurando-a delicadamente e fazendo-o recordar-se da noite em que eles se conheceram. O Guardião da Nuvem soube que havia perdido aquela discussão quando Ivan o conduziu para o outro lado do carro e abriu a porta para que ele se sentasse. Alaudi sentiu o fofo encosto do banco, encarando apenas as próprias mãos sobre suas pernas.
O Chefe dos Cavallone sentou-se ao seu lado e deu partida no carro. O motor não era dos mais silenciosos, mas ele não escutou nada além do pedido do moreno:
"Você precisará me dizer como chegar à sua casa, pois apesar de saber onde é eu nunca dirigi sozinho até lá."
O louro ergueu os olhos, apontando para a rua em que estavam. Seus lábios explicaram de maneira resumida, mas detalhada, o caminho, e somente ao terminar que ele se deu conta do que havia ouvido.
"Como sabe onde eu moro?" Alaudi virou o rosto para o seu lado da janela. Quanto menos ele olhasse para o outro lado melhor.
"Eu sei muitas coisas." Havia um pingo de orgulho na voz de Ivan. "Existe uma bela macieira no final da sua rua. Ficarei feliz em revê-la depois de todo esse tempo."
Como era de se esperar, o Chefe dos Cavallone começou um estranho monólogo conforme dirigia pelas ruas italianas. O movimento do carro, a paisagem que passava por seus olhos e principalmente a voz de sua companhia acalmou o louro pouco a pouco. Os olhos azuis começaram a se fechar, pesados e sonolentos. Seu corpo sentia-se cansado, e os dias mal dormidos finalmente pareciam requerer o sono perdido.
Sem perceber, Alaudi dormiu enquanto Ivan falava sobre as praças e as ruas que percorriam. A voz do moreno era a única coisa que o Guardião da Nuvem ouvia, mas aos poucos ela tornou-se longe, sumindo totalmente em determinado momento.
Aquela era a primeira vez em semanas que Alaudi dormia tão rapidamente.
x
Havia um largo e cheio salão. As pessoas iam e vinham, todas usando suas melhores roupas e acessórios. A música que tocava era bela e parecia vir direto de uma orquestra que estava localizada em algum ponto não muito longe dali.
Por alguns segundos Alaudi não fez nada além de observar seu entorno, enquanto se perguntava o que ele estava fazendo naquele lugar. O louro não era uma pessoa que frequentava festas, bailes ou reuniões. Entretanto, ele estava ali.
Com passos firmes e apressados o Guardião da Nuvem se pôs a andar. O chão era quadriculado, onde preto e branco se misturavam formando uma estranha e confusa combinação, como em um tabuleiro de xadrez. Não havia saídas visíveis, e foi somente ao chegar ao meio do salão que Alaudi percebeu que estava perdido. A multidão ao seu redor tornou-se insuportável. As vozes, os sorrisos e principalmente a quantidade de pessoas o assustava. Ele não queria estar ali. Ele queria ir embora, mas não sabia para que lado deveria ir. Atrás, à frente, talvez para os lados? Não havia sinal de saída ou nenhum rosto conhecido que pudesse lhe oferecer qualquer tipo de informação.
Foi então que o Guardião da Nuvem se sentiu puxado. Algo segurou sua mão direita e o fez seguir para um dos lados mesmo contra sua vontade. Os passos que começaram lentos se tornaram uma corrida, e então ele atravessava o largo salão enquanto era puxado por alguém que abria caminho sem encostar-se a nenhum dos presentes. A mão que segurava a própria mão do louro era quente e lhe transmitia segurança. Não havia ainda sinal de saída ou fim, mas durante todo o tempo que Alaudi correu, dentro de seu peito ele sabia que não teria motivos para se preocupar. Aquela pessoa o levaria para longe dali, ele tinha certeza.
Quando o homem parou, o Guardião da Nuvem fez o mesmo, ficando surpreso por não ver mais as pessoas. Os dois ainda estavam no meio do salão, mas eram os únicos presentes.
"Eu estava procurando por você." O homem virou-se. Era alto, moreno e possuía dois belos e grandes olhos cor de mel que se assemelhavam a dois sóis. "Achei que nunca fosse encontrá-lo."
"Eu estava aqui o tempo todo." Alaudi não sabia direito o que estava falando. As palavras pareciam ganhar vida através de seus lábios, sem que ele realmente tivesse de parar para pensá-las.
"Eu sei. Desculpe por fazê-lo esperar." O homem deu um passo à frente. Seus dedos se entrelaçaram aos do louro.
O Guardião da Nuvem sabia quem era aquela pessoa. O Chefe dos Cavallone o olhava com um meio sorriso e os mesmos olhos gentis. Aquele encontro o fez lembrar-se da primeira vez que ambos se encontraram. Havia também um largo salão. Havia uma festa, pessoas e barulho. E havia também Ivan Cavallone e sua firme e imponente presença.
"Eu não estava esperando." O louro respondeu ao comentário anterior, erguendo os olhos azuis para enxergar melhor o homem.
"Pois eu estava..." O moreno deu mais um passo à frente, tocando com a mão livre a pele pálida de Alaudi. "Eu estive esperando por você durante anos."
"Você desapareceu." O Guardião da Nuvem não sabia por que estava falando aquelas coisas. Ele jamais teria dito aquelas palavras em voz alta.
"Era trabalho. Desculpe se eu o preocupei."
"Eu não estava preocupado." Alaudi sentia as bochechas corarem. Aquilo era mentira.
"Eu não quero mais ficar longe de você, Alaudi." Ivan abaixou o rosto devagar. O Guardião da Nuvem podia sentir a respiração próxima à sua. "Eu pensei em você todos os dias e em todos momentos..."
"Eu estava ocupado com meu trabalho."
O homem à sua frente sorriu, erguendo o queixo do louro, fazendo com que ambos se encarassem diretamente. Os olhos cor de mel brilhavam e sua cor parecia mover-se como um pote cheio de ouro derretido. Os lábios do Guardião da Nuvem se entreabriram. Era difícil respirar com aquela proximidade. Seu corpo estava quente, seu rosto provavelmente queimava de rubor, mas ele não moveu um centímetro para se afastar. No fundo o louro queria saber até onde aquilo iria. A conversa trivial, os toques e principalmente os olhares.
Ivan aproximou-se devagar. Sua mão acariciou uma das bochechas de Alaudi e seus lábios proferiram algumas palavras. Os olhos azuis do Guardião da Nuvem se arregalaram momentaneamente, mas fecharam-se conforme o rosto do homem se tornava mais próximo.
Mentalmente a resposta para aquelas palavras ecoava como um mantra. Seu coração batia rápido, e quando finalmente o Chefe dos Cavallone o beijou, o salão começou a desaparecer. Alaudi fechou os olhos, correspondendo ao beijo enquanto sentia que em algum segundos os dois também desapareceriam. Era assim que acontecia com os sonhos e aquele não seria uma exceção. Suas mãos agarraram com certa força as vestes do homem, tentando permanecer o máximo possível naquela ilusão.
Quando o beijo terminou, o Guardião da Nuvem abriu os olhos devagar. O salão havia desaparecido como ele pensara, mas Ivan ainda estava ali. Sua mão tocava gentilmente o rosto de Alaudi, e os olhos cor de mel o encaravam com a mesma doçura. O louro ergueu sua mão, tocando o rosto do homem e sentindo-se extremamente feliz. Por semanas ele sentiu falta daquela companhia, de ter aquela pessoa ao seu lado mesmo que fosse por uma pequena parcela de tempo. Ivan fechou os olhos ao notar a mão em seu rosto, sorrindo largamente. Ver aquele sorriso quase fez com que o Guardião da Nuvem também sorrisse. Era automático. Assim como seus olhos, toda a figura do Chefe dos Cavallone parecia um raio de Sol.
"Você dormiu bem, Alaudi?"
A voz de Ivan saiu doce e baixa. Os olhos se abriram lentamente, fazendo com que o Guardião da Nuvem piscasse algumas vezes.
O louro retirou a mão rapidamente do rosto do Chefe dos Cavallone, olhando ao seu redor com certo assombro. Ele estava em seu quarto, ele tinha certeza disso. O pequeno cômodo que abrigava apenas uma cama de casal, um armário e uma cômoda. A janela estava aberta, e do lado de fora o Sol começava a se pôr, pintando o céu com tons fortes de laranja e amarelo.
"Você dormiu no carro enquanto eu dirigia. Eu tomei a liberdade de pegar suas chaves e o trouxe para dentro. Você dormiu praticamente o dia inteiro e eu não quis acordá-lo." O moreno levantou-se da beirada da cama. Ivan usava apenas uma calça negra e a camisa social branca.
"Você ficou aqui o tempo todo?" Alaudi tinha a voz baixa. Ele queria saber o que havia sido um sonho e o que fora real.
"Sim, eu usei sua cozinha e preparei algumas coisas, espero que não se importe." O Chefe dos Cavallone colocou as mãos na cintura. "Você deve estar com fome, eu vou terminar de preparar o jantar enquanto você toma um banho. Precisa de ajuda com alguma coisa?"
"Eu estou bem..." O Guardião da Nuvem sentou-se na beirada da cama. Sua cabeça estava levemente pesada, mas seu corpo parecia bem mais descansado.
"Então, com licença."
Ivan deixou o quarto com passos silenciosos, e o louro pôde finalmente respirar aliviado. Suas mãos tremiam, e ele ainda podia sentir em seus dedos o calor da pele do moreno. Os olhos azuis ergueram-se devagar, encarando a janela aberta. A brisa que entrava era fresca e agradável e parecia invadir todo o quarto. O cômodo tinha um cheiro diferente, e Alaudi sabia que se referia a colônia que Ivan usava.
Por alguns minutos ele permaneceu ali, sentado e respirando aquele ar, permitindo-se lembrar do sonho que tivera e da maneira como ele o fez sentir. Foi somente quando ouviu o barulho de algo caindo e quebrando na cozinha que o Guardião da Nuvem ficou finalmente de pé. A realidade o chamava.
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O louro foi responsável pelo preparo do jantar, já que o Chefe dos Cavallone não era tão organizado como aparentava. Ao deixar o quarto e entrar na cozinha, Alaudi juntou levemente as sobrancelhas, tentando ignorar a bagunça em cima da mesa e a quantidade de louça quebrada sobre a pia. Ivan desculpou-se uma infinidade de vezes, prometendo que pagaria por todo o estrago. Ao ouvir que sua cozinha havia sido "usada" o Guardião da Nuvem esperava encontrar o jantar pronto, o que lhe daria a chance de experimentar a comida do moreno. Encarando a tentativa de cozinhar jogada no lixo, o louro agradeceu mentalmente por saber se virar sozinho. Pelo menos eles não passariam fome.
O Chefe dos Cavallone ficou responsável por arrumar a cozinha enquanto Alaudi dirigiu-se ao banho. A casa em que morava era pequena, e os cômodos próximos, mas agradável. Não havia muita mobília, apenas o necessário para que um homem solteiro pudesse viver confortavelmente. O Guardião da Nuvem tomou um rápido banho, não querendo deixar sua visita esperando. O moreno estava sentado na mesa da cozinha quando o louro entrou, recebendo-o com um sorriso.
"Em que posso ajudar, Alaudi?" Ivan parecia animado agora que alguém sabia realmente cozinhar.
"Eu posso cozinhar sozinho." O Guardião da Nuvem abriu a despensa. Se ele soubesse que teria companhia suas reservas não estariam tão humildes.
"Permita-me ajudar, por favor." O Chefe dos Cavallone posicionou-se atrás do louro, enxergando além por ser mais alto. "Se precisar de qualquer ingrediente eu pedirei aos meus subordinados para providenciarem, então não se preocupe."
"Subordinados?"
Alaudi virou-se rápido, ficando levemente surpreso por ver o moreno tão próximo. Ivan tinha o mesmo sorriso indefeso nos lábios, o que fez o coração do jovem louro bater mais rápido.
"Meus subordinados estão lá embaixo, eles me seguem em todos os momentos. Meu braço direito está com eles. Não se preocupe, eu avisei que estaria aqui."
"Eu esqueci que você é supostamente importante." O Inspetor de Polícia voltou a dar as costas, concentrando-se na despensa. "Você já cozinhou alguma vez?"
"Claro!" Ivan respondeu com falsa naturalidade. Seus olhos cor de mel desviaram-se rapidamente quando o Guardião da Nuvem o encarou. Aqueles olhos profundos e azuis não deixariam que ele mentisse. "U-Uma vez... junto com o c-cozinheiro..."
O louro pegou com destreza um pacote de macarrão e uma lata de molho de tomate. Ele não tinha muitas opções, e mesmo que seu leque de escolhas fosse vasto, seria uma perda de tempo e energia tentar ensinar algo requintado ao Chefe dos Cavallone.
"Apenas observe."
Alaudi levou menos tempo do que o esperado para preparar o jantar. O molho mereceu um pouco mais de atenção, mas o tempo de preparado passou sem que ele percebesse. Ivan o questionou sobre os ingredientes, o tempo de preparo, produtos e qualquer tipo de informação que pudesse ser pertinente.
Quando os dois homens sentaram-se finalmente na pequena mesa de jantar, o Guardião da Nuvem sentiu-se levemente envergonhado. Os dois não tinham nenhum tipo de relação próxima, e aquele jantar informal não possuía explicação lógica. Aquela era a primeira vez que alguém o visitava em sua casa, com exceção de Giotto e seus Guardiões insuportáveis.
Um dos vinhos do louro foi aberto, e ao som de talheres o jantar transcorreu calmamente. O Chefe dos Cavallone elogiou os dotes culinários de sua companhia, desculpando-se mais uma vez pelo estrago que havia causado. A conversa morreu aos poucos até que nenhum deles conseguia proferir nenhuma palavra. O moreno ajudou na retirada da louça, e quando os dois homens estavam sozinhos na cozinha Ivan percebeu que era hora de ir embora.
"Eu passarei amanhã no escritório. Posso esperar seu turno terminar e podemos tomar um café. O que acha?"
O Guardião da Nuvem estava encostado na pia e seus olhos encaravam o chão. A realidade o puxava com tanta força que era difícil até mesmo permanecer em pé. Os minutos que passou ao lado daquele homem pareciam parte de um sonho.
"Apareça no horário de trabalho. Você disse que tem algo que merece minha atenção, então vou avaliar se cuidarei do caso ou encaminharei à outra pessoa." Alaudi respondeu sério, seus pés moveram-se na direção da porta da cozinha, mostrando que ele acompanharia sua visita até a saída.
"Achei que pudéssemos nos ver no final do dia..." O moreno coçou a nuca, desviando os olhos. Seu rosto estava levemente vermelho e aquele era um dos raros momentos em que as palavras lhe faltavam.
"Eu não falo sobre trabalho fora do horário de trabalho."
O louro colocou um ponto final na conversa, deixando a cozinha e ganhando o corredor. Ivan o seguiu em silêncio, e os dois desceram os pequenos degraus que levavam da sala até o portão de entrada e consequentemente à calçada. A rua era cheia de casas semelhantes, formando um quarteirão praticamente igual.
Havia um belo carro negro em frente ao seu portão de entrada, e o homem que estava no banco do motorista parecia um senhor de meia idade que usava óculos escuros. Ao seu lado estava um homem bem mais jovem cujos cabelos ruivos pendiam até a altura de seus ombros.
"Obrigado pela ajuda. Não se preocupe com os pratos." O louro fez uma leve reverência com a cabeça quando o Chefe dos Cavallone parou ao seu lado.
"Eu realmente me diverti, Alaudi." O moreno recolocou o sobretudo, acenando na direção do motorista do carro. "Sobre amanhã, aparecerei no final do dia e não aceitarei não como resposta. Quero levá-lo a um delicioso Café para me redimir pelo seu jogo de louça quebrado.
"Não é necessário." O Guardião da Nuvem respondeu baixo. Ele não havia atravessado o portão e lentamente seus pés se afastavam.
Alaudi deu as costas e começou a subir a curta escadaria. Seus pés alcançaram o terceiro degrau, e então seu corpo virou-se quando seu braço sentiu-se puxado. Ivan havia se inclinado no portão, e sua mão segurava a do louro, fazendo com que eles se olhassem.
Havia surpresa nos olhos azuis do Inspetor de Polícia e eles não conseguiram capturar quais sentimentos os olhos do Chefe dos Cavallone transmitiam. Eles estavam arregalados e incertos, brilhantes e curiosos.
"E-Eu sinto muito por ter desaparecido sem avisar." Ivan tinha a voz baixa. Seus lábios moviam-se depressa, como se a informação precisasse ser transmitida o quanto antes ou acabaria se perdendo. "Eu cheguei essa manhã e corri para vê-lo. Achei que o encontraria chegando ao trabalho e que poderíamos tomar café juntos. Eu realmente sinto muito, Alaudi.
O Guardião da Nuvem não sabia como conseguia manter as pernas firmes e responsáveis por sustentar o peso de seu corpo. Seu coração batia tão rápido que chegava a doer. As palavras do Chefe dos Cavallone cantavam em seus ouvidos, fazendo-o lembrar-se do sonho que tivera durante aquele dia.
Por três longas semanas ele esperou por aquele homem. Todos os dias, todos os momentos. Quando a porta de seu escritório era aberta, uma parte do Inspetor de Polícia esperava ver o amigável sorriso e o belo rosto do moreno. Entretanto, esse tempo também serviu para alertá-lo sobre o que poderia acontecer se ele se permitisse continuar com aquela situação. As visitas de Ivan, os sorrisos, as conversas... não havia motivo real para que aquele homem o visitasse com tanta frequência. Os Cavallone eram aliados dos Vongola, mas aquilo fazia pouca diferença para Alaudi.
E quanto mais pensava nos reais motivos por trás daquela estranha amizade mais desconfiado o Guardião da Nuvem se tornava. Uma pessoa com aquelas qualidades e posição social não deveria ter nenhum tipo de interesse em alguém como ele, um solitário e reservado homem de vinte e cinco anos cujo único mérito e orgulho eram sua posição profissional. Não havia nada extraordinário no louro além de sua força, e ele sabia disso melhor do que ninguém.
Então, por quê? Por que aquele homem o procurou novamente depois do baile? Por que ele se explicava e se desculpava quando não havia nada a ser explicado ou desculpado? E principalmente, por que o próprio Alaudi se importava com tudo aquilo? Os dias de ausência, a falta que sentiu dos monólogos de Ivan, a maneira como seu coração sorriu ao revê-lo depois de todos aqueles dias; sem falar na surpresa ao encontrá-lo na beirada da cama quando abriu os olhos... Havia muito mais do que uma tentativa vaga de amizade.
E o Guardião da Nuvem não tinha amigos.
O louro entreabriu os lábios para responder, mas o Chefe dos Cavallone foi mais rápido. O moreno soltou a mão que estava entre seus dedos e deu um passo para trás, acenando e despedindo-se conforme andava na direção do carro. Os segundos que Alaudi gastou pensando em seu dilema pessoal o deixaram sem palavras, e tudo o que ele fez foi assistir ao animado e sorridente homem entrar no carro e partir, incapaz de fazer ou dizer qualquer coisa. O barulho do veículo tornou-se cada vez mais baixo, até desaparecer por completo.
O céu já estava totalmente escuro, e havia uma porção de pequeninas e brilhantes estrelas no céu. Respirando fundo, o Guardião da Nuvem voltou a subir a escada, entrando e trancando a porta. A casa parecia maior, como se da noite para o dia ela tivesse se tornado duas vezes mais espaçosa.
Alaudi aproximou-se da mesa de jantar, tocando com a ponta dos dedos o alto da cadeira em que Ivan havia se sentado. A madeira era escura, assim como os cabelos do Chefe da Família Cavallone. Por alguns minutos ele não fez nada além de permanecer no mesmo local, enchendo sua mente com lembranças e pensamentos. As imagens de seu sonho pareciam ainda mais vívidas, e quanto mais relembrava mais vermelho seu rosto se tornava.
Aquele tipo de coisa não era de seu feitio. O Guardião da Nuvem não era uma pessoa que se permitia pensar e sonhar com romances ou pensamentos carnais. Ele nunca possuiu segundas intenções a respeito de ninguém, até porque as pessoas em geral o aborreciam. O louro já havia aceitado o destino de que ficaria sozinho até o fim de seus dias, pois duvidava que encontraria alguém que pudesse chamar sua atenção. Alaudi sempre caminhou em uma multidão sem rostos.
Entretanto, como explicar a presença de Ivan? Como negar as estranhas sensações que aquele homem o fazia sentir? Homem, sim. Se não bastasse a ideia de outro ser humano despertar sua curiosidade, o Guardião da Nuvem ainda precisava lembrar que a outra parte era tão homem quanto ele.
O Inspetor de Polícia respirou fundo, caminhando na direção do quarto. Ele não achava que as coisas se tornariam mais fáceis se o Chefe dos Cavallone fosse uma mulher, e o mais estranho era que esse detalhe não o incomodava. Deitando-se novamente na cama, o louro fechou os olhos e deixou o ar entrar e sair por seus pulmões. A janela estava entreaberta, e mesmo a brisa noturna não era capaz de ventilar todo o quarto. O cheiro da colônia do moreno ainda inundava cada pedaço do local, fazendo com que Alaudi ficasse cada vez mais relaxado, exatamente como ele se sentiu quando se sentou no assento do carro pela manhã.
Aqueles sentimentos deveriam estar causando uma guerra interna, mas tudo o que ele sentia era calma e tranquilidade. No fundo o Guardião da Nuvem sabia que não deveria esperar nada, e que a certeza de que seu sonho jamais se tornaria realidade o permitia relembrar cada detalhe sem medo ou pudores.
Ivan provavelmente tinha algum interesse profissional em sua pessoa. Isso explicaria as visitas anteriores, e principalmente o encontro que aconteceria no dia seguinte. Sem perceber, o Inspetor de Polícia acabou adormecendo, perdido em pensamentos e lembranças.
Naquela noite Alaudi sonhou novamente, porém, dessa vez ele estava caminhando sozinho pelo mesmo salão. Não havia pessoas e o salão chegou ao fim após muito tempo de caminhada. Havia duas grandes portas diante de seus olhos, mas nenhuma delas mostrava a saída. O Guardião da Nuvem passou alguns segundos analisando ambas, até decidir optar pela direita. As cores, a madeira e principalmente a maçaneta o lembraram da porta de seu próprio quarto, que remeteu a uma lembrança de algo conhecido e seguro.
Entretanto, por um breve momento ele se sentiu tentado a abrir a outra porta, a da esquerda. Suas cores eram diferentes e ela parecia nova. Todavia, tudo o que o louro conseguiu fazer foi lançar um rápido olhar na outra direção antes de abrir a porta escolhida. O que havia além não o surpreendeu: era o nada. As pessoas do salão desapareceram, assim como o barulho e as risadas. Dentro da porta só havia o silêncio e a paz de espírito que ele tanto conhecia.
Alaudi abaixou os olhos e continuou a andar. Ele nunca saberia o que se escondia atrás da outra porta.
Continua...
