Mu adentrou o templo com pesar. As paredes que povoavam seus pesadelos agora apenas pareciam vazias; o cavaleiro de Áries por muitos anos tentou esquecer tudo o que aquele templo começou, mas se descobriu fraco, e novamente cambaleava por seus corredores. Dessa vez, por um motivo diferente. Se fechasse os olhos, conseguia sentir o cheiro de sangue, ainda que sangue jamais tivesse tocado aquele chão.
Cada parede daquele templo estava impressa em sua memória, portanto, Mu não precisaria abrir os olhos para encarar a que estava bem a sua frente... mas o fez.
τα παιδια ηρθαν εδο
αφηνο την Αθηνα σε σενα
ΑΙΟΡΟΣ
Sob seus pés estava o local em que suas lágrimas caíram da primeira vez que leu a mensagem, em um momento do passado muito parecido com o seu presente. Dessa vez, seus olhos estavam secos. Mu tocou a mensagem, sem saber se o fazia por admirar a fé de Aiolos ou seu otimismo, ambos muito além de seu alcance.
Com um suspiro, Mu se afastou da mensagem e continuou seu caminho através do templo. Uma voz o chamou, vindo das escadarias abaixo, mas Mu não deu atenção, sequer a reconheceu, tampouco se importou, ou simplesmente não quis.
Atena estava agora em seus pensamentos. Mu não a via desde o banquete, e mesmo nele a deusa lembrava uma sombra. Sua expressão determinada era agora uma máscara tão frágil quanto as de suas amazonas, suas palavras tão vazias quanto as professadas por ele próprio quando ainda em Jamir, ou talvez mesmo agora. Seu infinito cosmo não mais permeava a atmosfera do Santuário, e mais do que qualquer outro, Mu entendia o porquê.
Durante algumas horas, a guerra de Atena foi também a sua. Mu era dotado de grande poder e sabedoria, passados para ele por Shion. Mas seu mestre nunca conseguiu imbuir nele a coragem e determinação necessárias para um cavaleiro de Atena. Tais qualidades surgiram em seu coração apenas durante a guerra contra os Espectros, tal como a menina Saori Kido se tornou verdadeiramente a deusa Atena e os liderou à vitória.
Mu a respeitou, então. Encontrou dentro de si aquilo que faltava.
Sim... Por algumas horas, tudo esteve em seu devido lugar: cavaleiros de Ouro, Prata e Bronze lutando lado a lado, não uns contra os outros. Aiolos teve seu desejo realizado, então.
Mu continuava subindo os degraus. Fez menção de levantar a capa, para que ela não se derramasse sobre as marcas da batalha., mas ela não estava lá. Riu baixo. É claro que não estava.
Poucos cavaleiros perderam a vida durante a batalha. Embora a deusa não estivesse ao lado deles, todos sabiam que também estava batalhando, e isso lhes dava força. Juntos, puderam superar a barreira de Hades e derrotar Radamanthys de Wyvern, que com suas últimas forças mandou a todos para o mundo dos mortos, onde a guerra prosseguiu.
Uma vez no submundo, as coisas foram diferentes. Separados, os cavaleiros de Prata e Bronze não gozavam de tanto poder, e acabaram descobrindo que nem sempre esforço e determinação resultam em vitória, uma lição todos os outros viriam a aprender.
Diante do Muro das Lamentações, tudo parecia perdido.
Mu olhou para trás. A visão imponente do Santuário se entendia montanha abaixo, mas os reparos ainda não estavam terminados, e talvez nunca estivessem. Poucos soldados restavam.
Pouco parecia importar; o que era o Santuário se não o palco de intermináveis batalhas?
De súbito, Mu compreendeu o motivo de Atena não mais se apresentar como uma deusa da guerra. Seus ideais de amor e paz haviam lhe parecido infantis no passado, mas agora ele se perguntava: quem, além dela, chora por aqueles que caíram?
Mu passou pelos templos de Capricórnio e Aquário, ambos vazios, ambos parte da tragédia que iniciou tudo. De acordo com os soldados que protegiam as escadarias, Aiolos passou algum tempo em Aquário antes de partir para o seu fim nas mãos de Shura... Era o suficiente para deixar a mente de Mu inquieta. Poderia o cavaleiro de Aquário ter suspeitado?
Suas caminhadas escadaria acima eram quietas e inquietas. Ouvia vozes ecoando nas montanhas, sentia presenças que não pertenciam ao mundo dos vivos. Em todas as vezes que subiu as escadarias em tempos de paz, encontrou todos os templos sem seus guardiões, mas nunca vazios. Dessa vez, o medo não mais fazia parte de seu coração; fora substituído pelo desespero, e talvez por isso sua visita estivesse sendo tão serena.
Kiki certa vez contou ao mestre que temia subir as escadarias. Mu o encarou, viu que os olhos de seu aprendiz estavam em suas memórias, e perguntou se era templo de Câncer que o assustava. Kiki respondeu que não, e apontou para os desfiladeiro em frente a torre.
Mu compreendeu , então, que subir as escadarias do Santuário era como atravessar aquele desfiladeiro — mas sem a névoa para ocultar os céus e o perigo.
Peixes. Mu pouco lembrava de seu cavaleiro, a não ser memórias antigas e apagadas de uma amizade que não conseguiu ser. Mu andou o mais rápido que conseguiu, impaciente para deixar para trás o cheiro de sangue que estava em cada corredor; a água que escorria das paredes era prístina, reluzente, mas os olhos de Mu viam apenas o vermelho, e o aroma ficava ainda mais forte conforme prosseguia. Porém, ao chegar no salão final, Mu teve uma surpresa.
Rosas. Rosas no chão, nas paredes e nas águas. Rosas brancas e vermelhas ocupando cada canto do salão. Mu fez menção de erguer a sua parede, mas algo o impediu: o cheiro de sangue não mais estava presente. De fato, o aroma que sentia agora era o das rosas, e os sons eram o da água escorrendo. Mu se ajoelhou perante aquela cena, e as memórias bombardearam sua mente como nunca antes.
Shaka tentava desesperadamente abrir um caminho no Muro das Lamentações. Suas mãos sangravam, seu cosmo estava esgotado. Seu poder como o homem mais próximo dos deuses era uma piada, e o cavaleiro de Virgem dançava agora na palma da mão de Buda.
Mu se aproximou, entre o alívio e o desespero. Devolveu o rosário, que havia ficado no mundo dos vivos, e palavras não foram necessárias. Destruir o muro continuava a ser um problema, pois Atena certamente precisaria do auxílio de seus leais cavaleiros. Porém, mesmo o poder combinado de todos os cavaleiros de Ouro com as armas de Libra não foi suficiente.
Até que as armaduras de seus companheiros caídos surgiram. Com o poder combinado das doze armaduras de Ouro, era possível abrir uma fenda no Muro das Lamentações, e o preço a pagar era suas vidas. Mu estava satisfeito. Seu fim seria ao lado de seus companheiros e um golpe decisivo contra Hades. Seu cosmo se ergueu, e o brilho dourados das armaduras preencheu o lugar; a flecha de Aiolos estava pronta... mas houve um segundo brilho, um brilho branco e puro, e era tarde demais para fazer qualquer coisa.
Mu despertou ao lado de Shaka; chovia estrelas douradas sobre seus corpos. Mu tentava se mover, sem sucesso. Shaka continuava desmaiado.
Ambos estavam vivos.
Vários de seus companheiros estavam caídos ao redor do Muro das Lamentações, a maioria de olhos fechados, mas respirando. Dohko estava desperto, encarando o grande obstáculo que deveriam ter se sacrificado para destruir. Mu fez o mesmo, e se deparou com uma enorme fenda. Mu olhou novamente ao redor e viu... apenas... cavaleiros de Ouro.
Atena surgiu pela fenda no Muro das Lamentações, alta em imponente em sua armadura divina, mas sua expressão trazia tristeza profunda, e em seus braços ela carregava o que parecia ser um corpo. Mu nada disse, mas Atena dirigiu a ele o mais breve dos olhares.
Ao serem tocados pelo cosmo de Atena, todos os cavaleiros de Ouro restantes recuperaram parte de sua força. Mu se ergueu de imediato. Durante o caminho, nenhuma palavra foi dita. Atena carregava o corpo de Seiya, e o restante estava para sempre perdido além do Muro das Lamentações... uma gigantesca perda, mas nada comparado ao que vimos ao chegar no Santuário. Marin, uma outra garota parecida com ela, e Kiki.
Cada um deles, morto.
Mu deixou que suas lágrimas caíssem sobre as pétalas das rosas, e viu que elas mudavam de cor com o contato. Ao anoitecer, todas as rosas estavam azuis.
「 Para minha preciosa amiga, Mesarthim.
Que possamos continuar amigos por toda a eternidade. 」
— Allec Ribeiro
