Capítulo Um
Verão de 889 D.C.
Décimo primeiro ano do reinado de
Alfred de Wessex,
Mércia.
Venn ap Griffin, príncipe de Leam, seguiu silenciosamente a irmã pela trilha que subia para o mirante das Sete Irmãs, de onde se descortinava o vale de Avon. As rochas se projetavam para fora da terra, na extremidade da floresta. Nem ele nem a irmã, Virna, podiam decifrar os símbolos do alfabeto ogham entalhados nas pedras, embora estivessem bastante familiarizados com o latim das abadias e do tribunal de seu primo e guardião, o rei Alfred.
Venn fez um gesto para Virna, instando que saltasse para a plataforma mais alta. Ela estendeu-se sobre a pedra aquecida pelo sol e puxou o manto sobre os cabelos cor de fogo, para ocultá-los. Bem abaixo, a floresta terminava na confluência dos rios Avon e o poeirento Leam.
Naquela época do ano, o Leam deveria fluir profundo e ligeiro, alimentando o Avon. Mas nenhuma chuva caíra desde Beltane, em primeiro de maio. Os deuses estavam infelizes e a terra, em tumulto. Os velhos espíritos lutavam contra os novos para decidir quem dominaria o mundo dos homens. As pessoas, confusas, não sabiam a quem dirigir suas súplicas para abrandar tão amarga seca.
Diga-me, irmãozinho, que preço você pediu por Taliesin, o Branco, no mercado de Warwick? Virna rompeu o silêncio depois de se acomodar na pedra.
Taliesin é um cavalo valioso, cheio de espírito e coragem. Eu pedi cem marcos de ouro, mas um dinamarquês quis roubar-me, oferecendo vinte e seis míseros sacos de grãos mofados do ano passado.
Seis sacos de grãos já seria muito. Virna estudou o perfil de Venn, que esquadrinhava atentamente o ressequido vale.
Pelo que conheço dos viquingues, talvez me pagassem com seis sacos de pedras Venn replicou desdenhosamente. Eu não queria ser enganado nem fazer um mau negócio.
Ah, entendo. Virna balançou a cabeça. O irmão prezava o cavalo branco e não queria realmente vendê-lo.
Mas não haverá problema algum. Eu posso levá-lo para pastar no campo mais distante.
Cavalos fortes comem aveia e grama Virna ponderou , como as vacas e as ovelhas. Eles não querem folhas secas de carvalho e samambaia. Nós não teremos como mantê-lo se a seca continuar.
Eu sei o que fazer para acabar com a seca Venn retrucou.
Virna lançou um olhar arguto ao perfil bem talhado do irmão. Venn não passava de um menino, e se deixava influenciar com facilidade pelos velhos da floresta de Arden.
Eu não quero que você dê ouvidos ao que Tegwin diz. Não acredite em suas profecias tolas, meu querido.
Esse é um assunto para homens o rapaz rebateu em tom peremptório. Portanto, não é da conta das mulheres.
Queira desculpar-me, alteza. Virna franziu o cenho, o que tinha o poder de acabar com a arrogância de seu jovem irmão. Você fará o que eu mandar Venn ap Griffin!
Está bem, está bem o rapazinho aquiesceu, acenando com a mão com impaciência para apaziguá-la. Olhe para este lado do rio Avon, Virna. Eu a trouxe aqui para que visse isso.
Entre o rio modorrento e o curso ressequido do Leam, uma dúzia de viquingues trabalhava, guiando bois e arados, traçando sulcos na terra. Alguns retiravam as cascas das toras obtidas de uma árvore derrubada. Outros cuidavam do fogo de uma enorme fogueira, queimando folhas secas e galhos.
A fumaça proveniente da fogueira recendia a tanino e, como uma imensa pluma negra, estendia-se para o céu, onde assumia o contorno de um bando de abutres.
Venn estendeu-se ao lado da irmã sem se dar ao trabalho de cobrir a cabeça. Seus cabelos castanhos, a pele bronzeada, o colete de couro, tudo se mimetizava nas cores neutras das rochas. Só os tons rubros dos cabelos de Virna e o brilho dourado da reluzente gargantilha que lhe adornava o pescoço esbelto precisavam ser escondidos naquela paisagem.
Virna inspecionou superficialmente o vale, desde a alta paliçada que dominava a colina de Warnick até os limites do fértil vale. Duas antigas estradas romanas se entrecruzavam no vale, a Fosse Way e a Watling Street. Warnick exercia controle sobre ambas, bem como sobre a ponte do rio Avon. Cada pedaço de terra fora da floresta de Arden fora transformado pelos usurpadores viquingues em campos cultivados.
Na verdade, a própria floresta se reduzia cada vez mais, porque os viquingues constantemente cortavam e queimavam árvores para ampliar o espaço destinado à plantação. Assim, onde havia um bosque de carvalhos num dia, no outro se encontrava uma área de cultivo.
Perto dos campos ficavam seus alojamentos comunais, cada um formado por incontáveis casebres de taipa. Eles proliferavam como fungos venenosos nos troncos dos carvalhos sagrados, em anos chuvosos.
Virna detectava muitas diferenças entre a paisagem diante de seus olhos e a que observara no dia primeiro de maio. Nem uma gota de chuva havia caído naqueles dois meses, e, em conseqüência, a terra estava crestada e o rio Avon, abaixo do nível, fluindo morosamente.
O que me queria mostrar irmãozinho?
Eles derrubaram os carvalhos neste lado do Leam. O garoto apontou a nova região desflorestada.
Não! Ela protestou num murmúrio. Não podem fazer isso. A Watling Street, no norte do Avon, é a fronteira. Eles não têm permissão para destruir o nosso bosque. É uma desobediência às leis de dois reis.
Por acaso os dinamarqueses se importam com as leis de Wessex? Não vejo nenhum dos homens do rei Alfred ordenando aos viquingues que fiquem do seu lado da Watling Street Venn zombou. Esses invasores não pararão até alcançarem o mar, em Glamorgan.
Maldita Embla! Virna cerrou o punho e bateu-o contra a pedra. Alguém precisa detê-la!
Quem? Não você. Muito menos eu.
Virna não podia soerguer-se sem correr o risco de ser vista pelos viquingues que trabalhavam nos dois lados do rio. Ela desejava de todo coração, proteger o irmão contra todos os perigos que o rondavam.
Eu posso e vou, de alguma forma! Jurou.
Psiu! Venn pediu-lhe silêncio. Cavaleiros aproximavam-se a galope pela Fosse Way.
Não faça "psiu" para mim Virna ralhou, aquietando-se mesmo assim.
Embla está cada dia mais afetada o irmão comentou ciente do ódio havia muito existente entre Virna e sua adversária. Agora, aonde quer que vá, obriga um menino viquingue a levar seu estandarte na frente. Ele puxou o arco que trazia no ombro e retirou uma flecha da aljava. Morro de vontade de furar-lhe as vestes.
Espere — Virna ordenou, pousando a mão em seu pulso quando já ajustava a corda do arco. Abaixo deles, a Fosse Way se estendia ao longo do vale do Avon. Só a copa dos carvalhos impedia os irmãos de serem vistos por Embla Garganta de Prata e seu séqüito de guerreiros, que galopavam trilha acima. Vejamos quem é que ela vai saudar. Olhe quantos cavaleiros! De onde acha que eles vêm?
Anglia oriental, a julgar pela cor do pó em suas montarias Venn sussurrou com redobrada cautela, pois o som se propagava com facilidade pelas árvores.
Ambos escutaram o clangor das ferraduras dos cavalos que se aproximavam. Embla e seu porta-estandarte cavalgavam ao encontro deles. A bandeira de Embla recusava-se a tremular no ar parado e poeirento. O calor feroz abatia o tecido do mesmo modo como submetia as pessoas a uma letárgica exaustão. O suor escorria por entre os seios de Virna, que girou a cabeça e aguçou os ouvidos para acompanhar os cumprimentos trocados pelos dinamarqueses.
Por todas as oferendas em ouro lançadas ao fundo do sagrado Leam! Venn espantou-se. Olhe só o tamanho daquela comitiva! Mais colonos, sem dúvida.
Atônita, Virna contou o número de carroças que seguiam atrás dos cavaleiros. Havia também uma enorme quantidade de bestas de carga e de escravos, puxando trenós atulhados de caixas e pacotes.
Jamais presenciara um espetáculo como aquele! Nem mesmo o rei Alfred trazia uma comitiva tão numerosa e rica em sua visita anual à fronteira.
Perto do topo da colina, surgiram liteiras forradas de seda colorida e crajevadas de jóias, transportadas por dúzias de escravos. Algumas mulheres espiavam por entre o cortinado, ostentando diademas e gargantilhas deslumbrantes.
O séqüito de Embla, composto de seis cavaleiros, parou diante da majestosa procissão. Os viquingues recém-chegados haviam despido os mantos por causa do calor, apresentando uma verdadeira exibição de braços e troncos bronzeados e brilhantes de suor.
Até mesmo Embla se havia desvencilhado do manto guarnecido de arminho com que desfilava noite e dia, como se fosse um distintivo de sua posição social, esposa do sobrinho do rei de Danelaw. Mas o elmo de plumas ela conservou, a despeito da temperatura opressiva.
Quando a duas comitivas se encontraram na estrada, Embla sacou a espada e tocou o escudo polido, produzindo um ruído metálico. Suas palavras de saudação, contudo, perderam-se sob o retinir de cinco outras espadas de bronze.
Ela desmontou, seguindo o exemplo do cavaleiro que liderava o séqüito. O recém-chegado estendeu a mão em cumprimento. Embla segurou-lhe o braço numa familiar saudação viquingue e, então, maravilha das maravilhas, pousou o joelho no chão, tirou o elmo e curvou a cabeça dourada perante o homem.
Quem é ele? Venn indagou perplexo por ver Embla Garganta de Prata curvar-se diante do forasteiro. Será que é um rei?
Igualmente surpresa, Virna sacudiu a cabeça.
Não faço a menor idéia. Seus olhos não se despregavam do homem alto e moreno, de cabelos escuros, que se destacava acima de Embla. Aros de ouro rodeavam-lhe os braços nus. Dois broches coruscantes prendiam-lhe o manto nos suspensórios de couro que lhe cruzavam o peito forte. Ele era tão trigueiro quanto Embla era loira, e sua pele cintilava como se fosse feita de carvalho dourado polido. Não é ninguém que eu tenha visto na corte do rei Guthrum.
Ao lado dele, caminhava um homem mais escuro que o precioso ébano, envolto da cabeça aos pés em linho branco, que varria o pó da Fosse Way.
Virna pousou a mão em concha sobre as sobrancelhas, incapaz de compreender o que via.
Será que são romanos? Indagou, sentindo o sangue acelerar-se nas veias ao contemplar o belo homem vestido em trajes viquingues.
Vamos descobrir. Venn apressou-se a guardar a flecha, recolocando o arco no ombro. Deslizou para baixo da rocha e estendeu a mão para ajudar a irmã a descer.
Tomada da mesma curiosidade, Virna balançou a cabeça em aquiescência e apertou o cinturão sobre o manto curto.
Vamos! Eu o levarei até o carvalho do rei Olfa.
