VIDAS E ESPÍRITOS
* 1 *
Alcançar o flat acima era uma tarefa árdua para seu corpo dolorido, mas Legolas precisava ficar num lugar seguro agora que a noite se aproximava. Um frio correu-lhe a espinha. A temperatura não o incomodava, como a nenhum outro elfo, mas o frio que ele sentia era o frio da solidão, e esse frio o incomodava muito.
Deixou cair o corpo cansado no chão duro de madeira do flat e tentou fechar os olhos e o coração por alguns instantes, em busca de um momento de paz que lhe trouxesse o sono. Mas a paz não lhe sorria há muito tempo e, conforme os dias se passavam, esse tão desejado sentimento parecia escapulir por entre as árvores da Terra Média, como mais um elfo tentando escapar até os Portos Cinzentos para sua última viagem.
O jovem então se permitiu saborear algumas boas recordações que tinha guardado cuidadosamente em seu coração, tentando afastar a tristeza. Momentos felizes com seus amigos Elrohir e Elladan vieram a sua mente. Os filhos de Lorde Elrond pareciam viver com o objetivo de encontrar algo no dia a dia que lhes fizessem sorrir. A alegria deles era contagiante e muitas vezes fora um verdadeiro remédio para seus momentos de aflição.
Mas era impossível se lembrar dos gêmeos sem se lembrar do irmão humano que eles possuíam e a quem todos adoravam: Estel... A saudade doía muito mais quando a imagem do amigo surgia em sua mente. O destino pode ser cruel durante muito tempo e separar aqueles que se querem bem sem aviso ou razão.
Nesse momento Legolas finalmente percebeu o quanto sua vida havia se tornado insuportável, pois até as boas recordações estavam se transformando em cenas angustiantes. Apertando os olhos e sacudindo de leve a cabeça ele tentou dispersar as imagens que havia formado em sua mente. Por que afinal ele ainda estava tentando? Essa era a questão diária de sua vida. O que o movia a encarar aquela rotina massacrante na qual ele fora jogado e da qual não havia esperanças de escapar?
Envolto nesses questionamentos que não o abandonavam um instante sequer, ele foi despertado por um som assustador que parecia vindo de algum lugar próximo. O barulho jogou adrenalina em seu sangue e o colocou de pé em menos de um segundo. Esticando o corpo e apertando os olhos contra a luz do entardecer o jovem príncipe procurava distinguir as imagens que via a alguns metros de distância. Foi quando ele percebeu a situação. Um elfo sozinho enfrentava bravamente mais de quinze orcs. Legolas não pensou duas vezes. Esqueceu as dores que sentia e, agarrando arco, flecha e adagas, partiu para auxiliar o desconhecido.
Conseguiu atingir muitos inimigos de longe, mas suas flechas não foram suficientes para todos e não restou escolha senão a luta corporal. Quando chegou perto do lugar do conflito Legolas percebeu que o elfo a quem ele tentava auxiliar estava preso embaixo de uma árvore caída e não conseguia mais se defender. "Covardia" – ele pensou revoltado. "Próprio dessa raça nojenta!".
Irado pela cena cruel e desigual que se armava no conflito, o jovem elfo muniu-se de mais confiança para enfrentar os inimigos que ainda eram muitos. Infelizmente seus movimentos não eram tão rápidos e precisos como quando seu corpo estava são e ele acabou sendo atingido de raspão por uma das espadas que vinham em sua direção. O conflito alcançou dimensões alarmantes e o príncipe chegou a pensar que não conseguiria dar conta de todos os inimigos, mas a sorte mostrou-se favorável e todos acabaram vencidos no chão.
Pressionando o ferimento com uma das mãos Legolas aproximou-se para tentar saber quais eram as condições do elfo preso por sob a árvore e surpreendeu-se em ver um rosto amigo.
"Lorde Elrond?"
O elfo mais velho sorriu como se não estivesse surpreso em descobrir a identidade de seu salvador.
"Saudações, jovem Legolas! Bons ventos o trouxeram até mim nessa tarde sombria."
A voz musical daquele poderoso elfo trouxe uma alegria indescritível ao coração do príncipe. Seus lábios se curvaram num sorriso, mas logo suas feições mudaram para o estremo oposto.
"Está ferido, meu senhor?" Ele perguntou preocupado.
O rosto sereno de Elrond não parecia demonstrar dor alguma. O curador voltou a sorrir ao perceber a inquietação na voz do jovem amigo.
"Minha auto-estima, talvez." Ele suspirou "Nah, estou bem, mas estou preso e não consigo erguer essa pobre amiga." Suas mãos moviam-se como se tentassem encontrar um apoio qualquer para erguer o tronco.
Legolas olhou a sua volta pensativo. Temia que fossem surpreendidos por mais um grupo de orcs que pareciam ter infestado a região como uma praga que se multiplicava diariamente. Seu coração não havia desacelerado o compasso ainda, mas ele já começava a sentir a fraqueza característica de quem está perdendo sangue muito rapidamente.
"Lorde Elrond," disse num suspiro, "acredito que meu amigo Ohtar possa nos ajudar... Ele atende a um silvo longo e não está muito longe daqui, eu suponho. O senhor acha que pode chamá-lo?"
Elrond franziu as sobrancelhas questionando-se sobre o que impedia o rapaz de chamar seu próprio cavalo. Mas, ao aquietar seu coração, o experiente curador pode constatar pelas feições do jovem elfo que ele estava escondendo alguma dor latente.
O dócil animal atendeu ao chamado imediatamente e logo surgiu encostando o focinho nas costas de Legolas. O rapaz acariciou o cavalo com alegria e, amarrando uma corda na árvore, laçando-a num galho forte acima e prendendo a outra ponta no amigo eqüino, iniciou seu plano para libertar Elrond.
"Quando a árvore se mover, meu senhor, procure sair rapidamente, pois não sei quanto tempo essa corda pode agüentar".
O outro elfo acenou a cabeça e concentrou-se em ajudar no que fosse preciso.
Legolas cambaleou um pouco puxando o animal para que executasse a tarefa que o mesmo não entendia. Dizendo palavras de incentivo ele conseguiu fazer com que o cavalo se movesse e erguesse o tronco o suficiente para que Elrond libertasse a perna presa. O elfo moveu-se graciosamente e em poucos instantes estava de pé acenando para que o animal fosse então poupado de um esforço desnecessário. Legolas sorriu aliviado ao ver que o amigo não estava realmente machucado, mas não teve forças para aproximar-se novamente dele. Suas pernas fraquejaram desobedientemente e ele foi obrigado a se ajoelhar para não cair. Elrond veio então em seu socorro. Com um ar preocupado ele vistoriou o jovem amigo a procura do ferimento.
"Vai ficar tudo bem, filho".Sua voz encorajadora afirmou suavemente. "Eu lamento tê-lo colocado em tal situação".
Legolas não respondeu, limitando-se a abanar a cabeça assegurando ao curador que não havia porquê para lamentações. Seu rosto contorcia-se conforme Elrond ministrava algumas de suas ervas no corte aberto. Por sorte, o experiente profissional nunca deixava de carregar os bálsamos que conhecia tão bem. Por fim Elrond rasgou um pedaço de sua túnica e embalou a ferida provisoriamente.
"Infelizmente não posso dar-lhe nada para fazê-lo dormir, meu jovem amigo. Embora essa fosse minha vontade".Disse ele sem erguer o olhar. "É um caminho longo até Rivendell e depois do ataque estou sem montaria, portanto acredito que devemos cavalgar ambos em seu amigo Ohtar".
Legolas buscou um pouco de fôlego e tentou argumentar. Mas a dor era muito forte e ele ainda estava tentando assimilá-la. Fechou os olhos e depois os abriu novamente numa segunda tentativa. Elrond percebeu que uma tristeza tomou conta do rosto do rapaz.
"Ohtar leva o senhor, Lorde Elrond. Eu preciso ficar aqui. Eu só peço que o senhor o alimente e o deixe descansar por essa noite. Amanhã, se o soltar ele voltará até aqui. Ele conhece bem o caminho."
Elrond franziu novamente as sobrancelhas e colocou uma das mãos na testa do rapaz para verificar-lhe a temperatura. Estava baixa para um delírio daqueles.
"Ficar aqui?" Ele forçou-se a repetir o desatino do jovem amigo com descrença.
Legolas ofereceu-lhe um leve movimento com a cabeça como confirmação, poupando-se do esforço de falar. Mas ele sabia que se pretendia convencer o senhor dos elfos a deixá-lo só numa situação daquelas, ele precisaria de muito mais energia do que dispunha. Ele tinha dois caminhos a seguir: Não se estender mais no assunto evitando qualquer explicação ou mentir, e o segundo caminho era um no qual ele não sabia trilhar. Mas, pelo que ele pode perceber observando a expressão no rosto do curador, a primeira hipótese já podia ser descartada sem nenhuma tentativa. O que lhe obrigava a partir para a segunda.
"Meus... amigos... vão voltar..." ele balbuciou quase para si mesmo. "Se o senhor... puder me deixar perto... daquela árvore grande onde... está... meu abrigo eu ficarei bem".
Elrond não desviou o olhar e continuo encarando o amigo em silêncio.
"Por... favor..." Legolas insistiu. Naquele momento ele desejava profundamente que o tremor em sua voz não denunciasse seu estado de forma tão declarada.
O lorde elfo respirou fundo, os olhos acinzentados profundamente cravados nos do amigo. Legolas sentiu-se vasculhado como uma casa sem trancas, mas não desviou o olhar embora sentisse seu rosto enrubescer. Ele detestava mentir. Finalmente cedeu deixando pender a cabeça.
O curador cobriu o lado esquerdo do rosto do amigo com uma das mãos conduzindo-o gentilmente a voltar a enfrentar seu olhar inquisidor. Legolas apertou os olhos e sentiu lágrimas brotarem dele. O que ele mais queria naquele momento era contar a Elrond, a quem ele queria bem como a um pai, toda a verdade. Ele queria poder agarrar-se a ele e pedir que o tirasse daquele sofrimento, daquele abandono, mas ele lembrou-se das palavras do rei Thranduil, seu pai, e elas ecoaram assustadoramente nas paredes de sua mente obrigando-o a se calar.
Elrond lia bem o sofrimento nos olhos azuis do jovem príncipe, porém não conseguia decifrar o porque de tanta dor. Ergueu o olhar e surpreendeu-se ao perceber que o anoitecer já batia em suas portas. O dia estava encerrado.
"Bem meu jovem amigo".Disse ele finalmente. O tom inalterado ainda transmitia paz e conforto. "Parece que seu abrigo vai ser útil para nós essa noite, se eu puder ser seu hóspede".
O príncipe hesitou um momento tentando entender o que acontecia, mas depois, captando o porquê da afirmação do companheiro, limitou-se a lhe oferecer um breve sorriso.
"Meu flat é muito simples para um elfo de sua grandeza, meu senhor".Ele disse entre pequenas pausas. "Mas será uma honra".
Elrond sorriu amavelmente ajudando o amigo a se levantar. Eles tinham que andar depressa antes que o anoitecer lhes roubasse a pouca luz que restava.
Caminharam devagar, porém, pois Legolas não permitiu que Elrond o carregasse. A subida até o flat foi ainda mais penosa para o elfo ferido, mas o rapaz usou de toda a sua força para esconder, por trás de uma máscara inexpressiva, a dor que sentia. Ele definitivamente precisava convencer o curador que estava bem e que podia ser deixado para trás.
Quando estavam em segurança no topo da árvore Elrond procurou acomodar o amigo o melhor possível colocando o manto do rapaz sobre sua cabeça e cobrindo-o com o que usava. As palavras que ouvira não saiam de sua mente. Legolas havia chamado aquele flat de seu. "Meu flat". Repetiu Elrond em seu pensamento. Um elfo não chama um lugar de seu a não ser que viva ali. E era assustadora e muito intrigante a idéia de que o jovem elfo estivesse morando num lugar daqueles, sem conforto algum a não ser a presença amiga das árvores próximas. E mais intrigante ainda era que, se supostos amigos iriam realmente chegar, porque o príncipe chamou o flat de *seu* e não *nosso*?
"Quando você acha que seus amigos vão voltar?" Inquiriu finalmente o curador. Ele precisava escavar mais informações e sabia que não havia maneira melhor de fazê-lo do que indagando questões que ele julgava serem o cerne do problema.
Legolas que estava meio adormecido teve um sobressalto ao ouvir o questionamento inesperado. Elrond sentiu-se arrependido ao ver a pouca cor do rapaz subitamente deixar-lhe a face. O jovem elfo desprendeu levemente os lábios como se tivesse a intenção de responder, mas nenhuma palavra foi ouvida. Ele sabia que não poderia levar a mentira muito adiante. Afinal, quem era ele para tentar enganar Lorde Elrond. Um sentimento de desespero tomou-lhe o coração e ele ficou imóvel, apertou o maxilar num reflexo e seus olhos ofuscaram-se na neblina das lágrimas que insistiam em brotar. Mas Legolas não se deixou conduzir pelos sentimentos. Ele não ia chorar na frente de alguém como Elrond. Ele era um guerreiro e não tinha enfrentado tudo o que enfrentara para desesperar-se na frente de uma das lendas vivas da Terra-Média.
Elrond analisava calmamente as reações do amigo e vendo-o engolir novamente a dor que brotava percebeu que já tinha ido longe demais em sua investida. Afinal ele tinha tempo e não era certo pressionar o jovem rapaz de forma tão severa. Sua curiosidade e preocupação podiam esperar pelo dia seguinte. Lembrando-se que sua função principal não era causar a dor, mas afastá-la o curador, conformado então, permitiu-se soltar um suspiro e voltar a sorrir para o príncipe.
Legolas, porém, ainda estava tenso, sem saber o que esperar. Elrond percebendo isso pousou uma mão na testa quente do amigo e com a outra segurou aquela que o príncipe mantinha sobre o peito.
"Hoje você não vai ficar só, criança".Ele declarou usando seu tom de pai, o mesmo tom que acalmava seus filhos alguns anos mais velhos que o jovem elfo. "Amanhã os problemas vão parecer menores. Procure dormir. Eu vigiarei nosso flat".
Legolas balançou a cabeça, mas tremeu sob o toque do amigo. As palavras de Elrond despertaram uma cascata de sentimentos no rapaz que ele não conseguiu conter e ele deixou um soluço escapar, seguido de lágrimas que desciam livremente sem serem contidas. Lembranças do pai de quem ele sentia uma grande saudade vieram perturbá-lo, seguidas de outros sentimentos mais terríveis que acompanhavam a imagem do rei. Sentimentos confusos que Legolas tinha desistido de tentar entender, mas que não o deixavam em paz.
Ele tentou mais uma vez recobrar as forças e recompor-se, mas foi inútil. Lorde Elrond não permitiu. Ele tomou o rapaz nos braços e o embalou devagar dizendo palavras de conforto e incentivo, pois ele sabia que o jovem Legolas precisava colocar aquelas lágrimas para fora juntamente com todos os maus sentimentos que as acompanhavam. Legolas finalmente cedeu a pressão e, agarrando-se a túnica do amigo, chorou abertamente por um bom tempo para só então se permitir adormecer nos braços de Elrond que permaneceu na mesma posição até o amanhecer, questionando-se sobre os problemas que o dia que nascia poderia lhes trazer.
