Escuridão.
Fantasmas.
Terrores noturnos.
O maior dos sorrisos pode esconder a maior das tristezas. E a maior das forças, a maior das fraquezas.
Não importa o que digam, ou o que pensem. São apenas humanos. Como qualquer um de nós. E como qualquer um também eles se sentem diminuídos perante as metas que não conseguem atravessar e perante os medos contras os quais não conseguem lutar.
São apenas humanos. E como humanos que são estão condenados à imperfeição, enquanto buscam a perfeição. Enquanto deles esperam a perfeição.
São apenas humanos. E por vezes tentam salvar o mundo mesmo quando o seu mundo foi há muito destruído.
São apenas humanos. Mas eles chamam-lhe heróis. E atrás de cada herói esconde-se sempre uma imensa escuridão.
Era um odor distinto. Metálico. Acre. E impregnava o ar, enchendo-lhe os pulmões a cada respiração, juntamente com cada molécula de oxigénio.
Tinha uma textura distinta. Escorregadia. Ligeiramente espessada. E agarrava-se a cada superfície marcando-a perpetuamente.
Tinha uma cor marcante. Berrante. Rica. Vermelha. E coloria as paredes à sua volta, o concreto sobre os seus pés. Os corpos espalhados pelo chão. As roupas que abraçavam o seu corpo. E as suas mãos.
Sangue.
O ar abandonava-a de forma ríspida, escapando em rápidas golfadas pelos seus lábios. Estes haviam-se tornado rachados e ressequidos, tão rápida e inesperadamente com o ar que expirava irregularmente pela boca entreaberta.
O silêncio ressoava no amplo edifício. Mas ela não estava só, embora nunca o tivesse desejado com tanto fervor como naquele momento. Podia senti-los, podia vê-los. Quinze, havia contado pela sua visão periférica mais de dez minutos antes, todos armados com semiautomáticas que tinham como alvo o seu frágil crânio. Mas não lhes prestava atenção. Poderiam ser cinquenta e ainda assim não teriam a sua devota atenção. Essa estava centrada no homem à sua frente.
Alto, de físico esguio mas músculos fortalecidos por anos de árduo treino militar escondidos pelo fato tático azul-escuro. Águia de linhas retas e asas abertas estampada em cada bíceps. Olhos cinzentos gélidos, sorriso de triunfo e arma em punho. Apontada à sua cabeça.
Cinco balas haviam saído da glock de nove milímetros. Cinco balas diretas ao seu coração.
E a voz do homem foi a primeira a perturbar o tempestuoso silêncio.
- Hail Hydra.
E num momento que não durou segundos a sua mão alcançou o holster preso à sua coxa direita, fechou-se em volta da arma e puxou-a. A rapidez não permitiu ouvir o click do pin de segurança, mas o som do disparado ressuou nas paredes de cimento enquanto a bala abandonava a câmara e atravessava pele, músculo e osso, destruindo massa cinzenta e saindo na extremidade oposta.
O líquido escarlate misturou-se com o já derramado.
Então outro disparo foi ouvido. Uma dor lacerante espalhou-se, queimando por dentro. E depois veio a escuridão.
Vermelho era tudo o que podia ver. Adornava o chão e as paredes. E adornava as suas mãos, as mesmas que fitava enquanto um nó se instalava na sua garganta, sufocando-a. Sentia o peso da arma na sua mão direita. Sabia que outra se encontrava no holster na sua coxa. Carregava sempre duas pequenas armas consigo.
Havia vultos no chão. Corpos. De olhos vidrados e sem vida que a encaravam de forma acusatória. Não os salvaste. Sangue espalha-se em volta, escorrendo dos crânios. Um único tiro na cabeça. Estilo de execução. Deixaste que morressem.
Inspirou profunda e instavelmente. Engoliu em seco. Engoliu as lágrimas que queriam desesperadamente escapar dos seus olhos. Engoliu a tristeza. Engoliu a solidão.
Estás sozinha agora. Não sobrou ninguém.
Estava sozinha. Sozinha num mundo cruel e cheio de sofrimento. Sozinha na escuridão.
Escortinou os familiares rostos desprovidos de vida. A angústia afogando-a num mar impiedoso cujas ondas erodiam a sua alma.
Não os salvaste. Não fizeste nada. E agora, nós tiramos-tos todos. Não sobrou ninguém. Ninguém.
E então ela gritou. Gritou de forma animalesca, tentando expulsar a dor, enquanto o odor acre e metálico do sangue a sufocava.
O seu grito ecoou contras as paredes de pedra fria e espalhou-se pelo espaço. A garganta doí-lha, as mucosas ressequidas, os lábios estalados. No entanto parecia ainda haver água suficiente no seu organismo para produzir lágrimas, lágrimas que lhe corriam livremente pela face sem qualquer tipo de controlo.
Lutou de forma desesperada contra as algemas metálicas que lhe prendiam os pulsos e os tornozelos. A carne vermelha e aberta. Mas ela não sentia dor.
O seu longo cabelo mogno estava colado à sua face, agindo como uma cortina entre si e o que a rodeava. A respiração saiu-lhe pesadamente. Ergueu os olhos por entre muralhas de cabelo, tentando focar por entre lágrimas as duas figuras que estavam diante de si.
- Tudo isto pode acabar. A dor pode ir embora. Só tens de me dizer aquilo que eu, tão gentilmente, te estou a preguntar.
Apeteceu-lhe rir, mas as forças faltavam-lhe.
A figura masculina foi-se tornando mais fácil de ver. Encontrava-se mais próxima, olhando-a atentamente com os seus olhos azuis através do seu monóculo. Podia ver, mais distante, olhos vermelhos a brilharem no espaço precariamente iluminado. A bruxa. Começara a apelidá-la.
- Já não há uma agência a proteger, Agente.
O seu coração contorceu-se, recusando-se a acreditar nas palavras envenenadas.
Ele aproximou-se mais, trazendo o rosto ao nível do seu, dedicando-lhe um pequeno sorriso. Um olhar inexpressivo foi a resposta.
Não vou trair a minha família. Eu vou protege-los. Eu vou protege-los.
- Ela não vai traí-los. Acha que tem de protege-los. – a voz feminina, carregada com um sotaque europeu de leste, ela há muito havia percebido, interveio.
- Minha querida, já não há nada para proteger. – ele disse docemente. – Já passou tanto tempo. A dor pode acabar. Eu posso fazer a dor ir embora, só tens de me dizer. Não custa assim tanto.
- Vai para o inferno. – as palavras sussurradas, mas fortes e sem flutuações, escorregaram-lhe pelos lábios. Satisfação preenchendo-a por ter sido capaz de as dizer.
Se realmente o inferno existe, vais arder nele para a eternidade.
Toda a suavidade desapareceu do rosto masculino enquanto ele se endireitava e se afastava.
- Muito bem. – virou-se então para o canto norte da sala. – Liga as máquinas. Potência máxima. Dez minutos, com intervalos de dois, durante uma hora. Estou ansioso para ver como é que ela vai curar desta vez.
E então saiu, levando consigo a bruxa de olhos escarlates e fechando a porta de ferro atrás de si.
O silêncio imperou durante longos segundos e ela fechou os olhos, preparando-se para a tempestade que se avizinhava. E então sentiu. Primeiro uma pequena faísca. Depois eletricidade correu por cada fibra muscular no seu corpo, queimando por onde passava, fazendo o seu sangue ferver nas suas veias.
Novamente gritou. E os seus gritos encheram a noite. E a sanidade que tentava manter pareceu fugir-lhe. Então fechou-se. Fechou-se dentro de si combatendo dor com dor. E tudo o que restou foi o cheiro acre e metálico de sangue.
