Lost Chronicles
Prólogo
Ele ainda podia se lembrar nitidamente daquela noite: a dor do filho, o desespero da nora. Naquela noite ele resolvera chorar sua própria tristeza no pátio do templo, questionando os deuses e a lua pelos recentes acontecimentos.
E foi ali, no pátio banhado pela luz da lua cheia, que ele o viu.
Lembrava-se de ter piscado várias vezes até reconhecer a figura de um homem – um rapaz bem jovem. Lembrava-se também do incômodo que sentiu diante da figura: visitantes àquela hora no templo? Está certo que ele era o sacerdote, e que deveria por bem zelar pela paz espiritual dos habitantes da área, mas aquele não era o momento para vizinhos intrometidos choramingarem favores. A passos firmes e decididos a expulsar o devoto inconveniente, aproximou-se da figura... até ficar próximo o bastante para notar algo curioso:
-Por que está encharcado?
O rapaz virou-se. Não parecia assustado, mas talvez um pouco... perdido. De fato, estava completamente ensopado – mas não chovia naquela noite. Nem chovera nos últimos dez dias.
- Então, aqui é um templo, correto? - ainda podia se lembrar das profundezas da voz daquele jovem homem. O olhar do rapaz detivera-se nas roupas sacerdotais que o outro trajava, antes de voltar a encarar a velha árvore sagrada do templo. - E o senhor é o sacerdote responsável?
O olhar do rapaz encarou-o pelo canto dos olhos, inquisidor, em brasa. O sacerdote recuou. Com certeza era algum louco, psicopata ou algo do gênero. Para estar num templo àquela hora, completamente ensopado, vestindo um kimono que parecia antiquíssimo e com um braço suspenso por uma faixa, como se estivesse quebrado; no outro braço, havia um embrulho estranho, um emaranhado de tecido. Ia já recuando a fim de retornar à casa de ligar para a polícia – mais um desgaste emocional para aquele dia – quando o rapaz, de um jeito que o sacerdote nunca soubera explicar como, tomou um impulso e plantou-se a um palmo de distância, encarando-o firmemente nos olhos.
-Se você é o sacerdote, preciso que me faça um favor. - a voz ecoou profunda e grave.
O sacerdote engoliu em seco, e o outro pareceu assumir que aquilo era uma anuência, pois desviou os olhos do contato visual que se estabelecera para fixá-los no pequeno embrulho que trazia no braço bom. O sacerdote seguiu o olhar do rapaz e qual não foi sua surpresa ao notar o embrulho mexer-se.
Afinal, não poderia ser-
O sacerdote estendeu a mão e descobriu o embrulho. "Oh, céus..."
Era um bebê, um minúsculo bebê. Ao que parecia, não deveria ter mais que uma semana de vida.
-Essa criança não tem pai, nem mãe, nem ninguém no mundo. Eu mesmo não sou ninguém para ela. - o rapaz disse, cada palavra ecoando gravemente pela noite enluarada. - Preciso que fique com ela, ou que encontre alguém bom para ela, que a crie nas proximidades desse templo.
O sacerdote tremia de emoção. Um bebê! Mas, de onde vinha...? Como...?
-Mas, de quem é essa criança? Onde a encontrou...?
- Essa criança... vem de um lugar muito perigoso. Ela precisa de um lugar seguro para crescer. Um lugar que permita que ela se desenvolva saudável, longe de... turbulências. - o rapaz fez uma pausa, como se estivesse a medir suas palavras. - Preciso de alguém que a crie, e preciso que ela cresça aqui, neste templo ou perto. É a única condição: essa criança deve crescer perto do templo, e deve aprender sobre... - o rapaz gesticulou com a cabeça, já que os braços estavam ocupados, parecendo procurar a palavra correta para o que queria definir - ...espiritualidades, eu diria.
O sacerdote pegou cuidadosamente a criança no colo, e instantaneamente chorou de alegria. Seria um enviado dos deuses? Seria aquele rapaz a manifestação do deus árvore que protegia o templo?
- Posso cuidar dela! Ela será muito bem amada, e terá uma ótima educação, e um pai e uma mãe que a amarão muito! - ele disse numa torrente de emoção desenfreada. - Pobrezinha, está toda molhada... mas está quentinha... que curioso...
- Não se esqueça da condição, sacerdote. - o rapaz fitava tristemente a criança nos braços do outro – Ela deve crescer aqui.
- Sim, sim! Claro! Oh, deuses, obrigado por essa dádiva!
- Dádiva... - um sorriso torto desenhou-se nos lábios do rapaz. Ele esticou a mão boa, agora livre do bebê, para acariciar a nuca da criança em um claro sinal de despedida. - Há ainda mais uma coisa.
O sacerdote, que estava encarando o rostinho minúsculo do bebê e brincando com uma de suas mãozinhas, anuiu alegremente com a cabeça, como se estimulasse o outro a falar.
- Um dia... - a voz profunda do jovem começou – um dia essa menina terá que voltar para o lugar de onde veio.
O sacerdote sentiu o estômago revirar. Seria como na lenda da princesa Kaguya? Oh, deuses... porque tomar a alegria recém adquirida de um pobre velho sacerdote?
- Mas não se preocupe. Ela não terá que retornar para sempre. - um sorriso quase gentil surgiu na face encharcada do jovem – Ela apenas precisará resolver um assunto... e depois poderá voltar e ficar aqui, com sua... família.
Alívio inundou o sacerdote.
- E quando seria isso? Quando ela terá que voltar? E por que?
- Eu não se a resposta dessas perguntas. Talvez isso nunca aconteça também... há essa probabilidade. Eu apenas espero que tudo dê certo, como o planejado.
O sacerdote sentiu-se confuso, mas aliviado e alegre. Os dias que passara com seu filho e sua nora, naquela semana, tinham sido os piores possíveis – e agora recebia essa dádiva dos deuses! Oh, sim, esse bebê traria alegria de volta à vida de sua família. Intimamente, rezou para que o dia que essa criança crescesse e tivesse que retornar à qualquer lugar que fosse nunca chegasse.
O sacerdote distraiu-se tanto com suas preces e planos para o futuro, que quase perdeu de vista o rapaz virando-se e rumando para o antigo poço sagrado do templo. A princípio não entendeu o porque daquele rumo – a saída do templo ficava para o lado contrário – quando repentinamente uma conexão lógica firmou-se: a água do poço... e o rapaz encharcado... aqueles olhos profundos que não pareciam vir desse mundo... o poço sagrado, que segundo constavam as escrituras antigas da família, mantinha conexão com o desconhecido...
O rapaz estava, de fato, prestes a pular para dentro do poço.
- Espere...! - o rapaz deteve-se, já com uma perna para dentro da borda de madeira, o braço bom apoiando o peso do corpo. - Essa criança... qual o nome dela? Tem nome?
O sacerdote pôde vislumbrar o rosto do rapaz se contrair em pensamentos profundos.
- Pode chamá-la de... Kagome.
E dito isso deslizou para dentro do poço come-ossos.
