"Oh, Srta. Granger. Olhe só que lugar horroroso."

Enquanto descia da carruagem, Hermione Granger observou a passagem estreita, de paralelepípedos, entre duas fileiras de armazéns.

"Parece um beco, Luna."

"Fede a sangue. Deus nos ajude. Nós vamos ser assassinadas!"

Hermione segurou o sorriso. Sua criada pessoal era maravilhosa para fazer cachos em seu cabelo, mas a capacidade mórbida de sua imaginação era ainda mais incomparável.

"Nós não vamos ser assassinadas." Depois de pensar por um instante, ela acrescentou, "Não hoje, pelo menos."

A Srta. Granger teve uma boa criação, com os benefícios da educação formal e muita atenção ao decoro. Ela estava noiva do jovem diplomata mais promissor da Inglaterra e não era o tipo de moça imprudente que se arrisca em becos suspeitos à meia-noite, com uma pistola descarregada no bolso, à procura do canalha mais infame de Londres.

Não, de jeito nenhum.

Quando Hermione saiu à procura do canalha mais infame de Londres, ela esperou até o meio-dia. Hermione entrou no beco suspeito acompanhada por um lacaio, sua criada pessoal e um pouco de medo. E ela não portava nenhuma arma.

Sério, de que adiantaria?

Quando o homem que você procura é um lutador de boxe com 1,80 de altura e que pesa cem quilos, uma pistola descarregada não serve para nada. As únicas armas letais em questão eram os punhos dele, e uma garota só pode esperar que elas estejam do seu lado.

Harry, por favor, fique do meu lado. Só desta vez. Ela seguiu em frente pela viela estreita e úmida, levantando a barra rendada de suas saias e tomando cuidado para não prender o salto dos sapatos no piso irregular.

"Como o segundo filho de um marquês vem parar num lugar desses?", Luna perguntou, enquanto tentava pisar apenas nos paralelepípedos mais limpos.

"De propósito. Lorde Harry deu as costas para a sociedade anos atrás. Ele adora a vida selvagem."

Mas, por dentro, Hermione se perguntava a mesma coisa. Da última vez em que viu Harry Potter, o homem que seria seu cunhado, ele ostentava ferimentos graves. Não eram apenas as consequências físicas da sua pior – quer dizer, sua única – derrota na carreira de boxeador, mas também o baque causado pela morte repentina do pai.

Na época, ele parecia estar em um momento ruim.

Muito ruim.

Mas não tão deprimente quanto aquele lugar.

"Aqui estamos." Ela bateu na porta e ergueu a voz. "Lorde Harry? Está aí? É a Srta. ..." Ela engoliu o nome. Talvez não fosse aconselhável expor sua identidade em um lugar daqueles. "Eu só preciso de alguns minutos do seu tempo."

Uns minutos e uma assinatura.

Ela apertou o maço de papéis em sua mão.

Nada de resposta.

"Ele não está em casa", Luna disse. "Por favor, Srta. Granger. Precisamos ir se quisermos chegar ao Castelo Twill antes do anoitecer."

"Ainda não."

Hermione se aproximou da porta. Ela ouviu ruídos lá dentro. O ranger de cadeiras sendo arrastadas no chão. Alguns baques surdos.

Oh, ele estava lá dentro e a ignorava de propósito.

Ela estava dolorosamente acostumada a ser ignorada. Seu noivado havia lhe dado anos de prática. Quando ela tinha 17 anos, Lorde Piers Potter, o belo e autoconfiante herdeiro do Marquês Potter, obedeceu aos desejos de ambas as famílias e lhe propôs casamento. Ele se ajoelhou na sala de estar dos Granger e colocou um anel de ouro e rubi no dedo dela.

Hermione sentiu como se estivesse sonhando.

Um sonho com um pequeno problema. Piers estava no início de uma carreira promissora em diplomacia, e Hermione era muito nova para assumir os deveres da administração de uma casa. Eles tinham todo o tempo do mundo, Piers disse. Ela não se incomodaria com um noivado longo, certo?

"Claro que não", ela respondeu. Em retrospecto, pensava que talvez devesse ter dado uma resposta diferente ao noivo. Como, por exemplo, "Defina 'longo'."

Oito anos – e nenhum casamento – depois, Hermione continuava esperando.

No momento, a situação dela era motivo de piada.

Os jornais de fofocas começaram a chamá-la de "Srta. Wait-More (Espera-Mais)". Os boatos a seguiam por toda parte. Todos se perguntavam o que poderia estar mantendo o futuro marquês longe da Inglaterra e do altar. Seria ambição, alguma distração... dedicação ao dever? Ou, quem sabe, dedicação a uma amante estrangeira? Ninguém sabia dizer. Muito menos a própria Hermione.

Ah, ela tentava rir dos boatos e das fofocas, mas por dentro... Por dentro aquilo a machucava muito. E a fazia se sentir absolutamente só.

Bem, aquilo tudo acabava ali.

A partir daquele momento ela seria a Srta. Não Espera-Mais.

Hermione virou a maçaneta de bronze com a mão enluvada e a porta se abriu.

"Fiquem aqui", ela disse para os criados.

"Mas. Srta. Granger, não..."

"Eu vou ficar bem. A reputação dele é horrível, mas nós somos amigos de infância. Eu passava os verões na casa da família dele e estou noiva de seu irmão."

"Ainda assim, Srta. Granger... Nós precisamos combinar um sinal."

"Um sinal?"

"Uma palavra para você gritar se estiver em perigo. Algo como 'Tânger', ou... ou talvez 'muscadínia'."

"Tem algo de errado com a palavra 'socorro'?", Hermione falou com ironia.

"Eu... bem, acho que não."

"Muito bem." Ela sorriu, incapaz de suportar a expressão de decepção da criada. "Então vai ser 'muscadínia'." Ela passou pela porta, atravessou um corredor escuro e chegou a um cômodo com teto muito alto. O que encontrou fez seu sangue gelar... Oh, muscadínia.

Ela piscou e se obrigou a olhar de novo.

Talvez não fosse ele.

Mas não era possível confundir o perfil dele, com aquela curva acidentada que formava seu nariz, marcado por cicatrizes. Mais o cabelo escuro e farto, o maxilar forte, a largura impressionante dos ombros... Aquele era o próprio Lorde Harry Potter, empoleirado em uma viga, a cerca de quatro metros acima do chão.

Ele tinha uma corda nas mãos, que amarrava com cuidado à viga.

E na extremidade da corda havia um laço.

Um laço corredio.

O que ele tinha não era apenas depressão. Era algo muito pior.

E ela chegou no momento exato.

Hermione sentiu o coração palpitar em pânico. Tum-tum. Tum-tum.

"Meu lorde!", ela exclamou. "Não faça isso!"

"Srta. Granger?", ele olhou para ela.

"Isso. Isso, sou eu." Avançou calmamente, erguendo a mão espalmada em um gesto de paz. "É a Srta. Granger. Hermione. Eu sei que já tivemos nossas diferenças. Aliás, não sei se já tivemos algo que não diferenças. Mas estou aqui para lhe ajudar. E eu lhe imploro para, por favor, reconsiderar essa decisão."

"Reconsiderar." Ele olhou com firmeza para ela. "Você quer me impedir de..."

"Isso. Não faça algo de que vai se arrepender. Você tem tanto pra viver."

Ele refletiu por um instante.

"Não tenho mulher nem filhos. Meus pais estão mortos. Meu irmão e eu não nos falamos há quase uma década..."

"Mas você deve ter amigos. E possui tantas qualidades."

"Quais, por exemplo?"

Droga. Hermone devia imaginar que ele perguntaria.

Ela repassou em sua cabeça tudo o que sabia sobre a vida dele nos últimos anos. A maior parte vinha dos jornais, e quase todas as notícias tinham sido pavorosas.

Harry Potter tinha conquistado a reputação de ser impiedoso nas lutas de boxe e sem-vergonha em todo o resto. Sua fama de acabar com as mulheres na cama era quase tão legendária quanto sua rapidez no ringue. Seu apelido era Filho do Diabo.

"Força!", Hermione sugeriu. "Essa é uma qualidade incrível."

Ele apertou um nó.

"Touros são fortes. Isso não os salva da morte quando não conseguem mais puxar uma carroça."

"Não fale assim. Talvez você não seja mais o campeão, mas isso não significa que perdeu seu valor." Ela tentou encontrar algo, qualquer coisa. "Lembro que você deu parte dos seus ganhos para um fundo de viúvas da guerra. Não é verdade?"

"É possível."

"Aí está. É isso. Caridade é a melhor das virtudes."

Ele terminou de atar um nó e puxou a corda para testar a resistência.

"Não adianta. Uma única boa ação não vai compensar meus pecados. E todas as mulheres que eu seduzi?"

"Eu..." Oh, céus. Como alguém consegue falar sobre essas coisas em voz alta? "Eu... eu imagino que algumas delas devem ter gostado."

E com isso ele riu. Foi uma risada seca, baixa... mas ainda assim uma risada. Riso era um bom sinal, não é mesmo? Homens que riem não se enforcam. Não devia incomodar Hermione que ele estivesse rindo dela.

"Posso lhe garantir, Srta. Granger, que todas gostaram."

Ele deixou a corda cair, ficando pendurada na viga, e então desceu por ela, usando a força de seus braços, até terminar bem diante de Hermione. Ele estava descalço e vestia calças cinzas e uma camisa de algodão com o colarinho aberto. Os olhos verdes de Rafe a desafiavam a transgredir o decoro de dez maneiras diferentes. E aquele sorriso debochado que ele mantinha nos lábios apenas afirmava que ela não tinha coragem para transgredir nada.

"Pode respirar", ele disse. "Você não interrompeu um suicídio."

Ela aceitou a sugestão. Seus pulmões foram inundados por ar e todo o resto por alívio.

"Mas o que eu devia pensar? Você estava em cima da viga, com a corda, o laço..." Ela apontou para a evidência. "O que mais você poderia estar fazendo?"

Sem falar nada, ele caminhou até a extremidade do salão. Ali, pegou um saco de lona recheado de palha com um gancho no alto.

Rafe voltou e pendurou o saco na corda, fazendo o nó correr para ficar firme.

"Chama-se treinamento." Ele deu um soco no saco para demonstrar. "Percebe?" Ela percebeu. E então se sentiu intoleravelmente tola.

Na infância, Harry sempre a provocava, mas de todas as maldades que ele fez ao longo dos anos...

"Desculpe estragar sua diversão", ele disse.

"Minha diversão?!"

"Esse é um famoso passatempo das mulheres, sabe? Tentar me salvar de mim mesmo."

Ele lhe deu um olhar convencido e passou por ela.

Hermione ficou corada – mas essa era a palavra errada. Se "corar" fosse equivalente a um sussurro, naquele momento as bochechas dela estavam gritando! Ridículas de tão cor-de-rosa, como um flamingo ou algo assim. Homem desprezível, perturbador.

Uma vez, quando era apenas uma garotinha, Hermione viu uma briga na vila. Um homem que comprava avelãs questionou o vendedor quanto à honestidade de sua balança. Os dois discutiram, gritaram... e uma briga irrompeu. Ela nunca se esqueceu do modo como a atmosfera mudou em um instante. Todos por perto sentiram a mesma coisa. A sensação de perigo formigava.

Hermione nunca testemunhou outra troca de socos. Mas ela sentia o mesmo formigamento no ar sempre que Harry Potter estava por perto. Ele parecia carregar certas coisas consigo, do mesmo modo que outros homens carregavam uma maleta ou uma bengala.

Coisas como intensidade e força bruta contida – mas prestes a se libertar. A essa sensação de perigo se unia a de expectativa. E a promessa de que, a qualquer momento, as regras que governam a sociedade poderiam perder o sentido.

Sua vida de libertino era segredo para alguém?

Honestamente, os espartilhos não se desamarravam sozinhos.

"Eu pensei que você tivesse parado de lutar", ela disse.

"Todo mundo está pensando que eu parei de lutar. E é isso o que vai fazer da minha volta ao esporte algo tão emocionante. E lucrativo."

Ela pensou que isso obedecia a um tipo estranho de lógica.

"Agora explique-se." Ele cruzou os braços. Aqueles braços grandes... grandes não, imensos... ah, sem palavras para definir. "O que diabos você está fazendo? Devia saber que não é bom vir a um lugar desses."

"Eu sei e não vim sozinha. Dois criados estão me esperando lá fora." Em um impulso tolo, ela acrescentou, "e nós combinamos um sinal."

"Um sinal", ele arqueou a sobrancelha.

"Isso, um sinal." Ela continuou antes que ele quisesse saber mais. "Eu não precisaria vir até aqui se você tivesse deixado algum outro meio de contato. Tentei encontrá-lo no Harrington."

"Eu não tenho mais quarto no Harrington."

"Foi o que me informaram. E então me disseram que este é o seu endereço atual." Ela o seguiu até onde pareciam ser seus aposentos.

"Você mora mesmo aqui?"

"Quando estou treinando, moro. Sem distrações."

Hermione olhou em volta. Ela não tinha estado em muitas residências de solteiros, mas sempre as imaginou atulhadas e cheirando a coisas não lavadas – louça, roupa e corpos. O armazém de Lorde Harry não cheirava a nada desagradável. Apenas serragem, café e o aroma tênue de... óleo essencial de gaultéria, talvez?

Mas o lugar era espartano.

Em um canto viu uma cama simples, um armário e algumas prateleiras, além de uma mesa pequena com dois bancos. Ele pegou dois copos no armário e os colocou sobre a mesa. Em um deles Harry despejou dois dedos de xerez. No outro, esvaziou um bule de café e adicionou um toque de um xarope de cheiro forte, tirado de uma misteriosa garrafa marrom.

A isso tudo acrescentou três ovos crus.

Ela o observava, com uma vontade imensa de vomitar, enquanto Harry mexia aquela mistura repulsiva com um garfo.

"Com certeza você não vai..."

"Beber isso?" Ele ergueu o copo e engoliu o conteúdo de uma só vez, depois recolocou o copo sobre a mesa. "Três vezes por dia."

"Oh." Ele empurrou o xerez para ela. "Este é seu. Parece que você precisa de um gole."

Hermione encarou o conteúdo do copo enquanto ondas de náusea sacudiam seu estômago.

"Obrigada."

"É o melhor que eu posso fazer. Como pode ver, não estou preparado para receber visitas sociais."

"Não vou tomar muito do seu tempo, prometo. Só parei para..."

"Entregar o convite de casamento. Não se preocupe, vou enviar uma carta aos noivos com os meus pêsames."

"O quê? Não. Quero dizer... Imagino que você saiba que Lorde Potter está, afinal, voltando de Viena."

"Eu soube. E Piers lhe deu permissão para planejar o casamento mais suntuoso que puder imaginar. Eu mesmo vou assinar as faturas."

"Bem, sim. Quanto a essas assinaturas..." Hermione torceu o rolo de papéis em sua mão. Ele se afastou da mesa. "Isso tem que ser rápido. Não posso perder tempo conversando."

Lorde Harry parou debaixo de uma barra de ferro paralela ao chão, que estava a cerca de um metro acima de sua cabeça. Em um salto, ele a agarrou e então começou a se erguer, flexionando os braços... Várias vezes.

"Continue", ele disse ao ultrapassar a barra com o queixo pela quarta vez. "Eu posso conversar enquanto faço isso."

Talvez ele pudesse, mas Hermione começava a achar difícil. Não estava acostumada a conversar com um homem seminu, ocupado com esse tipo de... exercício muscular.

Uma sensação estranha percorreu suas veias. Ela pegou o copo de xerez e deu um gole cauteloso.

Ajudou.

"Imagino que você não saiba que meu tio Humphrey morreu há alguns meses." Ela fez um gesto dispensando os pêsames antes que Harry pudesse se manifestar. "Não foi um choque. Ele já tinha idade avançada. Mas o doce velhinho me deixou uma herança em seu testamento. Um castelo."

"Um castelo?" Ele gemeu ao ultrapassar a barra mais uma vez. Então parou ali, os músculos tensos devido ao esforço. "Uma pilha de ruínas no pântano, com uma montanha de impostos atrasados, eu imagino."

"Na verdade, não. O castelo fica em Kent e é um encanto. Era uma das propriedades pessoais dele. Meu tio era o Conde de Lynforth, se você não está lembrado."

Bom Deus, como ela tagarelava. Controle-se, Hermione.

"É ideal para um casamento, então." A voz saiu comprimida devido ao esforço.

"Imagino que sim. Para o casamento de alguém. Mas estou indo para lá hoje e passei para..."

"Contar isso para mim." Subiu.

"Isso. E também..."

"Para pedir dinheiro." Subiu. "Como eu já disse, você pode gastar o quanto quiser no seu casamento. Envie as contas para os administradores do meu irmão."

Hermione fechou os olhos bem apertados e depois os abriu devagar.

"Lorde Harry, por favor. Você faria a gentileza de parar..."

"De completar suas frases?"

Ela reprimiu um rosnado.

Ele parou no meio do exercício.

"Não vá me dizer que eu errei alguma?"

Ela não podia lhe dizer isso. Não com sinceridade. Essa era a parte mais irritante.

"Como eu disse", ele continuou, "Eu estou treinando." Cada frase era pontuada por outra subida. "É isso o que nós, lutadores profissionais, fazemos. Nós nos concentramos." Subiu. "Antevemos." Subiu. "E reagimos. Se isso a incomoda, procure ser menos previsível."

"Estou cancelando", ela disparou. "O casamento, o noivado. Tudo. Estou cancelando tudo."

Ele se soltou e pousou no chão. O ar pesou ao redor dos dois. E a expressão sombria dele contou para Hermione, sem dúvida nenhuma, que ele não tinha previsto isso.

Harry a encarou.

Aquele mês não estava se desenrolando como havia planejado. Ele tinha se enfiado naquele armazém para treinar para o seu retorno. Quando enfrentasse Jack Dubose pela segunda vez, seria a maior luta de sua vida e a maior bolsa já oferecida na história da Inglaterra. Para se preparar, precisava de condicionamento físico intenso, sono sem perturbações e comida nutritiva...

E, absolutamente, nenhuma distração.

Então, quem resolvia entrar pela sua porta?

Ninguém menos que a Srta. Hermione Granger, sua distração mais íntima e persistente.

É claro.

Os dois sempre se estranharam, desde quando eram crianças. Ela era o retrato da "rosa inglesa", com o cabelo e olhos castanhos e as feições delicadas. Bem educada, acolhedora e refinada. Além de irritante de tão doce. Resumindo, Hermione Granger era a encarnação da sociedade civilizada.

Tudo que Harry sempre desdenhou. Tudo que ele tinha jurado arruinar... E devia ser isso que tornava tão tentadora a ideia de arruiná-la. Sempre que Hermione estava por perto, ele não conseguia resistir a chocar as noções de decoro dela com uma demonstração de força bruta.

Harry gostava de atormentá-la até fazer as bochechas de Hermione adquirirem um tom exótico de rosa. E ele imaginou, muitas vezes, como ela ficaria com aquele coque dourado desfeito, embaraçado pelo amor e úmido de suor.

Ela era a prometida do seu irmão. Era errado pensar em Hermione daquela forma. Mas Harry nunca fez muita coisa certa fora de um ringue de boxe.

Desviou o olhar do lenço branco rendado que escondia o decote dela.

"Eu acho que ouvi mal", ele disse.

"Oh, estou certa de que me ouviu muito bem. Estou com os documentos bem aqui." Ela desenrolou o maço de papéis que trazia na mão enluvada. "Meus advogados os redigiram. Você gostaria que eu resumisse?"

Aborrecido, ele estendeu a mão para pegar os papéis.

"Eu sei ler." Mais ou menos. Da mesma forma que todos os documentos legais colocados à frente dele desde a morte do velho marquês, aqueles estavam escritos em garatujas tão pequenas e apertadas que eram indecifráveis. Só de olhar para aquele garrancho, Harry ficou com dor de cabeça. Mas aquela olhada rápida foi suficiente. Aquilo era sério. "Estes documentos não são válidos", ele disse. "Piers teria que assiná-los primeiro."

"Bem, sim. Existe uma pessoa com poder de assinar por Piers na ausência dele."

Os olhos castanhos dela se fixaram nos olhos dele.

Não.

Harry não podia acreditar nisso.

"É por isso que você está aqui. Quer que eu assine isso."

"Isso mesmo."

"Impossível." Ele recolocou os papéis na mão dela, depois caminhou até o saco de pancada e o acertou com um cruzado poderoso de direita. "Piers está voltando de Viena para casa. E você deveria estar planejando o casamento."

"É por isso mesmo que eu esperava ver estes papéis assinados antes de ele chegar. Parece melhor assim. Eu odiaria participar de um conflito e..."

"E conflitos são minha especialidade", ele completou.

Ela deu de ombros.

"Isso."

Rafe baixou a cabeça e desferiu uma série de socos no saco de pancada. Dessa vez ele não estava se exibindo. Seu cérebro trabalhava melhor quando seu corpo se movimentava. Lutar o colocava no seu ponto máximo de concentração, que era do que estava precisando naquele momento.

Por que diabos Hermione queria desfazer o noivado? Ela foi uma debutante criada para conseguir um casamento vantajoso, do mesmo modo que cavalos puro sangue são criados para correr. Um casamento suntuoso, com um marquês rico e atraente, deveria ser o maior sonho dela.

"Você não vai conseguir um pretendente melhor", ele disse.

"Eu sei."

"E você tem que querer se casar. O que mais pode esperar da sua vida?"

Ela riu com o copo de xerez na boca.

"O que mais, não é mesmo? Não é como se nós, mulheres, tivéssemos permissão para ter nossos próprios interesses ou carreiras."

"Exato. A menos..." Ele parou quando estava prestes a desferir outro soco. "A menos que exista outra pessoa."

Ela ficou quieta por um instante.

"Não existe ninguém."

"Então é só a expectativa que está deixando você nervosa. Você só está com medo."

"Eu não sou nenhuma noiva medrosa. Apenas não quero me casar com um homem que não quer se casar comigo."

"Por que você pensa que ele não quer se casar com você?" Harry soltou um gancho de direita no saco, depois um de esquerda.

"Porque eu olhei para o calendário, entende? Passaram-se oito anos desde que ele me pediu em casamento! Se você quisesse mesmo se casar com uma mulher, esperaria tanto tempo para torná-la sua?"

Harry deixou os punhos descansarem ao lado do corpo e se virou para ela, ofegante. Seus pulmões se encheram com o aroma de violetas.

Droga, até o cheiro dela era doce.

"Não", ele respondeu. "Eu não esperaria tanto tempo."

"Imaginei que não."

"Mas", ele continuou, "eu sou um vagabundo impulsivo. E estamos falando de Piers. Ele é o filho leal e honrado." Ela arqueou a sobrancelha, expressando incredulidade.

"Se formos acreditar nos jornais de fofocas, ele tem uma amante e quatro filhos escondidos em algum lugar."

"Eu não leio os jornais de fofocas."

"Talvez você devesse, pois aparece neles com frequência." Ele não duvidava.

Harry sabia das coisas horríveis que diziam a seu respeito, e aproveitava cada oportunidade para encorajar as fofocas. Reputação não vencia lutas, mas atraía multidões e enchia os bolsos.

"Não é como se Piers não tivesse tido razões para adiar. Ele é um homem importante."

Harry teve que se esforçar para manter o rosto sério. Quem diria, ele fazendo elogios ao irmão. Isso não acontecia com frequência.

Não acontecia nunca.

"Teve aquele posto na Índia. Depois o outro em Antígua. Ele voltou para casa entre as duas missões, mas houve algum problema."

"Eu estava doente." Ela falou e baixou a cabeça.

"Certo. Depois teve uma guerra que precisou de atenção, e outra depois dessa. Agora que todos os tratados foram concluídos em Viena, ele está voltando para casa."

"Não é que eu me ressinta do senso de dever dele", ela disse. "Nem do quão essencial ele se tornou para a Coroa. Mas tem se tornado demasiadamente claro que eu não sou essencial para ele."

Harry esfregou o rosto com as duas mãos enquanto rosnava.

"Meus advogados me disseram que tenho base para um processo por quebra de promessa. Mas eu não queria constrangê-lo. Agora que tenho o Castelo Twill, não preciso da segurança do casamento. Uma dissolução discreta é melhor para todos os envolvidos."

"Não. Não é melhor. Não mesmo."

Não era o melhor para Piers, nem para Hermione. E, com certeza, não era o melhor para Harry. Tinha adiado sua carreira de lutador profissional depois da morte do pai.

Ele não teve escolha.

Com Piers fora do país, Harry se viu, ainda que de má vontade, no comando da fortuna Granville. O lugar dele era em um ringue de boxe, não em um escritório. Ele sabia disso, como também o sabiam os advogados e administradores, que mal conseguiam esconder seu desdém.

Eles apareciam armados com pastas, livros-caixa e dezenas de assuntos para que ele resolvesse, mas antes de Harry entender a primeira questão, eles já estavam discutindo a próxima. Cada reunião deixava-o agitado e fervendo de ressentimento – como se tivesse sido enviado para Eton outra vez.

Harry quase podia ouvir o pai se revirando na cova, cuspindo vermes e bravejando aquelas mesmas palavras irritantes e conhecidas: Filho meu não vai ser um bruto sem educação. Filho meu não vai desgraçar o legado desta família.

Harry sempre foi uma decepção. Ele nunca foi o filho que seu pai queria. Mas fez sua própria vida, ganhou seu próprio título – não de "lorde", mas de "campeão". Assim que Piers voltasse para a Inglaterra e se casasse, Harry estaria livre para lutar de novo e recuperar seu título.

Se Hermione cancelasse o casamento, contudo...? Seu irmão viajante poderia lhe dar as costas e desaparecer por mais oito anos.

"Piers, provavelmente, também gostaria desse mesmo desfecho", disse Hermione. "Ele gostaria de escapar do compromisso, mas sua honra não permitiria que ele o dissesse. Quando souber que a dissolução está feita, imagino que ficará aliviado."

"Piers não vai ficar aliviado. E eu não vou deixar que você faça isso."

"Eu não quero briga." Ela enrolou os papéis e bateu a mão no alto deles. "Por favor, perdoe minha intrusão. Vou embora, agora. E vou levar estes documentos comigo para Kent. Se você mudar de ideia quanto a assiná-los, vou estar no Castelo Twill. Fica perto da vila de Charingwood."

"Não vou assinar. E guarde minhas palavras, você não vai pedir para que ele os assine. Quando Piers voltar, verá que as fofocas não têm fundamento. Você vai se lembrar das razões pelas quais aceitou ser a noiva dele. E irá casar com ele."

"Não. Não vou."

"Pense bem. Você será uma marquesa."

"Não", ela disse. "Não vou mesmo."

O tom de voz baixo e solene de Hermione irritou Harry mais do que gostaria de admitir. Diabo, até as palmas da mão dele estavam começando a suar. Era como se ele pudesse sentir que sua carreira – tudo pelo que tinha trabalhado, a única coisa que fazia sua vida valer a pena – escorregasse de suas mãos.

Ela se moveu em direção à saída e ele se apressou para pegá-la pelo braço.

"Hermione, espere."

"Ele não me quer ." A voz dela falhou. "Você não consegue entender isso? Todo mundo sabe. Eu demorei tempo demais para ver a verdade. Anos demais. Mas cansei de esperar. Ele não me quer mais e eu não o quero. Tenho que proteger meu coração."

Maldição. Então era disso que se tratava. Ele deveria ter imaginado. A razão para a relutância repentina dela era tão evidente quanto o leão no brasão dos Potter.

Harry era o rebelde da família, mas Piers tinhas sido esculpido na mesma pedra de onde saiu o pai. Honrado, orgulhoso, inflexível. E, acima de tudo, sem vontade de demonstrar emoções.

Harry não tinha nada em comum com uma debutante da sociedade, mas sabia como magoava se sentir indesejado pelo Marquês Potter. Afinal, ele passou a própria adolescência faminto pelo menor sinal de aprovação ou afeto de seu pai – e se odiava porque esses sinais nunca vieram.

"Piers quer você." Ele impediu a objeção dela massageando o braço dela com seu polegar. Deus, como sua pele era macia. "Ele vai querer. Faça seus planos de casamento, Hermione. Porque quando ele a vir outra vez, o que irá sentir vai ser como um soco nas costelas. Vai vê-la naquele vestido grandioso, rendado, com florzinhas espalhadas pelo seu cabelo. Ele vai querer assistir a você caminhando pelo corredor da igreja, ao mesmo tempo que sentirá o peito inchar e quase explodir de orgulho a cada passo que você der. E, acima de tudo, ele vai querer ficar diante de Deus, amigos e família, de toda a sociedade londrina, só para dizer para todo mundo que você é dele. Dele e de ninguém mais."

Ela não respondeu.

"Você também vai querer isso." Ele apertou de leve o braço dela antes de soltá-la, então tocou rapidamente o queixo de Hermione.

"Guarde minhas palavras. Vou ver você se casar com meu irmão dentro de um mês – ainda que eu mesmo tenha que planejar o maldito casamento."

"O quê?!" Ela estremeceu. "Você? Planejar o casamento?"

Um sorrisinho brincou nos lábios dela enquanto Hermione olhava para as vigas expostas do teto, as paredes de tijolo à vista, os móveis toscos...

Depois se voltou para ele – a coisa mais bruta e deselegante naquela sala.

"Agora estou quase com pena de o casamento não acontecer", ela disse, afastando-se. "Porque isso seria engraçado de ver."


Eu sei eu sei... Lá vem ela com mais uma fanfic tendo outra que mal atualiza mas, eu simplesmente não consigo me controlar. Além disso, só estava querendo ver a reação de vocês a fanfic, quando acabar a do duque, meu foco estará nessa. Eu acho que já deu para ver um pouco como a história vai desenrolar e espero que vcs gostem!

Obs: Essa história é uma adaptação de diga sim ao marquês de Tessa Dare (É o segundo livro da trilogia "Castle ever after" - O primeiro é Romance com o duque mas pode ser lido separadamente).