Talvez fosse culpa dos demônios. Se as suas únicas companhias são monstros durante meses, você acaba se tornando um pouco como eles também. Ela se agarrava a essa concepção como um suicida se agarra a corda antes de pular.

Os dentes afiados dele respondiam às suas perguntas de uma forma que palavras jamais conseguiriam.

-Levante-se.

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Os dias passavam rapidamente e sem nenhum acontecimento importante. As árvores ainda estavam lá, assim como a grama, o sol, as nuvens e tudo mais o que ela lembrava. A paz só era perturbada às vezes pelo aparecimento de aranhas, que ela matava sistematicamente e com um prazer reprimido, agarrando suas teias e as destruindo com ódio. Era a única hora do dia em que ela sentia que seu sangue estava correndo suas veias, lenta e ininterruptamente.

A noite era uma história completamente diferente.

As noites eram repletas de escuridão e barulho e caos. Seu hiraikotsu destruía sem piedade tudo que era vivo, mas não deveria ser. Não merecia ser.

(Mas quem era ela para julgar?)

Toda as vezes que, por acaso, o sangue escorria para fora de algum ferimento, ele parecia escorrer grosso e pegajoso e parecido com o sangue que fica na carne apodrecida. Quando isso acontecia, ela se limpava furiosamente com a água gelada dos rios que existiam nas florestas, e se perguntava se poderia envenenar suas lâminas com o próprio sangue.

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O relacionamento deles não tinha nada de complexo. Todas as noites, eles se encontravam, ele a matava, e ela acordava de manhã sentindo dor dentro de suas entranhas.

A complexidade está nos olhos de quem vê, e seus olhos não conseguiam ver mais nada a não ser o negro da noite e o brilho do luar sobre a planície. Às vezes, ela se perguntava sobre o que os olhos dele viam, e se arrependia imediatamente. Tudo em que conseguia pensar era um mundo onde tudo era pintado de ouro e nada tinha valor algum.

Ela era um ser humano, ela gostava de tentar se convencer, e sua humanidade era algo do qual não queria abrir mão absolutamente.

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O mundo para ela era uma casa escura e suja com paredes invisíveis. Ela via o sol e a grama e a luz, sabia que em algum lugar, talvez, houvesse algo que valesse a pena ver. Mas era uma casa fechada e triste, e sua família havia pegado as chaves e levado quando havia ido embora.

-Só é assim, - dizia o senhor-demônio - porque você quer.

Mas ela só o olhava com ódio e segurava sua arma com mais força. Ela o ainda ouviu murmurar alguma coisa parecida com 'culpa', mas preferiu ignorar (interiormente, por mais que odiasse admitir, ela ainda se perguntou se ele estava falando dela ou dele próprio).

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Todos morreram. O mundo todo estava morto e só monstros e demônios e ela haviam restado, ela que tentava a todo custo fazer honra ao título de 'último ser humano vivo', mas só conseguia pensar, cada vez mais, que a distância entre um ser humano e uma besta era menor do que qualquer um imagina.

Era, uma voz irritante a lembrava o tempo todo, do tamanho do fragmento de uma jóia.

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O demônio tinha luas crescentes refletidas em seus olhos.

-Por que você ainda insiste? – o jeito como perguntava parecia dizer que a responda não o interessava realmente. – Acabou. Eles foram embora.

Acabou.

Ainda não, suplicava ela. Ainda não.