1802 Contos de RedBeauty

O primeiro passo que dei para dentro do quarto fez com que tablado de madeira rangesse, me fazendo hesitar se deveria seguir. Não havia iluminação no quarto, a não ser pela da lua quase cheia que brilhava destacando-se no céu em meio a tantas estrelas comuns as noites de inverno de Storybrooke. O verdadeiro breu instalado no quarto fez com que eu só percebesse a silhueta de Belle na cama, já adormecida, ou fingindo estar. Engoli em seco, pois há algumas noites que eu notara que a jovem vinha se recolhendo antes mesmo de nos encontrarmos para um beijo de boa noite.

Tirei a camisa branca do uniforme da lanchonete, deixando-a em cima da poltrona, e me mantendo apenas com a regata branca que usava por baixo da camisa. Fazia cerca de dois anos que a Vovó havia falecido, fazendo com que a lanchonete e pensão tornassem minha responsabilidade por completo. Belle, a maior parte das vezes, ficava em casa, cuidava da pensão, onde inaugurara uma sala de leitura cheia de estantes com os mais diversos livros, enquanto que eu, administrava melhor a lanchonete. Suspirei, mais uma vez olhando-a dormir, e me perguntei se talvez eu devesse me aproximar, dizer boa noite.

Acabei desistindo da ideia, por medo de interromper seu sono, ou bem falando o velho e bom português, com medo de encará-la, eu sabia que no mais tardar alguma conversa viria, e só de pensar nessa possibilidade ficava extremamente desconfortável.

Desviei os olhos do quarto, e foi então que um livro em especial me chamou a atenção. Eu o reconhecia. Fui me aproximando até a escrivaninha, acomodando-me na cadeira de escritório que havia ali. Passei a mão por cima daquela capa de couro, relembrando meu aniversário quando ganhara este livro. Meus olhos fixaram naquele título escrito em dourado: "1802 Contos de RedBeauty". Belle, em sua muita criatividade para presentes, havia surgido com a ideia de escrevermos contos sobre nossa história juntas, sobre nós, mas a bem da verdade, ela sempre escrevera ali bem mais do que eu.

"- Ruby...Ruby...não está esquecendo de nada, amor? -" Disse ela uma vez em nosso aniversário de dois anos de namoro. Poucas as páginas ali eram assinadas por mim nestes cinco anos que estávamos juntas, porém, de alguns meses para cá eu não havia se quer pego no livro.

Pela minha cabeça, tantas coisas passaram, o medo de haver algum recado ali, exigindo que eu saísse de casa, que nossa relação estava acabada. Eu sabia que meus últimos erros com Belle iam além de algumas páginas não escritas, e as atitudes dela vinham demonstrando isso.

Mal trocávamos um bom dia ou boa noite, e se havia um selinho ao dia era muito. Durante os anos que passamos juntas, por diversas vezes, a vi me chamar a atenção pela falta de demonstração de amor, que indicava falta de interesse e tantas outras teorias que Belle criava em sua cabeça. Mas a verdade, era que eu nunca soubera lidar com sentimentos, mal conseguia entender os meus, quanto mais os alheios. E quanto mais eu postergava lidar com isso, pior ia ficando.

Nunca disse que não a amava, pelo contrário, quando a encontrei, soube que era ela, que é ela e que seria ela por toda a minha vida, mas meu ledo engano foi ter acreditado que isso fosse suficiente para me fazer amar, demonstrar e cuidar. Mais do que nunca eu havia tido a certeza de que uma relação não poderia ser baseada apenas em amor, pois uma vez que as sementes deste são plantadas, é necessário regar e continuar a cuidar para que floresça. Finalmente aquelas frases tão clichês me faziam sentido, e foi ai que eu comecei a perceber que a situação era grave.

Abri o livro, ajustando a luminária com uma luz bastante fraca, para não acordá-la, e comecei a folhear aquelas páginas que pareciam intactas de tão bem cuidadas. O capricho de Belle para cada coisa que ela fazia, sempre bem feita, nunca por fazer, me admirara desde o dia em que a conheci.

Me impressionei com a quantidade de páginas escritas, ao mesmo tempo que tive medo, receio do que ela tanto poderia ter ali escrito. Porém, à medida que fui avançando nos contos, nas páginas, foi notando que as palavras foram diminuindo, os contos encurtando, até o momento de só sobrarem páginas em branco.

Meus olhos se encheram de lágrimas de modo a ser difícil de controlar. Desde a morte de minha avó que eu havia prometido que seria forte, que não as derramaria mais, mas aquele nó na garganta, que chegava a doer, aquele choro causado pelo medo de que nosso amor tivesse acabado assim, em páginas vazias, páginas em branco, fez com que pouco a pouco, eu permitisse que elas fossem rolando por meu rosto.

Conto nº1:

"Dezoito de Fevereiro do ano de Dois Mil e Doze. Muitas pessoas pareciam não se importar com datas, mas eu, me prendia tão forte à elas nos momentos que me eram marcantes, que às vezes até mesmo me incomodava, por esperar e querer que também se apagassem aos detalhes. Um detalhe faz a diferença. Um detalhe faz toda a diferença.

Não fazia muito tempo que eu havia conhecido o que era a liberdade depois de anos trancafiada naquele quarto. A luz do dia, a cidade, as pessoas, tudo eram uma enorme novidade que eu necessitava urgentemente vivenciar pelo tempo perdido.

Uma caneca de café a minha frente fazia com o cheiro daquela bebida preta fosse dominando o aroma no ar, por mais que quisesse me concentrar nas torradas que haviam acabado de me servir, meus olhos continuavam, discretamente, acompanhando os movimentos daquela jovem. Saia curta, camisa decotada, cabelo com umas três tonalidades diferentes, uma combinação de cores completamente brega e uma maquiagem exagerada. Eu teria todas as críticas a fazer a ela, vários coisas para apontar, mas no instante em que via aquelas orbes verdes claras, quase azuis, por algum motivo, sentia o interior de meu corpo tremer, e de repente, minha mente de esvaziava, e eu me via começando a observar seus traços. As maçãs do rosto proeminentes e avermelhadas, a forma como franzia a testa em um jeito brincalhão com as conversas jogadas fora e até mesmo o leve balançar de seu quadril conforme caminhava. Senti minha garganta queimar, seria aquele um sinal de ciúmes? Eu tinha vontade de que ela estivesse debruçada em minha mesa, conversando comigo e lançando aqueles olhares perigosos para mim.

Revirei os olhos, afastando os pensamentos egoístas, eu estava ficando louca. Tinha Rumple, aquele a quem eu havia declarado amor eterno e finalmente conseguira reecontrar depois de tantos anos, como, então, poderia ficar ali, desejando e pensando na garçonete da lanchonete? Suspirei, se quer sabia seu nome por medo de encarar aquele crachá, tão perigosa e estrategicamente próximo ao decote de sua camisa.

Baixei meus olhos, encarando novamente a bebida escura e que parecia estar até gelada, reprimindo e reprovando tudo que me passava pela cabeça. Tomei um gole, e o gosto amargo e frio me obrigou a fazer uma careta que foi interrompida por uma voz que eu estivera atenta, ainda que de longe, instantes antes.

"- Olá, sou Ruby..."

Meus olhos azuis se arregalaram na mais completa surpresa, a bebida permanecia em minha boca e só havia duas soluções. Engoli rapidamente, sentindo o gosto amargo me queimar a garganta pela forma apressada com que fizera isto.

"- Belle."

Respondi, ainda encabulada, sentindo meu rosto ferver pela forma com que eu havia sido pega em flagrante. Será que meus pensamentos em algum instante foram altos? Será que a jovem percebera meu olhar?" - Belle.

Eu voltara a primeira página daquele livro. Ao primeiro conto escrito, que eu lera apenas uma vez, no início de nosso namoro ainda, naquela fúria enlouquecida dos corações aquecidos pela paixão. Passei as mãos sobre a página, percebendo que algumas lágrimas haviam caído sobre aquela folha. Talvez Belle me mataria quando fosse buscar o livro, todo aquele enorme cuidado e proteção em vão, o livro de repente teriam páginas manchadas. Manchadas, mas ainda sim, eram sinceras.

Desejei não ter lido aquilo uma única vez, e na busca desesperada de um acerto de contas, meus olhos buscaram e releram uma a uma daquelas palavras que compunham o primeiro conto inúmeras vezes até me fazer perder as contas.

Levantei os olhos, encarando o porta-lapís que havia ali em cima. Sem pensar, peguei uma caneta, e quando a tive em mãos, me perguntei se seria uma boa ideia. Logo eu, tão péssima com as palavras, tão péssima em falar dos sentimentos, tentar dizer algo.

Mas Belle merecia, meu amor a ela merecia, e eu teria que tentar.

A folha do verso à que ela havia escrito estava em branco, e tentei me concentrar, buscando o que deveria ter feito anos atrás. Minha letra saía um pouco mais tremula que o normal, porém, mesmo assim continuei naquelas palavras, naquilo que era quase um recado, uma forma de me desculpar por tantas mancadas.

"Cabelos castanhos, muitos sorrisos e os olhos que me faziam ter vontade de mergulhar naquela imensidão azul. Belle, tão bela quanto o nome. Tão princesa quanto a fama. Não somente no sentido Real da palavra, e sim na dignidade, na moral e na alma. Tive medo do instante em que a vi, medo pela cascata de emoções que me desencadeava. De repente, conforme os dias que íamos dividindo juntas, eu me via como nunca imaginara antes. Pensamentos constantes, frio na barriga e tantas outras coisas que eu sempre classificara como "caretagem". Mas nada me deixava mais com medo de lhe revelar a verdade, de pensar na possibilidade que pudesse afastar aquela que eu desejava ter comigo por quanto tempo me fosse permitido."

ps: O vestido azul e xadrez que você usava naquele primeiro dia da lanchonete, sempre fora o meu favorito.

Não fora fácil encontrar palavras, me ater a detalhes e expressar meus sentimentos de uma forma que eu nunca havia feito antes, de uma forma que eu nunca havia parado para pensar, porém permaneci em claro aquela noite inteira, completando um a um dos contos que Belle havia escrito.

Ao chegar no final das páginas escritas, o último conto, nº 1793, o qual Belle havia se dedicado, já expressando a crise do nosso relacionamento, eu não conseguia conter as lágrimas, tão pouco o choro...como eu havia deixado chegar nesse ponto?! Nossa história que era tão linda, digna de páginas dos mais renomados romances.

Hesitante, porém com vontade de continuar aquelas páginas, de completar nossos 1802 contos, tornei a pegar o lápis e começar a escrever. Provavelmente não havia usado palavras tão belas quanto as de Bell, e possivelmente eu havia deixado escapar uma ou outra ocasião, mas quando cheguei no último conto que deveria escrever, eu sabia muito bem quais as palavras que gostaria de usar.

Conto nº1802:

" Eu sei que esta não é a solução, mas me ajuda a buscar um novo começo?!

Eu amo você,

R."