INTERCÂMBIO DE CORAÇÕES

ShiryuForever94

Presente de Natal para Akane Mitsuko Adachi Sagahara Tange (meu eterno Valentine e o Shura do meu Saga. Te amo)

Onze horas da noite. Não era cedo, obviamente, mas ao menos não fora preciso ficar para lavar os pratos até uma da manhã como no dia anterior. Não que Shura Castiblanco fosse reclamar das horas extras que iria receber, mas era cansativo.

Ser um imigrante nunca era fácil, mas sentia-se bem mais à vontade em Vancouver, no Canadá, do que jamais se sentira em sua cidade natal. Se é que se poderia chamar a vila medieval de onde viera de cidade.

Albarracín ainda tinha pinturas rupestres nas cavernas como grande atrativo turístico e, como toda pequena cidade, Shura jamais pudera ser quem era naquele lugar. Era uma aldeia, isso sim. Com apenas um pouco a mais que mil habitantes, ser gay naquele lugar era algo bem arriscado, na verdade impossível Não existia "isso" por lá. Toda a atmosfera secular, a população envelhecida, as tradições, os casamentos arranjados entre famílias antiquadas e carentes de alguma novidade em suas vidas. (1)

"Ah, Shura, Angelita é uma moça tão prendada. Ela sabe tudo que é preciso para fazer um homem feliz. E está numa idade ótima para casar e ter filhos. Por que não pensa a respeito?" A senhora Castiblanco ansiava por netos e o mais velho de seus três filhos já estava com dezenove anos. Era idade o bastante para se casar.

"Não tenho emprego ainda, mamá." Shura respondera sabendo que não era motivo suficiente. Na verdade, estava mais interessado no irmão mais novo da garota, mas não poderia falar sobre isso, jamais. Aquelas amarras o deixavam doente. Não daria certo viver por ali, não poderia desgostar a idosa viúva que lutara arduamente para cuidar dos três filhos depois que seu pai havia perecido por conta de uma epidemia de gripe aviária há muitos anos, quando ainda era uma criança peralta de seis anos.

Shura suspirou sentindo o ar gelado do inverno do Canadá maltratar seu rosto descoberto enquanto caminhava até o skytrain que o levaria para casa. Para quem iniciara sua vida num quarto miserável num basement, espécie de porão, comum no Canadá, saber que estava indo para seu apartamento era uma alegria e tanto. Ele não reclamaria de seu emprego de lavador de pratos em uma rede de fast food, pagava as contas, mas almejava melhorar em breve. Ainda sentia falta de sua aldeia natal. Fora muito feliz por lá em sua infância, mas ser homossexual dentro do armário pelo resto da sua vida, casar, ter filhos e fingir que estava tudo bem não condizia com a natureza séria do rapaz.

O espanhol tentara jamais mentir sobre sua homossexualidade, por pior que pudesse ser para quem quer que fosse. No entanto, sabia que tudo seria terrível em sua cidade natal e por isso tomara uma decisão difícil.

Fazia dois anos que viera embora da Espanha para o Canadá, com a ideia de fazer um bom intercâmbio e aprimorar o inglês que começara a aprender por conta própria. Não sabia bem onde iria morar, em qual país, pelo menos não até se apaixonar, perdidamente, por um colega da escola de línguas. Não poderia, jamais, voltar para sua antiga vida. Nem ir embora do Canadá.

O skytrain chegou, muito vazio por ser inverno e por ser tão tarde e Shura embarcou sentando-se com um pequeno sorriso. Lembrou-se de Saga. Aquele homem era tão... Cheio de vida!

"Olá. Sou Saga Papadakis. Vim da Grécia tentar aprender essa língua horrorosa que pode abrir portas no mundo. E você?" O inglês era arrastado, com forte sotaque.

Shura ainda se lembrava de como conhecera o homem de quase um metro e noventa, absurdos cabelos compridos que batiam nos quadris estreitos e olhos tão azuis que pareciam de mentira. Era apenas o terceiro dia de aula e não fizera muitas amizades, nem sabia se queria.

"Ah, sim." Shura se sentiu incrivelmente intimidado. O sujeito tinha cruzado toda a sala para falar com ele? Por que motivo? "Meu nome é Shura. Sou espanhol, muito prazer." Seu inglês não era muito melhor, mas enfim, tinha que praticar, não é mesmo?

"Você tem olhos verdes. São bonitos. Esse corte de cabelo também lhe assenta muito bem. Gosta de café? Ou prefere um pouco de álcool? O que vai fazer mais tarde? Gosta de comida grega? E de massas? Talvez sushi? Tem muito lugar para comer em Vancouver!" Saga não parecia nada preocupado em disparar perguntas como se fosse uma metralhadora.

O espanhol franziu levemente o cenho. "Por que o interesse?" Entendera mais ou menos tudo que o outro dissera. Estava complicado conversar ainda. Tinha noções muito boas de inglês, mas não era fluente.

"Se ainda não tiver um bom lugar para ficar, ou melhor, se onde você está não for bom, tem uma vaga no meu homestay. Éramos cinco, mas um dos garotos teve problemas de saúde e voltou para a Itália. Seu alojamento é legal? Só estou oferecendo por causa do dinheiro, é claro, não por você ser lindo." Quem disse que Saga parava de falar?

"Céus. Eu nem me lembro mais da primeira pergunta." Shura estava ficando irritado. Ele dissera que o achava lindo? Que tipo de conversa era aquela?

"Perguntei se você era gay." Saga cruzou os braços, por sinal muito bem feitos, e riu para Shura.

"Como é que é? Você não perguntou isso!" O moreno agora estava positivamente prestando atenção. Ficou corado. Sabia que estava completamente sem ação ao sentir o corpo inteiro esquentar. Entendera direito?

"Meu gaydar não anda grande coisa, então é melhor perguntar. Então? Sim ou não?"

"Hein?" Shura não conseguia acreditar na cara de pau do sujeito!

"Eu sou gay, se você não for, só dizer. Sim ou não?"

O espanhol não conseguia encontrar um simples "yes" na sua mente, hipnotizado que estava pelo olhar de puro azul, os lábios que pareciam macios, o queixo masculino, a presença firme e potente. Não, não ia usar a palavra potente! Nem pensar!

"Cara, você está tendo um derrame ou algo assim?" Saga parecia preocupado.

"Não." Shura conseguiu falar enquanto agradecia aos céus por respirar ser algo automático comandado pelo cérebro ou já teria morrido.

"Não para qual pergunta?" Saga insistiu com o olhar cheio de sorrisos.

"Qualquer uma!" Shura respondeu mal humorado. Nervoso. Perdido. Não podia existir um deus grego daqueles. Bem, ele era grego, afinal...

"Okay. Não sou preconceituoso com héteros, ainda podemos sair. Se não se importar em sair com um viado. Gosta de balada? A Davie Street tem ótimos restaurantes e boates." Saga agora ficara ao lado de Shura esperando o sinal da próxima aula.

A sala tinha várias ilhas de estudo que consistiam em mesas redondas com pé alto, cada uma com quatro notebooks. Ao redor, bancos também altos para os alunos.

Shura respirou fundo. Bem fundo. "Por que achou que eu era gay?" Perguntou, um pouco menos desesperado por sair correndo por haver outras pessoas na sala. Vai que o sujeito era algum serial killer homofóbico procurando por uma nova vítima.

"Você é bem retraído e discreto, mas não olha para as garotas. Repeliu aquela francesinha linda que está lá na mesa da frente mesmo com ela quase pulando no seu pescoço. Muito difícil caras da nossa idade ignorarem uma coisinha linda daquelas."

"Eu posso ser comprometido, ora!" Shura respirou fundo. Bem fundo. De novo.

"Você é comprometido?" Saga agora se inclinara um tanto olhando bem dentro dos olhos alheios.

"Eu não!" Shura respondeu na defensiva, pegando um livro de gramática e colocando entre os dois, segurando-o contra o peito, como se fosse uma barreira.

"Ótimo. Não costumo dar em cima de homem alheio, seja hétero ou gay."

"Você está dando em cima de mim?" Shura não conseguia acreditar.

"Bem, eu estava, mas não perco meu tempo com héteros. Não vale à pena." Saga revirou os olhos e passou as mãos pelos cabelos, num gesto fluido e que para Shura pareceu muito sensual.

Um pequeno silêncio e Saga começou a tamborilar na mesinha, mexendo no mouse e entrando no google. "Uma pena você ser hétero. Faz bem o meu tipo." Saga comentou de maneira casual enquanto abria um vídeo de música do youtube. "Gosta de Lady Gaga? Meio clichê, eu sei. Estou mais para fã de bandas de rock e música indie, mas é um bom meio de começar uma conversa: falar de música."

"Não vai voltar para o seu lugar?" Shura estava se sentindo bem intimidado e, ao mesmo tempo, estava adorando toda aquela atenção porque, sendo muito sincero, Saga era o homem mais bonito daquela sala e o mais bonito que já vira em toda sua vida.

"Estou incomodando? É que você parecia precisar de um amigo, ou alguma coisa assim. Sempre calado e no fundo da sala, almoça sozinho, pega o metrô em silêncio. Eu posso ser um bom amigo e, como falei, preciso de outro roommate. Estou arrasando no inglês, não acha? Você não fala grego, fala?" Olhou de maneira esperançosa para Shura.

"Eu não. Você fala espanhol, por acaso?" Não ia conseguir acompanhar o ritmo daquele homem, nunca mesmo. Perguntas demais, energia demais.

"Na verdade eu falo um pouco. Tinha vizinhos espanhóis lá em Atenas e o filho deles, um gatinho por sinal, me ensinou algumas coisas. Como ele morou por lá uns cinco anos, acho que eu consigo me virar no espanhol." Sorriu de maneira gentil.

"Al menos esto." Shura respondeu com um sorriso leve.

"Se importa mesmo se eu ficar por aqui? Eu sei que falo demais e que pareço nervosinho, mas posso ser uma boa companhia para estudos. Estou realmente interessado em aprender inglês." Saga parecia mais normal e tranquilo naquele momento.

Shura ficou olhando-o por alguns segundos e recolocou o livro na sua mochila, com calma. "Sabe, na Espanha, na aldeia em que eu morei a vida inteira, todo mundo tomava conta da vida de todo mundo. Eu nunca pude ser quem eu sou. Quando fui passar um mês em Sevilha, vigiei cada passo que dei, cada entonação de voz. Um único dia em que me dignei observar um grupo de rapazes que conversava alegremente numa rua com um pouco mais de insistência... Bem, foi o bastante. Foi a primeira vez que ouvi a palavra maricón."

Saga se virou de repente e encarou Shura. "Então você..."

"Acho que você é a primeira pessoa para quem eu conto." Shura respirou aliviado, um sorriso tímido, uma sensação de libertação como não sentira antes em sua vida ainda tão curta.

Saga puxou seu banco mais para perto de Shura.

"Vou assistir aula com você pois assim podemos aprender juntos e fazer os exercícios em grupo com mais tranquilidade, já que, como eu também sou gay, vamos ser um exército invencível! Podemos combinar as roupas também. Tem algum preconceito contra vestir rosa ou roupas com cores menos comuns para homens? Se você for do tipo mais discreto, tudo bem. Uma calça skinny apertando bem a bunda já diz alguma coisa. Posso sugerir umas camisetas menos sisudas que essa sua preta aí. Já pensou em usar decote 'V' para acentuar o peitoral? Você malha? Eu ainda estou procurando uma boa academia. Conhece alguma?"

O sorriso de Saga era absurdamente charmoso. Ele cheirava a algum tipo de madeira, seus cabelos exalavam shampoo de ervas difusas e as mãos grandes em cima da mesa de Shura tinham as unhas limpas e bem cortadas.

Lindo. Ele era absurdamente lindo!

Shura não sabia se dizia alguma coisa, se empurrava o sujeito ou se... Ria. Acabou por gargalhar do jeito completamente estapafúrdio do outro. Não que fosse um sujeito acostumado a sorrir, ou mesmo gargalhar, mas não dava para não rir de toda aquela baderna mental que o grego provocava. Estava nervoso, isso sim.

"Você tem senso de humor! Que bom! Então, vamos comer macarrão com frutos do mar mais tarde? Conheço uns lugares ótimos." Saga agora tinha um sorriso enviesado, os cabelos emoldurando o rosto anguloso.

"Mas eu não conheço você o bastante! Aliás, vou admitir que nem entendi tudo que disse." Shura respondeu deslizando ligeiramente pelo banco, afastando-se um pouco.

"Então vamos nos conhecer com um bom jantar. Não seria bom? Quantos anos você tem? Não é menor de idade, não é? Se for, esqueça tudo que eu disse." Saga somente naquele momento percebera que o rapaz era jovem.

"Claro que não! Ora, já tenho vinte anos!" A voz saindo mais grossa do que pretendia.

"Ótimo. Caso não tenha notado, tem guris de quinze, dezesseis anos nessa turma. Eles ainda estão separando por níveis e idade. Deve levar em torno de uma semana. Eu tenho vinte e cinco anos, se lhe interessa saber. E pare de fugir de mim. Está com a pele arrepiada pela minha proximidade." Saga apoiou o queixo na mão e encarou Shura. "Não me acha interessante?"

Shura fechou a cara. Aquele sujeito era um imbecil irritante, arrogante, entrão, cara de pau, insuportável!

"A aula acaba em torno de três horas da tarde. Podemos ir passear em Gastown antes de irmos jantar. Aliás, conhece a Old Spaghetty Factory? Vai adorar. Tem uma por lá. Uns dez minutos de caminhada daqui." Estavam na Seymour Street e, realmente, dava para ir a pé para aquela parte de Vancouver.

"Não, obrigado." Shura acabou por dizer.

"Tudo bem, não vou insistir mais do que já fiz. Se mudar de ideia, me avise. Vou continuar sentado aqui, se não se importa." Saga ajeitou-se em seu banco e logo a aula começou. Ajudava Shura com algumas palavras e com os programas de computador utilizados pois percebia as dificuldades dele.

"Você não tem um smartphone? Pode acessar todas as aulas pelo aplicativo, bem como entrar no grupo da turma no whatsapp e pedir auxílio ou trocar ideias." Saga perguntou, solícito.

Shura ficou bem vermelho. Não tinha dinheiro para aquilo. Ainda não. Com as poucas economias de seus pais conseguira pagar a viagem, o curso e o lugar onde se hospedara. Na verdade, teria que procurar com urgência um trabalho pois os pais haviam feito algumas dívidas. Sem falar que, ele precisava admitir, o quarto que obtivera era horrível. Úmido, cheirando a mofo, com pessoas que não falavam com ele e um proprietário que reclamava o tempo inteiro que quatro pessoas num cubículo ainda era pouco. "Ainda não pude comprar."

"Por que não tenta na Craiglist? Tem internet onde mora? Se não tiver, pode ir lá no meu porãozinho para consultar." Saga gostara do rapaz um tanto quieto e sisudo. Simplesmente sentira algo ao vê-lo. Um desassossego, uma tristeza no fundo dos olhos verdes de quem agora sabia ser espanhol. (2)

"Minha internet não tem funcionado muito bem e eu tive que vender meu notebook. O único lugar onde posso acessar é aqui." Shura falou num fio de voz se sentindo um pobre coitado. "Estou procurando emprego ainda."

"Tudo bem." Saga não pareceu se importar.


Notas: (1) A aldeia está localizada em um penhasco acima do rio Guadalaviar e suas casas medievais permanecem praticamente intactas. Há uma série de palácios e uma catedral, além de um Parque Nacional com cavernas com pinturas pré-históricas nas proximidades.

(2) A Craigslist é uma rede de comunidades online centralizadas que disponibiliza anúncios gratuitos aos usuários. São anúncios de diversos tipos, desde ofertas de empregos até conteúdo erótico.


E lá vamos nós! Outra Saga e Shura! São quatro capítulos! Animados? Escolhi AU e Vancouver porque conheço bem a cidade e o amor deles precisava de um novo cenário, ao menos para mim. Gostam de Au? Me deixem saber! Obrigada por lerem e comentarem meus trabalhos, faz toda diferença! Feliz Ano Novo!