Tudo era disforme em meus sonhos. Eu me lembrava vagamente de olhos verdes e cabelos pretos, ora lisos, ora encaracolados. E chifres depois – sim, depois o sonho ficava estranho.
Eu nunca me senti uma garota normal, definitivamente. Enquanto as garotas perdiam horas e horas na frente de um espelho, eu gastava esse mesmo tempo em frente a livros e natureza. Às vezes perdia meus pensamentos em um futuro que poderia exercer. Pensava em cursar biologia, talvez. Algo nesse ramo. Conhecer alguém, ter filhos. Mas algo bem fundo em minhas entranhas me dizia que eu estava errada. Algo me dizia que o destino havia traçado alguma coisa para mim, antes mesmo de nascer. A ideia era tão ridícula que acabei gastando grande parte do meu tempo tentando apagar isso de minha mente.
Estúpida ideia.
O meu futuro começou exatamente no primeiro dia de novembro. Eu estava cansada de ir para aula e temendo ficar para recuperação em matemática – da qual eu ainda acho incompreensível – quando a aluna nova chegou. Parecia um pouco estranho demais alguém entrar na escola esse período do ano, mas estava tão alheia que não percebi nada demais. Ah, e sem contar o fato de que ela tinha orelha verde.
–Venha para frente, querida. – A senhora Peacock falou com seu tom irritantemente gentil. – Apresente-se para a turma!
Ela pareceu um pouco tímida ao ter que sair do fundo da sala e ir até ao lado da professora, mas assim que abriu a boca, percebi que ela era exatamente o oposto de tímida.
–Olá! Sou Carly – sim, igual à menina do iCarly – e não, não tenho um programa de vídeo – nem um irmão maluco. – O comentário trouxe algumas risadinhas. – Sou apaixonada por livros, mas péssima em literatura (não se enganem), então nunca me peçam ajuda para um grupo de estudos. Tenho quinze anos e sou um pouco solitária às vezes. – Senti alguns olhos me perfurando, mas os ignorei. A menina sorriu como se estivesse sem graça. – Beeem, é só. – Ela deu um tchauzinho e correu para sua mesa, deixando uma professora de álgebra bem feliz.
–Bem turma, abram seus livros na página 601 e resolvam as questões de função...
As aulas passaram quase até rápido demais. Todo mundo parecia interessado na nova aluna, por isso resolvi deixá-la quieta. Quando o sinal do intervalo bateu, peguei minha companhia fixa (leia-se: livro) e segui para o cantinho que só o faxineiro Bob conhecia: a árvore mágica. Ela não era realmente mágica, mas como eu tinha uns 6 anos e tinha uma criatividade um pouco limitada, resolvi chamá-la assim.
A árvore era uma goiabeira extremamente grande para a mim. Seus galhos eram fortes o suficiente para que eu subisse neles, mas preferi não me esforçar. Estava com uma saia vagamente desconfortável e a última coisa que eu queria era rasgá-la para levar uma bronca quando chegasse em casa.
Abri meu livro na página marcada e suspirei. A sombra e as raízes daquela planta pareciam formar uma harmonia perfeita para aquele tipo de atividade. Afinal, para ler um livro precisa-se de um ambiente, um clima e um espaço agradável para conseguirmos nos concentrar o máximo...
–Oi! – Pulei de susto. Meu pulso acelerou alguns cem batimentos cardíacos.
Olhei para a direção da voz e vi a tal de Carly olhando para mim com uma carinha de feliz.
–O que está lendo? – Ela se sentou do meu lado, mirando o olhar no livro.
–Ah, ah. A Hospedeira. Como achou esse lugar?
–É sobre as almas e humanos que vivem em uma caverna? – Ela perguntou.
–Ahn, sim. Mas como achou esse lugar? Ninguém vem para cá! – Falei.
Ela bateu palmas.
–Ah! Então eu já li! A Stephenie é realmente uma diva. Queria escrever como ela...
Olhei para a cara dela e não sabia se ria ou chorava. Qual era o problema em apenas responder uma simples pergunta?
Ela colocou o cabelo cacheado atrás da orelha como se fosse algo habitual, mas tive um sobressalto quando vi a orelha dela. Não era nada fora do normal – se você for uma elfo-cor-de-àrvore punk. Ela era meio pontuda, numa cor escura que quase mesclava com sua pele negra, mas tinha pequenas partes brancas, como se fossem musgo. Em torno de seu glóbulo haviam cinco ou seis piercings, todos com um pingente de pinha.
–Ahn, hum, Carly, sua orelha é assim mesmo...? Desculpe-me por perguntar, mas...
Ela ficou completamente vermelha e logo cobriu sua orelha com o cabelo liso dela.
–Ahn, é um tratamento que venho fazendo... – O sinal tocou, interrompendo-a. – Vamos, não podemos perder a aula!
–Mas já? – E eu nem conseguira ler nada!
–Quando ficamos com amigos nem conseguimos ver o tempo passar, eu sei! – Ela parecia feliz demais quando entramos na sala. A professora de biologia deu uma olhada cautelosa em Carly, mas não fez perguntas.
–Atrasada na sua primeira aula, senhorita? Hoje tem teste surpresa. – Carly deu uma guinchada esquisita. – Ah! Desculpe-me. Não pude avisar, sabe. É por isso que chamamos de surpresa. – A professora passou dois testes para nós e nos sentamos no fundo da sala, com eu bufando e Carly saltitando.
Qual era o problema daquela garota?
–Boa sorte, Amélia. – Ela deu um sorriso infantil.
–Ah, para você também. – Falei.
Ela deu uma risadinha quase maliciosa.
–Eu não preciso. – Ela sussurrou quase para si mesma. Logo em seguida, Carly respondeu as perguntas quase tão rápido quanto um piscar de olhos.
O quê?
–Lia, volte seu olhar para o seu teste, por favor. – Ela estava com sua voz de irritada. Ou terá de fazê-lo na direção.
Eu engoli em seco e voltei o olhar para meu pedacinho de papel.
"Classifique as drogas em suas respectivas classificações. Atenção, somente as respostas completas serão avaliadas."
Era fácil. Mas algo do meu lado, da direção de Carly, me chamava com desespero. É quase aquele sentimento de que algo está dando horrivelmente errado e só você pode sentir. Aquele desespero irracional, algo que surge do fundo da garganta e sobe como uma bile devastadora.
Amélia estranhou o silêncio. Ela parecia estar em uma cúpula de proteção que, aos poucos, ia se deteriorando.
O tempo está acabando, minha filha. Ela ouviu a voz que surgiu em sua mente. Corra para seu destino, ou ele correrá para você.
Eram passos. Muitos passos. Uma marcha alta e ritmada do lado de fora: na rua. E cavalos também.
Olhei para a janela, esperando ver algo. As persianas estavam fechadas. Ela se coçou para abri-las.
–Bianca? – Chamei, na minha voz mais controlada que pude – é óbvio que ela saiu deformada. – Eu poderia abrir as janelas? Eu... Preciso de ar fresco.
Ela estreitou os olhos.
–Vá. – Falou. – Entregue-me o teste e saia um pouco. Passe na enfermaria e pegue a autorização para entrar novamente.
Assenti e saí o mais rápido que pude, tendo que me desviar de alguns carinhas da limpeza que faziam o trabalho deles. Bob deu um aceno e eu fiz um sinal de que estava saindo.
Claro que isso tudo foi graças à minha mãe. Eu tinha praticamente livre acesso à sair da sala quando eu quisesse.
OK, não quando eu quisesse, mas eu tenho uma série de problemas que só são resolvidas quando eu saio pra fora daquele lugar. Algo mais psicológico, de acordo com o médico, mas que de certa forma, funciona.
Saí para a portaria, tentando localizar o alvo da barulheira. Lá no fundo da rua, quase no cruzamento das avenidas, uma tropa marchava. Eu não saberia dizer se era uma tropa ou um grupo de músicos se preparando para o Dia da Independência. O asfalto brilhava, elevando um ar quente, distorcendo minha visão. Ora os homens estavam com roupas roxas, ora com uniformes da federação. Ora ambos se fundiam.
Uma Carly esbaforida chegou ao meu lado.
–Ah! Eles estão marchando ainda! Graças aos céus! Venha comigo agora, Amélia. – O tom de voz dela era cortante, mandão. Lia não gostou.
–Como sabe meu nome? – Agora que ela tinha se dado conta. Ninguém, além dos professores e sua mãe, sabiam seu nome verdadeiro. Por aqui ela era apenas Lia. – Por que você age como se nos conhecêssemos há anos? Só te vi hoje, não vou com você. – Eu simplesmente odiava que pessoas sem poder mandassem em mim. Era tão revoltante.
–Isso não importa, Lia! Temos que correr! O acampamento está em perigo! Por favor, confie em mim! – Ela falou, quase gritando.
–Que acampamento? – Gritei de volta. A minha cabeça começou a doer e a minha vista começou a ter pequenos pontos pretos. – Não vou a lugar nenhum com você! – Fiquei com vontade de chorar. Isso era infantil, provavelmente causado pela tontura e vertigem que sentia.
Carly me olhou com cara de quem ressentia. Ela assobiou para o céu e pingou um leite branco em meu rosto.
–Sinto muito.
Logo eu caí em um sono profundo, com minha mente flutuando em um lugar branco com uma música de fundo suave, como o bater de asas.
O amanhecer veio lentamente para mim. Depois percebi que o sol não podia nascer no oeste, então era a noite que caía. Minha mente ainda permanecia lenta – ou sempre havia sido; eu não conseguia me lembrar. Fiz um esforço a mais para olhar em volta. Era um campo margeado pela areia, com algo brilhante lá no fundo. Aquela cena era totalmente alheia ao que era visto em Nova Iorque, de onde eu tinha vindo.
Onde estou?
Um rosto familiar apareceu em meu campo de visão. Carly me olhava com curiosidade – e seu sorriso feliz que não parecia sair de seu rosto. Sentei-me com sua ajuda, tonteando um pouco.
–Quer comida? Tenho sanduíches aqui.
Assenti enquanto olhava para o horizonte. Aquele por do sol era tão fascinante e exótico que parecia parte de um filme.
–Aqui. – Ela colocou o sanduíche de presunto em minha mão e eu o comi automaticamente. Ao longe, vi relinchos e um cavalo pastando, calmamente. Tudo parecia muito real, mas eu estava aceitando aquilo como um sonho. – Sua dor de cabeça passou? – Ouvi uma voz distante.
Demorei um pouco para perceber que ela falava comigo.
–Uh?
Ela deu uma risadinha.
–Isso é o efeito de Hipnos. Parece até que estamos tentando conversar com uma árvore. – Por alguma razão isso tinha sido muito engraçado para ela, porque ela riu por uns bons minutos. Quando percebeu que estava sozinha, limpou a garganta e repetiu. – Você está melhor? Você disse que estava com dor de cabeça quando estávamos vindo para cá.
Ouvi suas palavras desta vez. Meus sentidos estavam voltando ao normal.
–Aliás, que lugar é esse? Como viemos para esse lugar? E quem é Hipos?
Ela respirou fundo, tentando absorver as perguntas, acho. Depois de alguns minutos, ela respondeu.
–Bem, estamos em Long Island, tentando fugir das águias romanas. Viemos com o Josh. E HIPNOS... Bem, você descobrirá logo.
–Ahn? Será que você poderia responder as minhas perguntas de um jeito que eu entenda? E que eu não precise fazer outras.
Ela riu, acariciando a grama como se fosse um filhote fofinho de algum bicho.
–Quíron sempre reclama disso. – Ela riu novamente. – Perdoe-me. Só ele poderia te explicar direito.
–Ele quem? – Minha voz começou a ficar aguda, como quando eu me estressava.
–Ah, Quíron. Ele tem treinado séculos o que falar para você. Pelo menos, foi o que eu entendi.
–Ah! Eu oficialmente desisto. Tem mais sanduíche aí? Estou com uma fome sinistra.
E era verdade. Eu aparentemente havia dormido por quase um dia inteiro, sem comer nada. E eu era movida por comida. Por incrível que parecesse, eu supostamente não engordava. Metabolismo rápido, ou algo do tipo. Para mim era indiferente. Mas agora, eu quase podia sentir as minhas costelas à mostra.
Ela me entregou outro e logo levantou. Fora somente agora que olhei –realmente olhei – para ela. Carly vestia um vestido bonito: florido, com alças e cabelos longos e encaracolados. Sua pele parecia verde, com o reflexo da água. Ela parecia reavivada, livre sobe aquele prado. A lua aparecia aos poucos, deixando uma luz parecida com um holofote em cima dela.
–Temos que ir, Lia. Os romanos pararam. De acordo com Leo, Reyna tomará providências sobre retardar o ataque deles. Se ela conseguir segurá-los, será, no máximo, por dois dias. – Ela estendeu a mão e ajudou-me a levantar. Tonteei, mas me mantive firme.
–Carly, para onde e como iremos? Sinto muito, mas acho melhor dormirmos por aqui, então.
Ela sorriu.
–Ora, nós vamos com Josh.
Quem é Josh? Perguntei em minha mente.
–Jooosh. – Ela assobiou e o cavalo que estava pastando veio em nossa direção. – Ele é o Josh.
O cavalo não era exatamente um cavalo, e foi isso o que mais me assustou. De frente ele parecia normal, um pouco inchado em suas laterais, mas normal. De lado, bom, para resumir, ele tinha asas.
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Oláá semideuses! Historinha nova que eu criei assim que terminei The Mark of Athena :) Essa seria a minha nova versão de "The House of Hades" - claro que sem a experiência toda do Rick. Quem tem face, curte aí: tvhephaestus.
Beijos para quem fica!
