Liberdade

A chuva caía pesadamente contra o chão maltrato de grama rala e amarelada. Os grossos e gelados pingos produziam um tique taquear absurdamente irritante, embora constantemente cortados pela movimentação da mulher que ali se encontrava.

Ela não sorria, não chorava. Seu semblante era sereno, até. Completamente vestida de preto, estava encharcada, mesmo carregando o pesado guarda-chuva, também preto. Mas seus cabelos ruivos ainda reluziam em contraste com tudo: a paisagem fantasmagórica, as vestimentas que usava e o clima que fazia... Seu olhar dirigiu-se até o prédio caindo em pedaços a sua frente.

"Ironicamente... Este é o lugar perfeito para o seu enterro!" ela riu descrente ao proferir aquelas palavras de maneira dura a si mesma. Não acreditava como o pai pudera ser tão mesquinho ao exigir ser enterrado num lugar como aquele. O cemitério, que ficava nos confins de Nova York, era espaçoso, embora igualmente velho. Seu portão rangia toda vez que era aberto, e o velho que cuidava dali já mal saia de sua própria cama, numa casinha perto dos túmulos da frente, que outrora haviam sido lustrosos e brilhantes. A vegetação era mal tratada e as poucas árvores que restaram estavam sendo castigadas por aquele inverno em especial.

Aquele inverno marcado de derrotas para si mesma. A lua, que a poucos estava encoberta pelas grossas nuvens que não davam trégua há semanas, saiu de fininho, produzindo um leve brilho por todo caminho que ela tinha percorrido até ali. Depois de faltar ao funeral, sentiu um peso nos ombros enquanto dava algumas pinceladas contra uma tela em branco e esperava a pizza chegar. Seu novo gato gordo miava sem parar desde o dia anterior, e para ter um pouco de paz, colocou a capa de chuva negra de plástico e saiu porta afora. Mas, inferno, ainda estava chovendo.

Ao que deveria ser o crepúsculo foi quando chegou ao cemitério. Chegou com dor de cabeça, de olhos cansados, implorando por uma cama confortável, e não aquela japonesa barata que conseguira comprar com seu próprio dinheiro de artista novata e não conhecida. Depositou as pétalas de rosa brilhantes e recém compradas sobre o túmulo, cobrindo as que estavam destruídas pela tempestade e jogadas mais cedo. Clamou por algum deus, mesmo sabendo que seu pai acharia aquilo loucura. Ela nunca concordava com ele, de qualquer jeito. Depois tirou a escova de plástico roxa que ganhara dele no seu último aniversário e depositou num matagal colado a onde ele havia sido enterrado. Ele nunca dera outros presentes sem serem escovas de plástico coloridas para ela, mas, depois que confirmou suas suspeitas sobre os meio-sangues, elas vieram a servir para algo, mesmo que não para pentear seus cachos emaranhados. E, antes de voltar para casa, olhou para o prédio caindo em pedaços a sua frente. Imaginou-se ali, quando aquele lugar devia ter sido inteiro, e o cemitério ainda não existia. Um bom lugar para morar. Na curiosidade, entrou, esquecendo-se que era só imaginação.

No fim, Rachel só queria um pouco mais de liberdade incondicional. Mas queria essa liberdade ao lado do pai, que de uma forma ou de outra aprendera a amar.

N/A: Também para o I Challenge Mortes, da PJFF, no Orkut. Eu gostei mais dessa do que da outra, mas ainda desacredito que ganho e- Bom, se leu comente, nada mais a declarar.

Alice.