Em um dia qualquer do final de maio de 1980, bem ao meio-dia, peguei um trem de carga que saía de Londres, subi em um vagão aberto e deitei com a cabeça apoiada na minha sacola, com os joelhos cruzados, e fiquei contemplando as nuvens enquanto viajava em direção a Godric's Hollow. James e Lily haviam se mudado para a casa nova e eu preferia ir de trem a aparatar. Sempre aproveito esses momentos para refletir sobre a vida e a minha condição.

Era uma linha local e eu pretendia dormir naquela noite em Bristol e pegar um outro trem até Godric's Hollow para chegar lá antes das sete da noite. Em algum lugar perto de Kingston, adormeci. O apito tocou algumas vezes, e da outra vez que abri os olhos, o ar já estava frio e a névoa começava a cobrir os vales perto da ferrovia. Depois de tentativas frustradas de me acomodar sobre o aço frio com minha coberta, levantei e comecei a andar de um lugar para o outro, pulando e agitando os braços. Logo o trem pegou outro desvio e entrou em uma cidadezinha de beira de ferrovia e percebi que precisaria de um pouco de whyskie de fogo para conseguir agüentar o anoitecer frio até Bristol.

Pulei do vagão e atravessei a rodovia correndo até a loja e comprei, além da bebida, um pouco de pão e alguns chocolates. Voltei correndo para o trem de carga que ainda ia demorar mais quinze minutos para sair daquele cenário, agora cinza e opaco. Enquanto desembrulhava o pão, fiquei lembrando de quando conheci James, e de como havia ficado feliz quando Lily aceitara seu pedido de casamento.

"Vamos até o Caldeirão Furado avisar a todos!", ele disse.

Naquela época, a sombra de Voldemort não era tão intensa quanto nos dias atuais e todos nós – principalmente eles – poderíamos sair na rua sem maiores perigos. A decisão deles de mudar para um vilarejo distante era até compreensível, mas sei o quão difícil foi para James largar a casa de seus pais, em Londres. Pensei em Sirius também, que morava tão perto. Invejava um pouco a ligação que eles têm um com o outro, mas isso se deve pelo fato de serem tão parecidos. Apesar de amar James e Sirius, me considero muito diferente deles. Nossa amizade é muito mais fruto de circunstâncias que de semelhanças. Éramos colegas de quarto e nos demos bem desde o início.

Eu tinha comprado um queijo três dias antes, em Londres mesmo, antes de receber a notícia de que teria que viajar. Coloquei um pouco do queijo dentro do pão e tomei o whyskie com gosto e gratidão. Sabia que o pouco dinheiro que tinha servia para esses pequenos momentos, e nada pagava uma refeição que deixa você aquecido naquele frio. Fiquei contente. Lembrei-me de Dumbledore quando disse que tudo na vida se resumia a ter uma boa bebida e amigos para compartilhá-la. Lamentei o fato de estar sozinho. Pensei no que Sirius estaria fazendo se estivesse ali. Certamente estaria cantarolando em qualquer canto e lembrando histórias dos quatro Marotos em Hogwarts. Mas não sinto falta daquele tempo. Era seguro e acolhedor, mas eu era muito mais inseguro do que sou hoje, ou pelo menos acredito nisso. Afinal, tenho somente 22 anos e continuo sendo um lobisomem.

O que acontece é que, com o tempo, acabei ficando um pouco hipócrita em relação ao que acreditava ser a necessidade vital de um bruxo, além de me sentir um pouco cansado e cético. Porque, apesar de minha pouca idade, me sinto tão velho e neutro... Mas naquele tempo eu realmente acreditava na gentileza e na humildade e no zelo e na tranqüilidade e na sabedoria das pessoas, e acreditava ser uma espécie de sábio com roupas surradas vagando pelos corredores de Hogwarts e conquistar méritos próprios para que esquecessem que eu era um lobisomem. Aquela bebida quente deu forma a todas as minhas crenças ao me aquecer e me fazer lembrar que carregava no bolso uma carta de Lily escrita há muitos anos, quando estávamos no quinto ano da escola. Ela dizia que não importava como os outros me olhavam, mas que eu deveria ver a beleza dentro de mim, para sempre, e me lembrar de que eu era uma criatura viva e boa.

"Onde foi que você leu isso?", perguntei a ela, na época.

"Ah, tirei de um livro infantil que minha irmã tinha há uns anos. Sempre o carrego comigo."

"E você sempre fica lendo esse tipo de coisa entre as aulas?"

"Praticamente todos os dias". Depois disso, ela não falou mais nada e eu também.

Lily era aquele tipo de garota que brilhava a quilômetros de distância. Não tanto por sua beleza física, mas porque sempre houve uma vivacidade naqueles grandes olhos verdes e um sorriso que tirava qualquer cara em Hogwarts do sério. Desde que a conheci ela tinha esse dom, e isso foi quando tínhamos onze anos e éramos crianças. Apesar de tudo isso, ela não era daquelas meninas que andam em bando para falar de garotos. Não sei explicar exatamente, mas sua atitude era mais parecida com a de um garoto que de uma menina de sua idade, mas ainda assim, sem perder sua feminilidade. Se Filch a pegasse no meio do corredor conversando com alguém, ele simplesmente não falava nada, ao contrário do que faria com qualquer outro aluno. Ele circulava e desaparecia, e se professores estivessem no salão principal quando ela passasse, muito provavelmente não perceberiam a garota ruiva sentando em uma das mesas. Porém, em sala de aula, todos sabiam quem ela era, e reconheciam seus esforços, ainda que naturais, para ser uma excelente aluna.

Quando falei que planejava ir a Godric's Hollow de trem, ela me disse que era o tipo de viagem que gostaria de fazer, um dia, quando não houvesse mais aquele perigo crescente da quase onipresença de Voldemort. Achei triste.

Mas o trem começou a andar, o vento ficou frio e enevoado outra vez, e passei a meia hora seguinte fazendo tudo o que podia fazer e imaginar para não congelar nem bater os dentes demais. Eu me encolhi e meditei sobre o calor, para espantar o frio. Depois comecei a pular para cima e para baixo e a agitar os braços e as pernas e a cantar. Meus dentes batiam e meus lábios estavam azuis, mas continuei lá ruminando meus pensamentos desolados e amargos, inevitáveis àquela altura e àquelas condições.

Quando escureceu, enxerguei com alívio o mar bem conhecido de Bristol e logo o trem já tinha parado e eu estava ao lado dos trilhos, respirando o ar frio sob a noite estrelada. Fui para a praia passar a noite sobre a areia com meus cobertores e parei ao sopé de um rochedo, onde os guardas não poderiam me ver nem me mandar embora. Também era improvável que qualquer bruxo estivesse por ali naquela hora, então fiz uma pequena fogueira e cozinhei salsichas espetadas em galhos recém-cortados e bebi o rum que acabara de comprar, resultando em uma das melhores noites da minha vida. A água estava fria demais para que eu entrasse, então agachei de joelhos em uma pedra ali perto e fiquei lá olhando o céu noturno esplendoroso. Lembrei da voz do James dizendo "Bom Remus, você conseguiu de novo". Que saudades eu sentia dos meus amigos! Apesar de curtir esses momentos melancólicos de solidão, o que verdadeiramente me aquecia era o fato de saber que estaria dali a poucas horas com eles.

Completamente sozinho e sentado naquela pedra gelada, abracei as pernas e contemplei minha vida. Bom, pronto, e que diferença fazia? Lily e James iam para longe. Parecia que tinham se casado há muito mais tempo. Parecia uma eternidade. "O que vai acontecer comigo daqui para frente?" Daí o rum começou a atacar meus neurônios e senti meus olhos se fechando sozinhos, insistindo para que meu corpo descansasse. Puxei meus cobertores sobre os ombros e adormeci no canto da praia.

Acordei no meio da noite: "Quê? Onde estou?", mas ouvi o murmúrio contínuo das ondas do mar e voltei a dormir, sonhando com uma mesa cheia de pães quentinhos e a mão de Lily sobre o meu ombro. Aquilo era o meu ideal de lar feliz. "É sempre a mesma coisa", sussurrei antes de virar para o outro lado e esperar alguns segundos antes de pegar no sono novamente.

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O dia amanheceu frio e cinza, como todos os dias na Inglaterra. Levantei sem mais delongas, arrumei meus cobertores dentro da sacola e, com um aceno rápido da varinha, recolhi meus outros pertences. Coloquei um último pedaço de pão na boca e saí andando em direção à estação, onde o trem para Godric's Hollow já ansiava pela sua partida. Esperei os policiais revistarem o trem, dei a volta e subi no último vagão, também de carga, onde sentei sobre um monte de cordas e ouvi o apito de partida.

A viagem desta vez fora muito mais curta e, em poucas horas, eu chegara a Godric's Hollow, quando avistei de longe uma figura encapuzada no final da plataforma, mas que reconheci imediatamente, indo a sua direção. Ele sorriu quando me viu e, tirando os óculos, me deu um abraço forte e apertado.

"Então você veio mesmo de trem. Você é maluco.", ele disse rindo, enquanto fazia um sinal para me ajudar com a sacola.

"Como estão todos?", perguntei.

"Peter e Sirius já estão lá, chegaram há algumas horas. Dumbledore virá para o jantar."

"E Lily?"

"Ela está bem. Estava cozinhando quando eu saí. É tudo o que ela faz desde que chegamos – acho que ela se sente melhor ocupada, já que não podemos sair".

Senti a tristeza em sua voz e gostaria de dizer algo, mas achei melhor ficar quieto e continuar caminhando. O vento estava frio, mas não estava garoando, então tudo se tornou mais fácil. Quando chegamos atrás da estação, James segurou meu braço e aparatamos juntos na frente de um sobrado. Ele abriu o pequeno portão de ferro, que rangeu em desagrado, e, olhando para os lados, me pediu para entrar. Quando a pequena porta de madeira foi aberta, aquele ambiente quente e amarelado bateu em meu rosto com tanta força que, ao ver o sorriso no rosto de Lily à minha frente, eu simplesmente me esqueci de qualquer tristeza e frio e melancolia que me tomava até aquele momento, e lembrei de novo o que era a felicidade. Sirius levantou-se da mesa e veio em minha direção, me dando um abraço até de certo modo violento, e Peter deu um tchauzinho de longe.

Isso estava de acordo com as teorias de Dumbledore a respeito da amizade e do amor. Esqueci de mencionar que no dia em que entrei em Hogwarts, depois da seleção das casas, à noite, uma menina chegara até nós na mesa e, durante aquela conversa sobre quem era de que lugar, ela perguntou "Posso sentar com vocês?", já que ela própria era um pouco moleque. E, naquele momento, eu vi o jeito que James olhava para ela, e sabia que ela era dele, e de mais ninguém ali.

"Claro", respondeu Sirius, com a voz engraçada que ele usava para contar piadas, uma grande, profunda e ruidosa imitação de seu velho tio Ignatius, "Claro, sente conosco e conte a história de sua família, menina". Isso obviamente deixara Lílian um pouco receosa, mas ela tomou coragem e contou que viera de uma família trouxa e foi normal, ninguém se constrangeu nem nada. "Eu odeio toda a minha família por isso", Sirius disse. "Sorte sua de não ter entrado na Sonserina", e apontou para a mesa do outro lado do salão. Vi o olhar melancólico de Lily quando olhou para trás, e percebi depois que seu amigo havia sido selecionado para lá, quem mais tarde descobri ser o Snape. Pobre Severus. Devia estar tão assustado quanto qualquer um de nós, ao sentar pela primeira vez naquelas mesas.

"Remus", ela disse, limpando as mãos no avental florido em sua cintura e me dando um abraço. Eu respirei de novo aquele aroma adocicado que sentia toda vez que estava perto dela, e aquela sensação tão boa de estar com todos eles ali. "Como foi a viagem de trem?", ela perguntou, sorrindo.

"Melhor impossível".

"Estou fazendo aquela batata assada que eu sei que você gosta, então sente ali e espere, já está quase pronta."

Eu não conseguia parar de sorrir desde que chegara àquela casa. Todos nós nos sentíamos muito bem por estarmos juntos e falávamos sem parar, sobre qualquer coisa, literatura, o Beco Diagonal, os professores de Hogwarts, feitiços novos, as aventuras que já vivemos, e de repente percebemos que Peter sorria forçosamente e parecia não se sentir muito bem. James o levou até o sofá e o cobriu com um xale laranja que ficava ali. Ele parecia doente. Eu não o via há muito tempo e só então reparei o quão envelhecido ele parecia.

"Vou fazer um chá bem quente para você, Peter", Lily gritou da cozinha, e todos nós voltamos à animada conversa que estávamos tendo pela primeira vez em não sei quanto tempo, desde que soubemos que eles deveriam se esconder. Pela maneira como eles viviam aqui, enxerguei toda a infância de Lily e James em seus olhos quando falavam da gravidez. Apesar de todas as dificuldades, estavam brilhantemente felizes. E isso me levou a observá-los com uma atenção que jamais havia tido, como por exemplo a maneira como Peter andava, que de trás podia-se ver os dedos do pé dele apontando para dentro, como os meus fazem, em vez de apontar para fora como os de James e Sirius. E ficávamos naquela animada troca de idéias quando ouvimos um estalo lá fora e James automaticamente gritou "Dumbledore!", então todos nós corremos para a porta para recebê-lo com alegria. Ele entrou com um montão de coisas levitando atrás dele, como livros e pergaminhos, mas apesar de estar feliz no início, ele aos poucos foi mudando sua expressão, parecendo preocupado.

Precisávamos partir em uma missão da Ordem – mais uma. Elas pareciam intermináveis e ninguém tinha sequer a idéia de recusar partir, porque sempre envolvia prováveis mortes e tragédias que seriam causadas por Voldemort ou os Comensais, e continuávamos agindo em segredo, como os únicos resistentes àquela força maligna e ameaçadora que era a Marca Negra. James pegou no braço de Dumbledore e escutei quando ele disse baixinho que não ia deixar sua mulher grávida sozinha em casa, uma preocupação óbvia à qual eu dava razão, pois estava igualmente preocupado com Lily.

"Não vou deixá-la aqui, Dumbledore, não importa o que você diga."

Dumbledore virou os olhos em minha direção e eu disfarcei, para não parecer que eu prestava atenção na conversa deles. Senti que sussurrava o meu nome, e vi de relance quando James também olhou para mim. Meu coração batia forte quando ele chegou mais perto e, com um tom extremamente carinhoso na voz, perguntou se eu poderia ficar tomando conta dela. Eu disse que sim.

"Muito simples", disse Dumbledore, sorrindo, enquanto eu via que James continuava preocupado, ainda que um pouco menos, depois da minha resposta. "Mas vocês precisam se apressar se quiserem chegar lá antes da meia-noite".

"E quanto tempo ficaremos?"

"Três dias, uma semana no mais tardar".

James olhou pra mim e perguntou o que eu achava. Respondi que tudo bem, e que deveria ficar em repouso daqui a dois dias, pois seria lua cheia e precisava da minha poção.

"Lily poderá prepara-la, Remus", James disse, e eles já estavam se preparando para sair quando perceberam que Peter não estava no sofá.

"Ele precisou ir", disse Sirius. "Não explicou porque, mas estava realmente se sentindo mal".

"Também já estamos partindo."

Mas então eu fiquei com pena do pobre James e pensei "Ah, diabos, dane-se a missão, fique com ela", e vi que ele estava sofrendo muito mais do que eu com essa decisão. Ele beijou Lily intensamente e se ajoelhou na frente dela para beijar sua barriga. Foi uma cena bastante triste de se ver, mas por qualquer razão eu estava ansiando pela partida de todos, apesar de isso parecer um tanto quanto egoísta de minha parte. Dumbledore já tinha saído pela porta quando Sirius puxava o casaco quente sobre os ombros e James segurava o tanto quanto tempo poderia ainda segurar as mãos de Lily, antes de fechar a porta e se despedir com um singelo "até mais", botando uma confiança extrema no último olhar que me dera, e a porta se fechou.

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Esta fic foi obscenamente inspirada no livro de Jack Kerouac chamado "The Dharma Bums", e contém alguns trechos do mesmo.