- As vezes parece que está sendo obrigado a viajar!
Disse ela, deitada no seu lado da cama, quebrando a quietude do ambiente.
- Desde que nos casamos que sonho em te levar à cidade onde nasci!
Continuou com um leve e temeroso sorriso, como se tentasse contagiá-lo com sua euforia.
- Não estou reclamando!
Disse ele deitado, olhando o teto, com as mãos cruzadas no abdômen, sem mover um músculo; sua voz exprimia enfado.
- Mas está tão entristecido!
Ponderou ela, virando-se toda para ele, seu semblante mostrava uma felicidade contida pela aproximação aceita, fazia 5 meses que ele não a procurava e 6 anos que seu casamento estava em um impasse.
E de repente, com um olhar tímido e vendo-o tão distante, sua alegria recente deu lugar a uma desilusão de sua crua realidade:
- Eu quero salvar nosso casamento! - disparou - Sei que ficar dentro de uma casa em outra cidade não quer dizer nada! Mas acho que será bom para nós dois! - completou em tom levemente aflito - Olhe pra mim!
Impacientou-se pela frieza dele, mas antes não o tivesse pedido, pois o olhar que ele lhe deitou exprimia tal indiferença que lhe cortou o coração.
- Eu daria tudo para saber em que pensas!
- Nada que valha a pena! - disse ele, segurando gélido, o olhar amoroso da esposa.
- Eu tenho certeza que encontrarás inspiração para escrever o livro que tanto sonhas! - disse-lhe ela em um último apelo.
- Não é inspiração que me falta, ma chérie, é vontade!
E seu semblante de repente perdeu toda a rudeza e tornou-se tristemente melancólico, olhando-a penalizado por não mais conseguir corresponder a sua paixão.
- Não tenho mais desejo de escrever, de viver, de fazer porra nenhuma!
Desviou os olhos novamente para o teto, suspirou; ela o observava entristecida.
- Bonsoir!
E sem ao menos fitá-la, virou-se para seu lado, apagando seu abajour e perdendo-se dentro de si mesmo, atravessado por pensamentos vazios e indefinidos.
- Bonsoir! - disse ela num fio de voz.
Marie permaneceu alguns segundos na mesma posição, até que deitou-se e virou-se por sua vez para seu lado. Tentou reprimir os soluços que teimavam em bombardiá-la por dentro e dos doces olhos rolou uma lágrima magoadaque ficaria para sempre na escuridão da madrugada.
Apagando a luz, tentou conciliar o sono, algo difícil naqueles últimos anos de casamento.
O que adviria de tudo aquilo? Não sabia, mas resgataria seu marido de qualquer maneira e num último pensamento, antes de finalmente adormecer, disse consigo mesma, num torpor esperançoso:
"Tudo agora está em Lion!"
O.o.O
- Então está confirmado?
Um senhor de meia idade, muito branco e com um límpido olhar, aproximou-se, dentro de uma roupa esportiva, da mesa de um distraído homem vestido de preto e cenho franzido.
- Contra a minha vontade!
Disse Camus muito ocupado, esquadrinhava algo com um lápis em cima de seu organizado birô de arquiteto.
- Ah, vai ser divertido! Você está mesmo precisando de umas férias! - deu um tapinha no ombro do amigo; Camus o fuzilou com o olhar pela familiaridade.
- Há 10 anos que invento uma desculpa, mas dessa vez...
Pegou do papel em que desenhava e amassando-o, jogou-o na lixeira ao lado da mesa; em seguida, levantou-se e travou de seu sobretudo também negro; dirigiu-se para a porta acendendo um cigarro.
- Quando irão? - perguntou o homem quando o colega alcançava a maçaneta.
- Depois do almoço! - respondeu sem voltar-se e bateu a porta atrás de si.
O.o.O
Quando Camus entrou em seu quarto de casal encontrou a esposa arrumando a última mala. Não entendia porque tanta bagagem se iam apenas passar o natal e ano novo, mas resolveu não comentar nada.
Trocou de camisa. Marie viera recebê-lo com um beijo logo que o viu e ficou fascinada ao encontrá-lo aparentemente de bom humor. Naquele momento, um rapazinho de uns 9 anos adentrou no recinto correndo, com uma mochila nas costas:
- Mamãe já estou pronto! - disse sorridente.
- Se entrar dessa maneira aqui novamente eu te dou uma surra!
O pai o olhava severo e lhe falou num tom tão frio que o garotinho se encolheu perto da mãe; esta veio em seu auxílio.
- Não fale assim, é só uma criança! - ponderou; Camus a fitou e encaminhou-se para a porta.
- Vamos almoçar! - saiu.
- Por que o papai está tão estranho, mamãe?
Perguntou o menino muito sério; é claro que sabia que algo não ia bem entre seus pais.
- Ele só está cansado! - disse a mãe ajeitando os cabelos da criança - Vamos pra mesa?
Indagou com um sorriso singelo; Jean Luc retribuiu pegando-lhe na mão e dirigindo-se à sala de jantar.
O almoço corria particularmente tranqüilo. Depois que o casamento tornou-se um peso, era raro as vezes em que o Sr. Dousseau comia com os seus.
Nem o filho mais lhe fazia mudar sua postura e por vezes sentia-se culpado perante ele. Mas era incapaz de modificar o terrível mal estar que se instalara em seu interior.
- Mãe, por que não põe outra música?
Perguntou Jean de forma infantil e como estivesse de boca cheia, recebeu um olhar materno de censura.
- Porque é uma música boa e calma! - respondeu Marie tomando de sua água.
- Deveria variar um pouco! - comentou Camus olhando para seu prato.
- Pensei que gostasse, querido!
- Eu gosto, mas todo dia enche! - levantou-se limpando a boca no guardanapo - Vamos?
Marie não falou nada. Chamou a empregada, uma mocinha de Arles e pediu que retirasse a mesa. Jean correu a escovar os dentes enquanto o pai, fumando, esperava os demais na varanda.
Pouco tempo depois, entrava no carro da família, um belo modelo preto de quatro portas, um marido distante, uma esposa conformada e um filho barulhento, que mal entrara no veículo, recebeu do pai um grito de: "Fique quieto!"
- Pai, muda o cd!
- Já estou cansado daquele barulho que você ouve!
Disse o pai com a mão para fora da janela por causa do cigarro.
- Mas esta é muito chata! Parece música de enterro! - Marie sorriu; o menino emburrara-se.
- Isto aqui chama-se Réquiem de Mozart! Um grande compositor clássico! - ponderou o pai com semblante severo.
- Ah pai! Vai! Tira essa coisa chata!
E o menino pôs-se a bater com os pés na parte de trás do assento de Camus; o pai o mirava possesso pelo retrovisor.
- Pare Jean Luc! - pediu uma vez - Já mandei parar! - alterou a voz, mas a criança não obedecia.
- Tira! Tira! Tira!
Camus parou o carro bruscamente e descendo, abriu a porta do lado do menino, que procurou refugia-se no canto oposto.
- Desce!
- Camus! - chamou a mulher.
- Camus o cacete! Vamos, desce, fedelho! - ordenou.
- Não fale assim na frente do Jean! - pediu a esposa no banco da frente.
- Ele só atende na porrada!
Camus bateu a porta com tanta força que fez Marie assustar-se em seu canto. Voltou ao volante e prosseguiu a viagem; o cigarro tremia entre seus lábios; a esposa preferiu calar-se.
O trajeto seguiu-se tranqüilo, nenhuma briga, mas também nenhuma palavra trocada entre os membros da família Dousseau.
Ao estacionarem dentro da enorme casa nas proximidades de Lion, para desespero de um certo aspirante a escritor, quem veio recebê-los foi o sogro, o sr. Lautrec, homem de quase 70 anos, mas ainda rijo e conservador em seu trato e opiniões.
- Pai! - correu Marie ao vê-lo aproximar-se, apoiando-se numa elegante bengala.
- Fez boa viagem filha? - perguntou o senhor beijando-a na cabeça.
- Maravilhosa! Jean, venha falar com seu avô! Camus!
Chamou o marido que fechava a porta do carro; ele aproximou-se a contra gosto e por algum tempo ele e o senhor encararam-se, foi Lautrec que quebrou o silêncio.
- Não vai falar nada? Quem chega é que cumprimenta! - retorquiu Lautrec.
- Como vai, senhor? - disse, estendendo a mão, severo.
- Muito bem e o senhor? - redarquiu o velho.
Marie vislumbrou toda a odisséia pela qual passaria...
O.o.O No jantar O.o.O
- Querem que eu me candidate novamente a vereador!
- Mas o senhor foi um bom político, pai!
- Mas já estou velho!
- Antes de casar bem que tentei me engajar, o senhor que não deixou!
- Política não é coisa para mulheres! Vocês já têm os afazeres de vocês, como o bordado! -Marie não pôde deixar de sorrir.
- O senhor continua machista! Santa ignorância!
Camus, que até aquele momento havia permanecido alheio a conversação, disparou; Lautrec o mirou satisfeito, só estava esperando uma oportunidade para fazer o que mais gostava, brigar com o genro.
- Ignorante, mas pelo menos não sou sustentado pela minha mulher!
- Pai! - exasperou-se Marie.
- Ninguém me sustenta, eu tenho meu emprego!
- Chama escrever livros de emprego? Isto para mim é coisa de mulherzinha!
- Eu sou arquiteto, quer o senhor saber! - Camus estava visivelmente alterado.
- Coisa de covarde! E escrever poesia é coisa de donzela, pois duvido que você se dedicasse a estas futilidades se não tivesse as costas quentes pelo patrimônio que minha filha herdou! - gritou o velho.
- Pai, por favor, já chega!
Marie suplicava ao ver o marido levantar-se e dirigir-se para fora do recinto; Lautrec atacou novamente.
- Pensa que não sei da história de seu pai? - o homem de cabelos azuis voltou-se com um olhar cortante - Escrevia poeminhas! - desdenhou Lautrec.
-Meu pai foi um grande escritor!
- E morreu na miséria, deixando dívidas que você teve que pagar! - Camus aproximou-se dele lívido de cólera.
- Nunca mais fale no meu pai! Você não é digno nem de lhe beijar os pés!
- Vai fazer o que?
- Eu juro que o mato! - exasperou-se; sua voz embargava-se.
- Camus! - tentou apaziguar Marie.
- Odiei este lugar! Lixo! Lixo de lugar e de gente! - esbravejou Camus olhando-a furioso; saiu batendo a porta.
Marie olhou para o pai em prantos:
- Eu falo pelo próprio bem dele! - defendeu-se o velho.
- Pai, eu estou tentando salvar meu casamento...
- Filha, largue ele e fique aqui!
- Será que não entende? Se meu casamento acabar eu morro! - correu em direção ao quarto.
Jean Luc observava tudo completamente atônito de seu canto da mesa.
Uma das criadas entrou no aposento onde Marie refugiara-se e ofereceu-lhe uma xícara de chá quentinho. A mulher, com a cabeça afundada no travesseiro, sentou-se na cama aceitando o líquido.
- Não fique assim senhora! Toda família tem problemas! Mas eu avisei que ele estava pior!
- Se eu soubesse não teria vindo! Para onde ele foi Nine?
- Ele saiu!
- De carro? - preocupou-se.
- Não, senhora! A pé mesmo!
- Meu Deus! Para onde será que ele foi? - fez menção de levantar-se.
- Senhora acalme-se! Ele é muito grande para se perder!
Marie atendeu e por alguns segundos procurou não pensar em nada, exceto onde seu marido poderia estar naquele momento.
O.o.O
Camus adentrou em um bar um pouco deserto numa das movimentadas ruas de Lion. Era um recinto simples, freqüentado, pelo que pôde notar, por estudantes e grupos alternativos.
Sentou-se numa das mesas ao fundo e apalpou um dos bolsos das calças, de cor preta, a procura do maço de cigarros.
Não encontrando-o, franziu o cenho revistando-se mais uma vez. Virou-se para um senhor sentado ao lado e inquiriu meio sem paciência:
- Mon ami, tem um cigarro?
O senhor fez que não com a cabeça e voltou a ler seu jornal. Relanceou o olhar a sua volta, apoiando os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos, cerrando os olhos, suspirou.
Mas um barulho de algo caindo próximo a ele, rangendo levemente a tábua da mesa, o fez abri-los rapidamente, assustado. Uma carteira de cigarros novinha havia sido atirada a sua frente.
Olhou diante de si afim de descobrir quem era o atrevido e pôde ver a figura de um jovem rapaz, de cabelos e olhos azuis, pele morena, porte robusto e ar de estrangeiro, parado a sua frente.
Seu traje era tipicamente aventureiro e mais parecia um menor abandonado do que um artista, como de fato era.
- Ainda quer um cigarro? - perguntou ele sentando-se na mesa sem ser convidado.
- Como soube...- desconfiou Camus.
- Estava te observando desde que você entrou! - falou muito comumente o jovem - Traz uma dose! - pediu ao garçom que prontamente o atendeu.
- Não o convidei a sentar-se comigo!
- Não preciso que alguém me convide para sentar-me numa mesa!
Respondeu, bebendo seu absinto num só gole; Camus o fitou perturbado.
- Gostaria de ficar sozinho! - disse com semblante severo; aquele estranho o estava massando.
- E eu de conversar! - sorriu o rapaz erguendo mais uma dose de bebida e virando-a em seguida - Estamos diante de um problema! - olhou-o cínico.
- Você não é francês, é? - indagou Camus, ainda sério.
- Sou de Atenas! Vim para a França por causa da fama!
- Que fama?
- A fama que os franceses têm de serem consideradas as pessoas mais alegres do mundo! - olhou-o irônico; Camus entendera a ofensiva.
- Você não poderia mesmo ser francês, pois nós conhecemos uma palavra chamada educação! - fez menção de levantar-se.
- Ok, pardon! Desculpe a brincadeira! É que você não parece ser do tipo que fala muito!
- Falo com quem valhe a pena! - o rapaz levantou-se barrando seu caminho.
- Senta ai cara! Acabei de chegar na cidade! Você é meu primeiro amigo! Só vim lhe incomodar porque o achei interessante!
Disse o garoto de penetrantes olhos azuis; Camus o encarou e sem saber porque voltou a sentar-se; o rapaz o imitou.
- O que você faz?
Perguntou o garoto servindo-se de mais absinto; estava despojado, completamente, na cadeira.
- Sou escritor! - respondeu o francês, enfadonho.
- De livros? - indagou o rapaz, interessado.
- É o que tento fazer!
- Se conhecesse a minha história faria um romação!
Exclamou o grego, tomando outra dose; Camus o fitava surpreso, nunca vira alguém beber daquele jeito.
- Está gostando de Lion? - pela primeira vez demonstrava interesse pelo desconhecido.
- Prefiro Paris! Ah, ia me esquecendo!
O rapaz levantou-se e fazendo uma reverência num tom cínico e brincalhão, proferiu com um ar levemente ébrio.
- Não nos apresentamos!
- Me chamo Camus!
Retrucou, olhando-o, sem entender a brincadeira, seu semblante ainda estava carregado; o rapaz o fitou com ar de mistério e olhar sensual.
- Prazer, Miro!
O.o.O Continua O.o.O
