Era bom estar de volta. Ver todos aqueles rostos familiares reunidos num lugar mais que especial e reconfortante. O farfalhar dos vestidos de festa era abafado pela música alta. O álcool estava começando a fazer efeito e parecia que ninguém tinha problemas dos quais reclamar. É claro que ninguém reclamava. Havíamos vencido uma guerra e comemorávamos nossa formatura tardia.

Após a morte de Voldemort, tomou um ano para as coisas serem postas em ordem. Na verdade, nada estava em ordem ainda, mas todos concordaram que os heróis de Hogwarts mereciam se formar e festejar por isso. Devido ao papel que tomamos durante a guerra, eu, Harry e Rony fomos convidados apesar de não termos cursado o sétimo ano. O último não viera porque havia contraído uma doença de bruxo esquisita. Pensara que era um grande azar.

Agora, eu e Harry sentíamos sua falta no Salão Principal enquanto admirávamos a decoração de festa colorida e exuberante. Saboreávamos os drinks elaborados e reencontrávamos rostos conhecidos. Eu estava sentada na mesa batendo um papo de menina com Parvarti e Lilá. Depois de um ano andando com os meninos e outro reerguendo ruínas de guerra essa conversa animada era muito bem vinda. Era tão bem vinda que passei boa parte da festa ali, com as meninas e meu drink de frutas vermelhas.

Depois do terceiro copo, a bexiga reclamou e tive que me retirar para ir ao banheiro. Os corredores haviam sido enfeitados com a mesma decoração colorida do salão. Os quadros nos olhavam felizes e até as escadas pareciam se mover contentes.

É esperado numa festa de formatura, escapadas para uma sessão de amassos por parte dos formandos. Na minha não havia sido diferente até aquele momento. Com a vodka fazendo efeito, a curiosidade aumentou assim como a ânsia de compartilhar com as meninas quem estava pegando. E acabei me desviando do caminho para o banheiro. Havia um casal num corredor próximo, perpendicular ao que eu seguia. A menina aproximava-se de seu companheiro por trás. O rosto dela não me era familiar. Deveria ter chegado naquela festa como acompanhante de alguém, talvez fosse de Hogsmead. O fato é que ela já estava naquele estado e simplesmente não fui capaz de perceber na hora. Ou não quis perceber. Então, virei e apenas continuei o caminho para o toalete.

O banheiro era o único lugar que não estava decorado. O silêncio do lado de dentrp foi capaz de me dar paz por alguns segundos e passei alguns momentos sozinha, acompanhada somente por boas lembranças. Foi quando duas meninas entraram. Uma delas chorava de dor e se apoiava na amiga. O braço da primeira sangrava de maneira preocupante, já havia arruinado ambos os vestidos. A outra se apressara em ligar o jato d'água para lavar o ferimento, apesar de a amiga dizer que iria ficar bem.

- O que aconteceu? Vocês não podem ficar aqui! Ela precisa de atendimento profissional ou pode perder sangue demais.

-Não dá. A Madame Pomfrey tá passando mal e eu preciso lavar essa ferida!

Sem paciência para ouvir sobre uma velha enfermeira caindo de bêbada e com o álcool me tornando impulsiva, avancei na direção das duas. Pretendia tirar a garota machucada da amiga à força e levá-la à enfermaria. Ainda acreditava nos princípios heroicos que seguira durante a guerra contra Voldemort. Tomando o braço da ferida ao mesmo tempo em que empurrava a outra, disse:

- Ela vai para a enfermaria AGORA!

Até que olhei para a ferida que estava limpa por um momento. Havia um buraco no antebraço da garota, o machucado era tão profundo que era capaz de ver um pedaço de osso. Percebendo o meu choque, a amiga tomou o braço ferido da minha mão e voltou à tarefa de lavá-lo.

- Olhávamos os quadros quando uma maluca apareceu e mordeu o braço de Allie.- falava com uma voz trêmula - Eu gritei para ela soltar, mas não parecia ser capaz de ouvir. Então peguei o castiçal que estava do meu lado e bati na cabeça dela com toda a força. Depois de todos os anos estudando aqui acabei esquecendo de usar a varinha. –disse soltando um risinho nervoso.

Normalmente eu era capaz de cuidar de ferimentos, sabia o básico dos feitiços de cura. Mas aquele estava além dos meus conhecimentos e a história da maluca do corredor me assustara. De repente fiquei preocupada com menino que vira no caminho para o banheiro. Recuperando o bom senso, disse:

-Então, você fica aqui com ela que eu vou procurar ajuda - A menina já estava sem cor por causa do sangue que perdera e seu penteado havia desmazelado com o suor frio. Quanto tempo será que ela perdera arrumando-o? – Não a deixe dormir, é sério!

O corredor também estava sujo de sangue da garota, deixando claro o caminho que levaria à sua predadora do qual, é claro, me desviei. Mas quis procurar pelo casal que avistara anteriormente mesmo assim. Quando seguia em direção ao salão principal, só era capaz de ouvir meus passos o que me fez desejar o barulho da pista e conversas, em pensar que havia agradecido o silêncio do banheiro alguns momentos antes. A sensação de que algo muito ruim havia se iniciado pesava no meu peito.

Até que parei de andar. Achara o casal. O menino estava estirado de bruços no chão, bloqueando a minha passagem. Puta que pariu, a garota que eu acreditara ser sua namorada estava comendo suas tripas.

Dizem que o primeiro a gente nunca esquece, se isso é verdade, não sei, mas lembro daquela cena perfeitamente. As mãos dela apoiavam-se nas costas do garoto permitindo que enfiasse sua cara dentro do buraco que os dentes haviam cavado. O sangue espalhava-se pelo rosto e pelo chão, sujando o cabelo loiro de vermelho e algumas mechas já haviam adquirido um tom de marrom ressecado. Se eu não tivesse interrompido o seu jantar teria ficado ali até que restassem somente ossos.

- Larga ele! Sai daí. - gritei com a voz trêmula da inexperiência.

Meu grito a fez interromper seu jantar e olhar para mim. Seus olhos possuíam uma tonalidade cinza fria, como se tivesse perdido a visão por causa de catarata. Até a esclera havia mudado de cor. Gelei ao perceber que as supostas janelas da alma daquele ser expressavam nada além de fome. E começou a gemer para mim, era um gemido de dor e de desejo pela carne viva que estava à sua frente. Assustada, dei alguns passos para trás. Um ano antes eu teria sacado a varinha e nocauteado o inimigo instantaneamente. Mas após ter encarado seu olhar e ver o que havia feito com o braço da garota meu instinto não foi de luta. Foi de fuga. Porém em vez de fugir ou de lutar tentei conversar o que agora, ao escrever isto, me parece completamente idiota.

- Calma. Eu não vou te machucar. Se você se render agora terá menos problema depois. Não se aproxime!

Foi como falar com uma parede. Uma parede que não via nada além de mim. Seus braços usaram o corpo do namorado como apoio para se levantar. Os joelhos eram firmes, porém duros, o que causava lerdeza no andar. Estendendo as mãos como se pudesse me agarrar daquela distância, veio em minha direção. Comecei a recuar com medo.

- O que você ta fazendo? Sabe quem eu sou? Afaste-se agora ou vou acabar com você! – falei tentando parecer corajosa. A guerra havia me dado prestígio e fazia muito tempo desde a última vez em que alguém questionara minha palavra.

O meu discurso não surtira nenhum efeito sobre a criatura. Na verdade, não conseguira convencer a mim mesma de que não estava com medo. Falar ao mesmo tempo em que andava de salto alto para trás só fez com que me atrapalhasse e acabasse tropeçando. Felizmente consegui me reequilibrar a tempo e não caí. Lembrando de que eu era uma bruxa saquei a varinha.

- Impedimenta! Impedimenta! Impedimenta!

Parecia que estava apenas jogando luzinhas na sua casa. Isso só teve a sinistra consequência de me fazer olhar diretamente para seus olhos e para o sangue que escorria de sua boca aberta. O pânico começou a me abater, tornando-me uma presa desesperada muito próxima de perder o controle.

-Avada kedrava! Avada kedrava!- não estava funcionando. Lembrei que para aquela maldição funcionar eu realmente teria que desejar matá-la. O que não foi muito difícil de conseguir já que ela estava coberta de sangue enquanto gemia e avançava em minha direção.

-AVADA KEDRAVA!

Fizera tudo certo. Queria que aquela garota morresse para que eu voltasse para a festa e fingisse por alguns momentos que nada acontecera. Só depois informaria sobre a tragédia que se abatera sobre a nossa festa de formatura. Mas ela continuava vindo. Tomando consciência de minha impotência, percebi que a única coisa que restava a fazer era fugir.