Eu podia vaguear pelas ruas, pelas cidades… procurando algum escape para poder apagar as memórias que atormentam, mas não… Porque estou condenado a isto, a esta prisão dentro desta casa cujas memórias eu abomino. Estas paredes, este cheiro, os quadros nas paredes, tudo o que um dia eu odiei e com que agora sou obrigado a conviver. Sentado na janela da cozinha observo a rua escura lá fora e a chuva que cai sem parar e recordo como um dia os dias de chuva foram importantes na minha vida. Ela sempre vinha em dias de chuva. Nunca lhe perguntei as razões porque sinceramente nunca as quis saber, eu apenas gostava de apreciar a companhia dela… Sentir o toque macio da sua pele, o cheiro dos seus cabelos negros e mirar os olhos azuis cinza em que eu me amava perder. Sim porque eu amava-a. Tudo nela perfeito, desde as suas impurezas quase inexistentes que eu agora consigo enumerar, mas que um dia foram inexistentes. E eu adorava cada pedaço do teu corpo perfeito assim como tremia ao ouvir a tua voz. E o mais engraçado era a forma como tu me usavas, como eu sabia disso e nunca me importei. Porque tu apenas querias o prazer que eu te proporcionava… a companhia nas noites de chuva em que o abraço do teu marido não te acalentava. E eu recebia-te, sorrindo sempre que ouvia o toque da campainha sabendo que apenas podias ser tu. E eu deixava-te entrar, palavras nunca eram necessárias. O que tu apenas querias, eu sabia. O calor do meu corpo, os beijos dados com sofreguidão, a forma como te levava á loucura… E tu sempre dizias que me amavas, mas de manhã, eu sabia que quando acordasse tu não estarias lá… Tu nunca ficavas para me ver acordar, pois tinhas medo de enfrentar o meu olhar desiludido ao ver o espaço da cama onde devias estar, vazio e frio.
E sim, eu sofria… De cada vez que tu vinhas, eu sabia que as tuas palavras doces eram mentiras. Eu sabia que não havia amor e que apenas me tratavas como um objecto que sempre abandonavas de manhã. Mas eu deixava-te sempre entrar, não me importando com a dor que sabia me ir corroer de manhã. Porque eu amava-te e vivia para as noites de chuva em que vinhas. Dava comigo a olhar para o céu a cada noite, esperando qualquer pingo de chuva que até podia não vir.
E sem ti, tudo parecia vazio. Os dias de sol eram frios para mim, porque a chuva era a única que me trazia o consolo da tua presença. E naquelas noites de céu limpo em que o calor abafante afastava a chuva, eu deitava-me na cama e imaginava. Imaginava o som das lágrimas do céu a bater na vidraça da janela. O teu cheiro a chuva que me inebriava os sentidos. E como eu amava esse cheiro… quando tudo em ti cheirava a chuva. Os teus cabelos, a tua pele, a tua roupa… Simplesmente tu… e esse aroma para mim irresistível. O aroma mais básico da natureza em contraste com a complexidade daquilo que tu eras.
Mas um dia… um dia isso acabou. Porque como tudo na vida, um dia ela se foi. Como a chuva que acaba pela manhã, ela nunca mais voltou. Não sei quando aconteceu… Talvez quando os nossos ideais se mostraram demasiado impossíveis de misturar ou quando aquilo em que acreditavas deixou de ser apenas um ideal e passou a ser uma obsessão.
É por isso que a chuva lá fora apenas traz as recordações de um passado que não voltará. Porque agora nunca mais os teus cabelos me cobrirão a cama. Nunca mais a tua voz me inundara com deliciosas mentiras. Nunca mais o teu cheiro me inundará os sentidos. Porque no céu do meu coração, a chuva não mais cairá.
