ㅤㅤ1.
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ㅤㅤNo meio da encruzilhada, havia um demônio.
ㅤㅤNão por livre e espontânea vontade, veja bem; o carro novo vinha com dificuldades, o motor toque-toqueando, já ameaçando uma possível morte desde alguns quilômetros atrás.
ㅤㅤCrowley não havia dado atenção.
ㅤㅤNão até o motor parar de vez.
ㅤㅤ― Mas que porra...
ㅤㅤA causa era absurda, improvável, impossível. O combustível havia acabado. Crowley, que nunca precisara abastecer em toda sua existência, estreitou os olhos desconfiado.
ㅤㅤSaiu do carro, um Audi preto tediosamente comum, que acabou levando a culpa. Algo assim nunca tinha acontecido com seu confiável Bentley. O Bentley original ― Crowley fazia questão de destacar, não a cópia quase-perfeita que Adam Young havia lhe restaurado nos acontecimentos do quase-apocalipse.
ㅤㅤCrowley não era chegado a 'quases'. Ou as coisas eram, ou não eram.
ㅤㅤO telefone celular vibrou no bolso interior do terno no momento em que Crowley abria o capô traseiro.
ㅤㅤ― Alô?
ㅤㅤ― Uma coisa muito estranha aconteceu ― A voz de Aziraphale, estranhamente agitada, disparou do outro lado da linha. Crowley deu uma boa olhada no tanque vazio de gasolina.
ㅤㅤO olhar fixo deveria resolver o problema.
ㅤㅤNão resolveu.
ㅤㅤ― Certo, não exatamente estranha ― continuou o anjo. ― Improvável.
ㅤㅤ― O que aconteceu? ― Crowley perguntou, soando casual apesar da careta que fazia ao reforçar o olhar.
ㅤㅤNada continuou a acontecer.
ㅤㅤ― Eu acho que... Eu acho que... Oh, dear, eu acho que virei humano!
ㅤㅤCrowley interrompeu seus esforços.
ㅤㅤ― Como assim virou humano? Ninguém simplesmente vira humano.
ㅤㅤ― Olhe, hoje eu estava lendo um livro no parque, e um sujeito grandalhão veio importunar uma senhora que passava. Primeiro fato improvável: eu não conseguia ver suas auras.
ㅤㅤ― Estava usando seus óculos?
ㅤㅤ― Fui até lá mesmo assim ― Aziraphale ignorou o comentário. ― Não poderia ficar parado diante de tamanha injustiça. Cutuquei o ombro do homem e disse com firmeza: Com licença, senhor, algum problema com essa adorável senhora?
ㅤㅤCrowley revirou os olhos.
ㅤㅤ― O brutamontes se virou para mim, resmungou algumas palavras indelicadas e então caiu desacordado no chão. A velhinha, atrás do corpo, levantou o aparelho de choque e avançou em minha direção, sombriamente. "Eu não preciso de defesa, viadinho" ela disse, atingindo um soco em cheio no meu rosto.
ㅤㅤ― !
ㅤㅤ― Esse foi o segundo fato improvável. O terceiro e último me fez concluir que isso é tudo parte de um castigo divino.
ㅤㅤ― Qual foi o terceiro?
ㅤㅤ― Um aviso, Lá De Cima. Quando voltei para meu livro deixado no banco do parque, a página em que eu estava não era mais a mesma. A letra era manual, toda floreada. Dizia que minhas alterações nos planos divinos não passaram despercebidas, e que meus direitos de anjos seriam revogados por tempo indeterminado como punição. Assinado por Metatron.
ㅤㅤ― Isso é duro ― disse Crowley, a coceirinha da desconfiança aumentando, considerando sua própria situação. O carro continuava a não funcionar.
ㅤㅤ― O que pretende fazer?
ㅤㅤ― O que eu posso fazer, quer dizer ― Aziraphale soava quase exasperado ― O que eu posso fazer é agradecer a infinita bondade Dele, é isso o que eu posso fazer. Poderia ser bem pior, afinal... ― ele suspirou pesadamente. ― Desculpe a falação, querido, eu precisava desabafar com alguém e você é a primeira pessoa que me veio à cabeça. Como vão as coisas?
ㅤㅤDentro do Audi, o rádio havia ligado sozinho. Crowley sorriu aliviado, ligando o feito aos seus esforços. Deixando o capô aberto, aproximou-se da janela aberta do motorista e Radio Gaga chegou a seus ouvidos.
ㅤㅤ― O mesmo de sempre. Só andando por...
ㅤㅤA música chiou levemente.
You gave them all those old time st- CROWLEY! wars of worlds, invaded by- CROWLEY, SEI QUE ESTÁ AÍ.
ㅤㅤ― ...aí.
ㅤㅤ― Está tudo bem? ― perguntou Aziraphale.
ㅤㅤ― Sim, sim, eu te ligo depois, ok?
ㅤㅤCrowley desligou o telefone antes que Aziraphale tivesse a oportunidade de se despedir.
ㅤㅤ― E aí, Hastur ― o nome do Duque do Inferno veio acompanhado de uma careta enojada.
ㅤㅤ― IMAGINO QUE NESSE MOMENTO VOCÊ JÁ TENHA NOTADO ALGO ESTRANHO. QUERIA SER O PRIMEIRO A SABER.
ㅤㅤ― Algo estranho? ― Crowley se fez de oblívio.
ㅤㅤ― DINHEIRO DIABÓLICO COMEÇAR A SUMIR DE SEUS BOLSOS, SEU MEIO DE TRANSPORTE DE RODAS PARAR DE FUNCIONAR POR CONTA PRÓPRIA..., SABE, ESSE TIPO DE COISA.
ㅤㅤ― Não sei do que está falando ― a mandíbula de Crowley se contraía.
ㅤㅤ― OLHA, EU NÃO DEVERIA CONTAR, MAS, QUE SE DANE, CERTO? EM NOME DE NOSSA VELHA AMIZADE ME SINTO NA OBRIGAÇÃO ― Crowley pode jurar escutar risos debochados a distância. ― O NEGÓCIO É: SABE SEUS PODERES, ASAS, CHIFRE IMAGINÁRIO E RELACIONADOS? TCHAU-TCHAU.
ㅤㅤ― Como assim?
ㅤㅤ― AH, NÃO PRECISA COLETAR MAIS ALMAS, ALIÁS.
ㅤㅤ― Está dizendo que fui despedido?
ㅤㅤ― ISSO! ESSA É A PALAVRA QUE EU PROCURAVA. DESPEDIDO. SIM.
ㅤㅤCrowley não sabia o que dizer. O que fazer, tampouco. Com os direitos sobrenaturais renegados, o que lhe sobrava?
ㅤㅤAs palavras de Aziraphale lhe vieram à mente, e Crowley se pegou digitando o número do anjo numa pressa imperativa.
ㅤㅤO rádio havia voltado a tocar Queen.
ㅤㅤ(Em algum lugar do inferno, Hastur estaria se divertindo horrores com o sofrimento do antigo companheiro de missão. Estaria. Aquele era o inferno, afinal de contas. E nenhum demônio era exatamente companheiro de ninguém.).
ㅤㅤ― Alô? ― Aziraphale soava consideravelmente mais calmo agora.
ㅤㅤ― Hey, então, lembra do que você me contou há agorinha pouco?
ㅤㅤ― Não é algo que dê pra esquecer, exatamente. O que aconteceu?
ㅤㅤ― Acho que algo parecido aconteceu comigo.
ㅤㅤ― Você quer dizer...?
ㅤㅤ― Eu acho que eu virei...
ㅤㅤ― Oh, dear...
ㅤㅤ― ...humano.
ㅤㅤ― Castigo Lá De Baixo?
ㅤㅤ― Algo assim.
ㅤㅤ― Certo, acho que você concordará comigo quando eu sugerir que o que nós dois precisamos agora é de uma boa garrafa de vinho.
ㅤㅤCrowley quase conseguiu sorrir.
ㅤㅤ― Seria uma boa. Pena que estou empacado no meio de uma rua deserta.
ㅤㅤ― Quer que eu vá te buscar? Talvez eu consiga um táxi e−
ㅤㅤ― Espere.
ㅤㅤUm carro se aproximava a distância. Quando passou por Crowley, o veículo diminuiu a velocidade e um rosto redondo cheio de rugas surgiu da janela do motorista.
ㅤㅤO velho deu um grito ― Hey! ―, como se a rua estivesse tão barulhenta que o estranho de terno e óculos escuros não pudesse escutá-lo. Não estavam mais distantes que dois metros um do outro. ― Precisa de ajuda, companheiro?
ㅤㅤCrowley sussurrou:
ㅤㅤ― Prepare a garrafa de vinho, anjo, acho que eu consegui uma carona.
ㅤㅤ― Uma carona no meio de uma rua deserta na madrugada. Sorte.
ㅤㅤ― Sorte, não. Inefável.
ㅤㅤAziraphale riu ― Vou ficar te esperando! ―, disse ele, e desligou.
ㅤㅤCrowley botou o melhor sorriso e fez sinal de carona.
