O estagio de Lizzy

Era início de 1980, quando Lizzy finalmente recebeu a ligação. A tão almejada vaga de estagiária era sua. Cursando o último ano da faculdade de direito, havia conquistado seu primeiro emprego no renomado escritório de advocacia da poderosa família Darcy, na requintada Av. Brasil, em São Paulo. Lizzy vivia um momento muito especial e inspirador, parecia que o mundo conspirava a seu favor, sentia-se fascinada com suas aulas de direito e seu sonho de morar sozinha estava cada vez mais próximo, agora que receberia seu próprio salário. A única coisa que não a preocupava era encontrar um bom partido para se casar, para desespero de sua mãe.

A família Bennet morava num bom e amplo apartamento no bairro de Pinheiros em São Paulo. Apesar de o casal Bennet ter cinco filhas, seu lar os acolhia confortavelmente. A Sra. Bennet casou-se muito cedo e vivia em função da família, principalmente das filhas. Dizia-se católica e apesar de frequentar a missa aos domingos, estava muito mais interessada nas fofocas do bairro realizadas em frente a igreja, após o culto do que em ajudar os necessitados. Esperta e muito articulada, preferia estar próxima das famílias mais afortunadas, achando que desta maneira, acabaria por arranjar um bom casamento para suas filhas. No entanto, sua sede por arranjar pretendentes ricos e poderosos a fazia cometer gafes e, muitas vezes, ser bastante inconveniente, o que lhe rendia uma fama não tão agradável. Porém, isso parecia não abalar a Sra. Bennet que estava, de fato, convencida de que este seria o melhor caminho para sua familia. Tanto Lizzy como Jane, sua irmã mais velha, se envergonhavam das atitudes insensatas de sua mãe e sempre se esforçavam para tentar reprimi-las ou corrigi-las, contando com o apoio incondicional do Sr. Bennet. Os estudos e a conquista de uma carreira para as mulheres eram vistos por ela como atitudes desvairadas e sem futuro algum, visto que, em sua opinião, apenas as mulheres que se casavam com sujeitos miseráveis e sem posses tinham como destino o trabalho, portanto seu sonho se resumia em arranjar cinco bons partidos para que suas cinco filhas pudessem viver uma vida confortável, morando em belas casas com luxuosos automóveis, tendo roupas glamorosas e lindas joias. Ela, por sua vez, a imaginava frequentando, ao lado das filhas, as grandes festas da alta sociedade, usando modelos exclusivos assinados por Clodovil e deixando todas suas amigas morrendo de inveja.

Suas filhas mais novas, Lydia e Kitty se deixavam levar pelas loucuras de sua mãe, tornando-se boas aprendizas. Tinham total liberdade para frequentarem as matinês aos domingos e os bailinhos, desde que estivessem em companhia adequada. Uma das principais distrações da Sra. Bennet era manter-se atualizada sobre a vida dos socialites, lia todas as manhãs, a coluna social do jornal Folha de São Paulo, ao lado do Sr. Bennet que se interessava pelas páginas de economia, politica e atualidades. Eventualmente, era convidado a publicar textos no jornal, já que era conhecido por ser um importante e respeitável historiador, no entanto, a Sra. Bennet jamais se interessou em ler os artigos de seu marido, orientando inclusive suas caçulas a desenvolverem o mesmo hábito, ler as colunas sociais.

Além dos artigos publicados nos principais jornais e revistas, o Sr. Bennet também colaborava como historiador em programas de televisão e dedicava-se a escrever diversos livros sobre o assunto. Sua principal atividade, porém, era como professor na Universidade de São Paulo, além de ocupar o cargo de vice-reitor. A Sra. Bennet apenas se orgulhava da posição do marido, pelo fato disso lhe trazer certo prestigio frente as suas amigas. Quando o Sr. Bennet participava de algum programa de TV, ela corria ao telefone para contar em primeira mão a todos os conhecidos, mesmo não sabendo qual era o conteúdo do programa ou da reportagem, o importante mesmo, era que seu marido estava lá, na telinha. Por outro lado, era uma esposa dedicada, procurava agradar ao marido preparando com a ajuda da empregada Maria, seus pratos prediletos.

Já o Sr. Bennet passava os dias se dedicando ao trabalho, parecia viver num mundo a parte mesmo quando estava em casa, não se importando com as preocupações e atitudes de sua esposa. Evitando contrariá-la, preferia concordar com todas as suas maluquices, mesmo sabendo que muitas delas cairiam sobre suas filhas, no entanto, acreditava que elas eram capazes de se defenderem sozinhas. Sua paixão e admiração por Lizzy era perceptível em relação às outras filhas. Apesar de achar Jane a mais bela e doce entre as filhas, Lizzy sempre esteve mais próxima do pai, admirando seu trabalho e suas opiniões. De personalidade forte e decidida a ter uma profissão, ela obteve toda a orientação de seu pai para ingressar a faculdade de direito, conseguindo inclusive uma posição classificatória de destaque no concorrido vestibular da USP.

Lizzy era a segunda filha do casal Bennet, e com apenas 21 anos assumia o papel de líder frente as suas irmãs, devido a sua postura correta e atitudes sensatas. Muito preocupada com a família e, principalmente, com suas irmãs mais novas, Lizzy incentivava-as a priorizarem seus estudos e serem responsáveis, esquecendo essas bobagens de príncipes encantados, maridos ricos e afortunados pregadas por sua mãe. Apesar de Mary ser a irmã menos atraente, era quem mais dava importância aos ensinamentos e conselhos de Lizzy. Estudava no mesmo colégio que Kitty e Lydia, porém não se enturmavam mesmo durante os intervalos. Passava quase que o tempo todo isolada de seus colegas de classe e preferia ficar escrevendo romances nas últimas páginas de seu caderno. Já Kitty e Lydia não se desgrudavam e eram muito populares no colégio. Eram fascinadas por garotos, principalmente os mais velhos, não se preocupavam com os estudos, apenas em se exibirem e na diversão de terem todos os garotos aos seus pés.

Lizzy dividia o quarto com sua irmã Jane, sua melhor amiga e dona de uma beleza estonteante. Jane era a mais velha das irmãs e lecionava numa escola primária. Tinha verdadeira adoração em ser professora e, principalmente, conviver com as crianças. Era calma, meiga e muito reservada, mal comentava com Lizzy sobre seus desejos mais íntimos. Recentemente, havia se envolvido com um rapaz de uma família muito tradicional de São Paulo, Charles Bingley. Apesar de sua riqueza ser consideravelmente grande, era uma pessoa de hábitos modestos e se divertia em fazer as coisas mais simples da vida. Ainda que estivessem apaixonados, o relacionamento do casal chegou ao fim, sem motivos aparentes. Por conta de a sua decepção ter sido tão grande, Jane decidiu não comentar nada, mesmo com Lizzy, agindo como se não se importasse com o término da relação, porém seu sofrimento se arrastava dia após dia. Lizzy, por sua vez, respeitava o silêncio da irmã, sabendo esperar o momento certo para conversarem. O mesmo não acontecia com a Sra. Bennet, que insistia todos os dias para que Jane reata-se com Charles, sem se importar com o que havia acontecido entre eles, afinal de contas, perder um homem rico e bonito como ele, seria a maior tolice.

Mesmo antes de iniciar seu estagio no escritório de advocacia do Sr. Darcy, Lizzy costumava sair mais cedo de casa para bisbilhotar as ofertas de apartamentos para alugar. Mesmo sem uma renda mensal andava pelas ruas próximas a sua casa, procurando um lugar pequeno, mas que fosse aconchegante e, principalmente, que estivesse dentro de um suposto orçamento. Foi numa tarde chuvosa, antes de ir para a faculdade que Lizzy visitou um apartamento térreo, num prédio muito antigo de apenas três andares, próximo a sua casa. Apesar de ser maior do que ela mesma previa, o imóvel precisava de alguns ajustes, algumas mãos de tinta e uma boa limpeza, ainda assim, Lizzy ficou encantada com o lugar, imaginando, até mesmo, como seria morar ali. Era um sonho ter seu próprio cantinho para viver, ser uma mulher com uma profissão e independente era seu ideal.

Já passava das oito, quando Lizzy deixou sua casa vestindo um lindo tailleur preto, meias finas e sapatos altos. Não era dona de uma beleza radiante como sua irmã Jane, mas era uma bela jovem com longos cabelos castanhos, personalidade forte e sorriso marcante. Extrovertida, espontânea e muito carismática aliava seu jeito a uma inteligência extraordinária, o que lhe garantia ser uma mulher muito atraente e interessante. Fazia muito sucesso com os rapazes, porém sua exigência extrema não lhe permitia namorar ninguém. Os poucos namoradinhos que teve passaram longe de sérios relacionamentos, nem mesmo sendo apresentados a seus pais. Preocupada com o horário, afinal era seu primeiro dia de trabalho, tratou de caminhar mais rápido até o ponto de ônibus, apesar dos saltos serem altos demais. Enquanto esperava o ônibus, pegou de dentro da grande bolsa, seu walkman. Apertou play e aumentou o volume. Tocava Crazy Little Thing Called Love, de Freddie Mercury.

O famoso escritório da família Darcy ficava numa importante avenida de São Paulo, dividida por suas luxuosas residências e alguns poucos escritórios e consultórios voltados a elite paulistana. Sentada no banco do ônibus, Lizzy se encantava com as fachadas imponentes e seus jardins exuberantes. Tudo parecia perfeitamente harmonioso. Logo, avistou a igreja Nossa Senhora do Brasil, que ficava numa charmosa esquina, desligou o walkman e o guardou na bolsa, levantando-se, pois deveria descer no próximo ponto. Apesar de ter ido algumas vezes ao escritório, durante a seleção dos candidatos a vaga, Lizzy não se cansava em admirar sua imponente fachada, tudo era grandioso. As majestosas colunas ao lado da porta principal acompanhavam simetricamente as enormes janelas de vidro que seguiam do térreo até o segundo piso. A frente havia um jardim perfeitamente esculpido que emoldurava e decorava todo o cenário. O simpático porteiro, que atendeu Lizzy, já havia sido informado sobre o início de trabalho da nova estagiaria, lhe abriu a porta, desejando as boas vindas.

Ao lhe abrir a grande porta, Lizzy deslumbrou-se, como se fosse a primeira vez que entrara no luxuoso salão térreo. O mármore escuro cobria todo o piso e as colunas internas, dando uma aparência sóbria ao grande lobby. Logo a frente, precisamente ao centro, ficava a mesa de recepção impecavelmente organizada e bem equipada. Ao aproximar-se da mesa, se tinha uma visão melhor de todo o salão. Ao fundo havia um reluzente piano de cauda preto. A escadaria lateral era coberta por um vistoso tapete vermelho que se destacava com o corrimão dourado. Observando ao alto, se tinha a visão dos pisos superiores, onde era possível ver as pessoas circulando nos corredores. Charlotte era a simpática e prestativa recepcionista do escritório. Além de seu trabalho na recepção, era ela quem organizava e administrava a agenda do Sr. Darcy. Ainda atendia ao telefone e controlava o serviço das copeiras, das faxineiras, dos seguranças, do porteiro e do motorista.

- Bom dia, Sra. Elizabeth, irei avisar o gerente de RH que você já chegou. Ele apresentará você a todos os funcionários do escritório. Espero que goste de trabalhar aqui conosco.

- Bom dia, Charlotte. Pode me chamar de Lizzy e obrigada.

O ramal de Charlotte tocou antes que ela pudesse fazer a ligação à área de RH.

- Um momento, por favor. É o Sr. Darcy, preciso atendê-lo.

Enquanto Charlotte estava ocupada atendendo a ligação, Lizzy se deu conta de que não conhecera o Sr. Darcy durante o processo de seleção. As entrevistas haviam sido feitas pelos advogados do escritório, sempre acompanhadas pelo RH. Achou estranho que o dono do escritório não participara de sua contratação. O comportamento recluso do Sr. Darcy, despertara em Lizzy uma repentina curiosidade em conhece-lo, saber sobre sua aparência. Depois de alguns instantes, Charlotte a chamou, interrompendo seus pensamentos.

- Sr, Elizabeth, quer dizer, Lizzy. O RH já foi avisado que está aqui, espero que não se importe em subir sozinha, pois não poderei acompanha-la, no momento. Preciso estar aqui, quando o Sr. Darcy descer.

- Sim, claro. Pode deixar. Lembro-me onde fica.

Enquanto Lizzy seguia em direção à escada, teve uma grande surpresa ao perceber que a discreta porta de um elevador se abria. De lá, saiu às pressas, um homem alto e bonito, muito bem vestido. Tinha uma aparência séria que chegava a soar mal-humorada e esnobe. Apesar da pressa, encarou o rosto de Lizzy sem ao menos cumprimenta-la e, antes mesmo de cruzar a mesa de Charlotte, virou-se para trás ordenando, num tom de voz grosseiro:

- Não use o elevador!

Sem perder tempo, continuou caminhando rapidamente até sair do lobby, deixando Lizzy, por alguns segundos, sem reação. Atordoada com o ocorrido, ela sentia-se extremamente ofendida e persuadida a perguntar, o que parecia já saber.

- Era o Sr. Darcy?

- Sim, era ele. – respondeu Charlotte naturalmente, como se já estivesse acostumada a conviver com as grosserias do patrão.