Sete anos antes...

Uma história se escreve com muito mais que uma noite...

Bella desceu empolgada de Thor após o exercício matinal, segurou no cabresto e seguiu tio August, acariciando o pelo do potro branco. Somente no último mês o estábulo teve um ocupante, o potro de Bella que sua avó lhe deu de presente de aniversário.

August abriu a baia. Um barulho de rosnado chamou a atenção da menina. Olhou assustada para o outro lado do estábulo e notou uma criança suja, brincando com algum item de mecânica descartado. Montava e desmontava carcaças de motor embaixo de uma escada no celeiro, no escuro iluminado por uma fresta.

Ela segurou no braço de August, amedrontada. Não por medo do garoto, mas por medo do cachorro de olhos cinza deitado sob os seus pés. O garoto rosnava irado para uma peça de motor que tentava abrir com uma faca de mesa.

‒Quem é, tio?‒ Bella sibilou baixinho. O cachorro levantou a cabeça da pata em alerta, o garoto registrou suas presenças. No escuro, via-se somente sua estatura e perfil. Era miúdo, aparentemente de uns sete anos, magro, com cabelos longos e despenteados. E ele não estava contente, notava-se pelos sons que fazia.

‒Ninguém, princesa‒ Tio August acenou para o garoto, Bella percebeu. Ela caminhou ao lado do administrador até a saída. Ele parecia nervoso, vez ou outra olhava disfarçadamente para trás. Sem que ela visse, o garoto e o cachorro sumiram.

Naquele fim de semana, Alice, prima de Bella, veio visitá-la. Bella organizou a cama auxiliar que Alice dormiria tirando todas as bonecas e colocando no sofá. Não iria deixar a prima dormir no quarto de hóspedes. Como passava muito tempo sozinha, sem irmãos, a mãe doente e o pai na engenharia da escuderia, ter qualquer companhia de sua idade era uma alegre mudança em sua rotina.

‒Você quer que eu faça um chocolate quente?‒ Propôs para a tímida Alice. Adulava-a para que a prima quisesse visitá-la mais vezes.

Alice concordou, Bella puxou-a pela mão e desceu as escadas em seu pijama longo, de bolinhas amarela. Parou no último degrau, olhou um lado e outro e puxou Alice a passos leves para cozinha.

‒Não podemos fazer barulho‒ Bella sussurrou. ‒Se nos ouvirem acordada às dez da noite, mesmo sendo férias, vão nos castigar‒ Conspirou e despejou o conteúdo de dois leites condensados na leiteira, onde misturou os ingredientes. Ouviu, como várias noites anteriores, um estranho e solitário som de gaita. Soava perto demais para ser do alojamento da equipe de seu pai. Mas impossível de vir da casa dos administradores, tio August e tia Maria, porque Bella sabia que nenhum dos dois tocava. Então de onde vinha o som inquietante e triste? Alice também ouviu e foi até a janela. Cheia de suspeita e dúvida, Bella abriu a porta da cozinha e saiu na varanda, com a colher de pau na mão. Não costumava ser imprudente e desobediente, mas a animação causada pela companhia de outra criança incitou-lhe o desafio.

‒Vamos ver quem está tocando?‒ Bella chamou e caminhou rumo ao som, no caminho do celeiro a 300 metros do casarão. O cão bege, de olhos cinzas, peludo como um lobo, parou em frente a elas na entrada do celeiro e mostrou os dentes.

‒Hei, calma‒ Bella elevou a mão com a colher de pau num gesto conciliador. Alice estremeceu e se encolheu atrás de Bella. O cão avançou um passo, ainda mostrando os dentes. ‒Não se aproxime‒ Bella estendeu a colher de pau para proteger-se. O cachorro baixou as orelhas, choramingou e inesperadamente lambeu a colher. Cautelosa, Bella deixou a colher de pau no chão e deu um passo atrás. ‒Hmmm, o lobo gosta de doce‒ gracejou e estendeu a mão diplomática para passar na cabeça dele.

‒Não, Bella‒ Alice alertou. Bella tocou-o mesmo assim. Ele recebeu o afago passivo e lambeu todo o conteúdo da colher.

‒Hei, eu tenho mais doce lá em casa, você quer?‒ ofereceu e pegou a colher de pau no chão. O cachorro olhou-a incerto. ‒Vem?‒ Ela chamou-o, deu um passo e esperou. Ele avançou um passo cauteloso. ‒Finja que não tem medo dele‒ instruiu a Alice e voltou a chamar. ‒Vem.

Ele acompanhou-a em dúvida até o casarão.

‒Espera aqui fora que eu vou trazer um pouco mais de doce para você‒ comunicou, como se ele entendesse, entrou com Alice e separou uma xícara com chocolate para cada uma delas. ‒Será que ele tomaria uma xícara conosco?‒ Bella brincou solene para entreter Alice, que estava tensa com a presença do cachorro. Encheu uma xícara mais larga de plástico, seguiu para a varanda e sentou na cadeira de balanço. O cachorro a seguiu atento, olhando a xícara. ‒Esse cachorro deve ser macho‒ comentou com Alice. ‒Minha mãe sempre disse que homem se ganha pela barriga‒ declarou sorridente, Alice riu mais relaxada. ‒Depois que você responder umas perguntinhas, eu deixo você ir embora‒ condicionou ao cão, pôs a vasilha no chão e enfiou uma colherzinha na sua própria xícara. ‒Há quanto tempo mora aqui?‒inquiriu. O cachorro aproximou-se de seu pé, com olhos inteligentes, inclinou a boca até a asinha de plástico da xícara, arrastou-a para trás vagarosamente, depois abocanhou mais seguro, deu as costas e saiu correndo. ‒Ah, seu ladrãozinho‒ Bella brincou. ‒Vai embora sem responder minhas perguntas‒ Riu com Alice e permaneceram conversando e ouvindo a música na gaita. Alguns minutos depois, a música parou.

No dia seguinte, Bella e Alice brincaram no rio, correram as campinas e observaram de cima de um morro o local onde os carros testes corriam. Sábado era o dia em que filhos de engenheiros visitavam o laboratório de tecnologia, a oficina e assistiam alguns testes. Estava cheio de garotos por lá. Diziam que Mike, filho de um renomado piloto, seria o futuro da equipe. Bella estava cansada daquela superproteção e preferencialismo só por ele ser homem. Sequer deixavam-na brincar nos carts.

Ela desceu para a oficina e escondeu-se com Alice embaixo de umas escadas para espiar.

Algo no setor de ferramentas chamou a atenção de Bella. Viu o garoto misterioso do estábulo inclinar, pegar uma chave de fenda escondido e depois ir para outra mesa.

Será que fui só eu quem o vi? Era como se ele fosse invisível. Todos permaneciam absortos em suas conversas. Ela viu-o inclinar-se sobre um painel e recolher uma peça. Depois ele passou em frente a uma mesinha de lanches, pegou um pacote de biscoito e saiu. Ela dobrou o pescoço até vê-lo pular a janela do galpão. Ninguém o viu.

Instantes depois, ouviu sorrisos e zombarias fora do galpão e correu para fora. Meninos riam e escarneciam de algo. Alarmou-se ao ver três garotos rodeando alguém caído no chão. Um deles, Mike, chutava. Bella puxou a mão de Alice alarmada e aproximaram-se.

‒Droga, Mike, o que você está fazendo?‒ Empurrou-o destemida.

‒Ele estava roubando peças‒ Mike acusou. Bella olhou de canto o miúdo menino de bruços, cheio de terra no rosto. Ele abraçava firmemente o pára-choque de um carro, o biscoito e a chave de fenda.

‒É sucata. Deixe-o levar ou irei falar com meu pai‒ Bella pediu e, como ela era dona de tudo aquilo ali, Mike teria que ouvi-la. Era um blefe, é claro. Seu pai não poderia saber que tinham um intruso nas redondezas da fazenda. Além disso, lhe mandaria, com muita rudeza, meter-se em seus próprios negócios.

‒Quem é esse garoto?‒ Mike apontou para o menino indignado.

Ela lembrou-se de dias atrás que tio August o protegeu, como se o conhecesse, encheu-se de determinação e explicou.

‒Sobrinho do tio August‒ mentiu. ‒Está passando as férias aqui ‒ adicionou e notou o cachorro a metros deles, rosnando. ‒Hei, Flippy, levanta que seu tio está te procurando‒ improvisou, adotando o apelido por ele usar uma blusa verde e calça verde. ‒Não se aproximem dele de novo. Ele tem um lobo ‒ Apontou para o animal que rosnava. ‒Além disso, meu pai deu livre acesso a ele para que ele faça o que quiser.

Aproveitando a distração de todos, o garoto no chão arrastou-se sem soltar a peça, levantou-se e correu. O cachorro correu atrás dele até que se perderam rumo ao celeiro. Ela agradeceu mentalmente que os meninos não tivessem associado o fato do menino ser branco e August negro.

‒Vamos para casa, Alice‒ determinou cheia de marra, alisou a calça de brim bege e caminharam de mãos dadas os próximos 500 metros. Ao passarem pelo celeiro, Bella viu pelo canto do olho uma sombra observando-a por trás de uma viga. Acenou para ele com a mão no ar. Ele não respondeu.

Naquela tarde, enquanto tia Maria fazia comida e o cheiro espalhava pela casa, Bella ficou sentada na varanda olhando para o celeiro. Viu quando tio August saiu com uma vasilha grande da cozinha e seguiu para lá.

‒Fica aqui, Alice‒ pediu e seguiu tio August escondida. Ele entrou, ela olhou pela fresta da madeira o que ele fazia.

‒Você não pode ficar aqui muito tempo, garoto‒ disse mau-humorado e entregou-lhe a comida. O menino não lhe deu atenção. Mexia na sucata que se apossou na oficina. August continuou. ‒A Bella te viu, hoje mais pessoas, e eu não posso continuar trazendo comida para você. Se meu patrão descobre, vai me mandar para rua.

O garoto o ignorou, mantendo a concentração no que fazia.

‒Você não me entende, não é? Maldito seja, você precisa ir embora! Seis meses se passaram. Eu não posso mais esconder você quando você fica andando por aí como se a fazenda fosse sua! E ela não é! Ponha isso em sua cabeça, ela não é! Você é só uma assombração! ‒ Deu um passo à frente. O cachorro rosnou ameaçador.

Deus, então o menino não era mesmo nada do tio August? Quem era ele então? E como tio August pretendia jogar na rua um menino que mais parecia ter sete anos? Por que tio August agia sempre tão nervoso e incomodado perto dele?

Atenta, Bella viu tio August colocar enfadado a vasilha no chão, deu as costas e afastou-se, não sem antes fazer o sinal da cruz. Ela escondeu-se para que ele não a visse quando passasse.

Depois do almoço, Bella pediu a sua avó que as levassem à cidade, a 15 km. Vovó passou todo o trajeto falando de homens bonitos que cruzavam na estrada. 'Olha que pernas! Coragem eu tenho, só não tenho sorte'. Bella ria com Alice de suas irreverências e suspiros. Ela tinha 51 anos e era uma figura engraçada. Viúva desde os 42, só se relacionava com rapazes mais novos. Foram a chocolatarias, doçarias. Vovó sempre distraída e com bom humor, cumprimentando todos em volta. Permitiu Bella comprar toda espécie de biscoitos e, ao fim, Bella convenceu a avó a passar no agroshop para comprar uns mimos para Thor. A avó ficou na porta em flertes com o chapa. Bella comprou biscoitos para cavalo de sabor cenoura. Avistou um saco de ração para cachorro num canto, perguntou ao vendedor qual a mais indicada e apreciada,e ele indicou. Bella comprou sob o olhar de Alice um pacote, comprou um antipulgas, um perfume para cachorro e bastante lacinhos e gravatinhas. Lamentou que não tivesse essas gravatinhas e lacinhos para cavalos. Como não sabia o sexo do cão, iria levar os dois recursos. Ele ficaria lindo com dois lacinhos na cabeça. Sorriu contente, pagou pelas compras com sua gorda mesada dada por sua mãe e embrulhou-as.

À noite, surpreendentemente, Charlie veio jantar em casa. Alice ficou meio receosa com sua presença. Bella insistiu em pacificá-la. 'Ele só parece mau.' Repetiu. 'Mas é bonzinho.' Riu, brincalhona. Alice tinha reservas com Charlie porque depois que seu pai, irmão de Charlie, sumiu, ela e sua mãe ficaram sob as responsabilidades financeiras do déspota e inacessível Swan. Ele as mantinha na cidade, longe, para que não lhe dessem mais problemas que mil euros mensais.

O pai não era mau, Bella sempre dizia. Ele só era preocupado e tenso. Alguns diziam que era egoísta e avarento. Mas Bella jamais pensou isso dele. Ele não tinha tempo para ninguém por causa da escuderia. Vivia aferrado nos estudos e tecnologias para os carros. Também não gostava de gastos desnecessários e amava muito seus bens. Evitava o casarão porque não queria sofrer ao ver a mulher doente sobre a cama. Os poucos minutos que ficavam juntos eram nos domingo à noite em que ele a levava à igreja e costumava dormir durante o sermão.

Às vezes Bella lamentava não ter irmãos ou não ter nascido homem. Todos os filhos de engenheiros, mecânicos ou pilotos podiam ficar no fim de semana no alojamento. Mas ela não podia ao menos aparecer lá. O jeito era se virar sozinha com seu potro, suas bonecas.

Antes de recolher-se, passou no quarto da mãe, acariciou sua mão e tocou seu rosto. Lembrou-se do que a mãe confessou e lhe pediu seis meses atrás, quando descobriu o câncer na coluna. Bella negava-se a atendê-la. 'Não, mamãe. Você vai viver. Não vai ficar inválida numa cama!' foi o que respondeu na ocasião.

Beijou e fez companhia à mãe, deixou-a com a enfermeira e voltou pesarosa ao seu quarto. Era triste ver a alegre e apaixonada mãe naquele estado.

Depois de colocar novamente as bonecas no sofá para que Alice dormisse, Bella vestiu o pijama longo e abraçou o urso. Naquela noite estava em parte melancólica, em parte eufórica e curiosa. Não queria ficar quieta em seu quarto, sabendo que tinha alguém estranho vivendo no celeiro e que podia ser ele a tocar a gaita.

Pediu que Alice a esperasse, desceu até a cozinha, abriu as embalagens de biscoito, separou uma porção de ração num saquinho, pôs tudo dentro de uma sacola e ficou à mão alguns biscoitos de cachorro. Foi para varanda e esperou, ansiosa, que o lobo estivesse perto. Ele apareceu, desconfiado. Ela sorriu, se inclinou e ofereceu o biscoito a ele. Ele comeu cautelosamente o que ela colocava no chão. A seguir, cheia de confiança, Bella organizou biscoitos recheados, guloseimas e bolos numa bolsa de lona, além da porção de ração para cachorro; pôs no chão e acariciou a cabeça do animal.

‒Leva para seu amigo. Amanhã, se você quiser, pode vir buscar mais. ‒ Afagou sua cabeça. Ele inclinou-se até a alça da sacola, ergueu-a nos dentes e deu passos atrás, vacilante. Ela sorriu encorajando-o. Ele virou e correu rumo ao celeiro. Minutos depois o som da gaita parou.

No dia seguinte, Bella e Alice brincaram com uma bola de vôlei, levantando e cortando. Perceberam o cachorro perto, e Bella chamou-o. Sempre desconfiado, o cachorro aproximou-se, e Bella jogou a bola em sua direção.

‒Pega, lobo!‒ Incitou-o. Ele ignorou-a. Ela franziu o cenho pensativa, inclinou e pegou um graveto, depois o jogou longe. ‒Pega, pega!‒ Gritou. Ele pareceu indeciso, olhando dela ao graveto voando. E quando pareceu que ele iria, ouviu-se um assovio vindo do estábulo, o cachorro ergueu suas orelhas alerta e correu em disparada rumo ao estábulo.

Ela entendeu que o dono o chamou.

Alice se foi. Nos dias seguintes, Bella tentou ganhar a confiança do cachorro arisco, ao tempo que sentia uma presença estranha espreitando-a. Como uma sombra, se ela ia andar a cavalo, correr pelos vales, nadar no rio em dia de calor, via-o escondido atrás de alguma viga, nas sombras, atrás de árvores. Em silêncio. Observando. Ninguém, a não ser August, parecia ter ciência de sua presença.

Certa noite, Bella ouviu o som da gaita, desceu as escadas da casa rumo à cozinha e saiu na varanda. Às vezes tinha dúvida se era somente ela que ouvia. Ela já tinha entregado bolinhos frescos para o lobolevar, mas nesse dia o som da gaita continuou. A noite era fria, enluarada, ela abraçou-se, seguiu o som curiosa, rodeou o celeiro e parou atrás de uma escada. O som triste era feito pelo garoto deitado ao lado do cachorro. Ele olhava o teto. Bella caminhou hipnotizada, sentou-se no chão e ouviu a triste música. Nem viu o tempo passar. A música era tão intensa, tão cheia de dor e solidão que quando menos percebeu havia lágrimas em seus olhos. Sentiu saudade do vigor da mãe, do pai ausente, de coisas que sequer tinha, como o irmão que nunca teve, amigos. Ela apoiou as costas no quadrado macio de feno, fechou os olhos e mergulhou na música.

Acordou no dia seguinte coberta por uma blusa de frio fina. Abriu os olhos e notou que o cachorro dormia ao seu lado.

‒Ugh, como você está fedorento‒ Esfregou o nariz sorridente. ‒Já que falamos nisso, vamos ao meu quarto tomar um banho‒ convidou e lhe estendeu a mão. Nas últimas semanas lhe subornou com tantos biscoitos que ele tornou-se seu amigo.

Olhou em volta, e o menino que tocava gaita na noite passada estava encolhido num canto, olhando-a atento. Ela nunca tinha conseguido ver seu rosto direito. Só sabia que ele era magro, pequeno e tinha cabelos longos. Queria conhecê-lo, saber como ele foi parar ali, perguntar cadê sua mãe. Depois, afinal, ele estava na fazenda. Quem sabe se tornassem amigos. Queria que ele fosse tão facilmente subornado por biscoitos como o cachorro. Ela sorriu para ele. Ele abraçou os joelhos, olhando-a curioso. ‒Posso levá-lo comigo? ‒ela pediu e apontou para o cachorro. Ele assentiu brevemente, sem delongas. Seus olhos cinza chamaram atenção de Bella. Eram marcantes. Parecia um dia sem calor.

Entrou escondida na mansão para que vovó Dwyers, nem August a visse subindo com o cachorro àquela hora da manhã. Trancou a porta do quarto, entrou em seu banheiro e despejou bastante xampu no pelo do cachorro. Ligou a ducha morna e molhou-o. Esfregou, esfregou. ‒Você vai ficar lindo!‒ Encorajou-o sorridente e cantou a música tema dos banhos em suas bonecas. ‒Lava, lava, lava, esfrega, esfrega, esfrega. ‒ O pelo clareava conforme ela o esfregava. Ele agüentou passivo. Ao fim, enxugou-o com uma toalha felpuda, sentou-o no sofá das bonecas e secou seu pelo com o secador. Depois de vê-lo pronto, abriu a boca encantada com os pelos brancos e olhos cinza. Era um husky siberiano, não um lobo.

‒Hei, você é lindo!‒ Afagou-o calorosamente e cheirou o xampu de talco em seus pelos. Pegou dois lacinhos vermelhos, prendeu em dois lados de sua cabeça com cola quente e lhe adicionou uma gravata. ‒Olha o que eu comprei para você!‒ Entregou-lhe como compensação um osso gigante defumado. Não sabia que queria tanto um cachorro até ter um. Sua avó lhe daria tudo que ela pedisse, inclusive comprou Thor, porque ela queria muito um cavalo. Com certeza ela intercederia para que ficasse com o cachorro, pensou enquanto o afagava sorrindo. Um barulho lhe chamou atenção, e ela olhou para porta aberta da sacada. Uma sombra se escondeu, e ela imediatamente soube quem era. O dono do cachorro. ‒Agora vamos sair daqui e brincar por aí antes que o tio August ache você aqui. ‒ combinou e saiu para brincar de correr nos campos.

Brincou de jogar graveto e esperá-lo buscar, depois lhe abraçou aplaudindo-o por ele ter pego o objeto, dançou com o cachorro em duas patas, ria e girava. ‒Você é um ótimo parceiro de dança.

Horas depois, o dono o chamou repentinamente. O cachorro titubeou indeciso, olhando de Bella para o celeiro, deixou o graveto no chão e correu. Frustrada por ter encerrado a brincadeira, decidiu ir ao galpão ver seu pai.

‒O que faz aqui, Bella?‒ questionou acusador. ‒Não toca em nada ‒alertou e voltou-se aos dois engenheiros próximos que examinavam a planta de um motor.

‒Vim ver o senhor‒ explicou envergonhada.

‒Não estou com tempo agora‒ disse sério. ‒Fique sentada e quieta.

Bella olhou em volta, viu diversos homens de macacões brancos trabalhando e seguiu para um canto onde descartavam peças inúteis. Inclinou-se, sentindo-se invisível, pegou furtivamente um volante descartado e deixou tranquilamente o galpão.

‒Vovó, às vezes acho que o papai odeia as mulheres.

‒Por que diz isso, querida?‒ a avó perguntou. Ela vestia um vestido florido de anos 60, uma faixa no cabelo, balançava-se na rede. Vovó Dwyers, assim como Bella, era evitada por Charlie.

‒Porque na escuderia só trabalham homens, porque ele contratou uma empresa de limpeza e nela só trabalha homens, porque os cozinheiros do galpão são todos homens. Papai não gosta da companhia de mulheres.

‒Talvez ele não queira mulheres por aqui em respeito à sua mãe, que comandava tudo antes‒ disse compassiva. Vovó tinha os mesmo traços de Rennee e de Bella. Cabelos mogno, olhos azuis. Bella adorava conversar com ela, ficar em seu quarto. Era a pessoa que mais amava, depois da mãe. Pena que ela não pudesse correr pelo quintal, andar a cavalo e nadar no rio com Bella. Isso faria dela a companhia perfeita.

Sua amizade com o cachorro cresceu. Bem, era muito melhor ficar com o cachorro, ou com o cavalo, do que ficar no quarto conversando com suas bonecas, no mundo imaginário de Bella, em que ela sonhava ser uma famosa modelo, em que as bonecas eram seu público, ou que era uma boa professora e seus alunos suas bonecas. Ainda tinha mais uma fantasia, a de que ela era uma brilhante engenheira e fazia o protótipo do carro mais veloz do mundo, e todas as bonecas eram seus mecânicos, pilotos teste.

Esta era a ilusão de quem sonhava ser aplaudida pelo pai.

Com um suspiro, Bella cansou de brincar com as bonecas, desceu as escadas e sentou na varanda. Não era noite ainda e podia-se ouvir à distância o som dos motores no galpão. Balançou-se na rede, viu o lobo vindo até sua varanda e estendeu a mão. Tinha alguns biscoitos no bolso frontal de sua camisa xadrez, tirou e colocou em sua boca. Ele não quis comer, simplesmente deitou aos seus pés. Ela estranhou seu comportamento e acariciou sua cabeça. Quando aquele comportamento se estendeu por dois dias, ela pediu que o tio August a levasse até a cidade e foi ao agroshop.

‒Tio Marcus, se um cachorro era bem ativo e começou a comer muita besteira, doces, agora está triste e não está comendo mais nada, o que o senhor acha que ele tem?‒ perguntou tranquilamente ao veterinário que costumava ir a fazenda cuidar de Thor.

‒Bem, Bella, pelos sintomas parece ser verme‒ respondeu ele achando graça da desenvoltura, beleza e facilidade de se expressar da filha de Charlie. Ela iria ficar uma beldade quando crescesse, pensou. Seus cabelos vermelhos claros, cor mogno, o nariz arrebitado com sardas e o queixo teimoso deixaria muitos rapazes lambendo o chão que ela pisasse.

‒E o que o senhor daria para ele?

‒Um vermífugo‒ Respondeu rindo.

‒Só isso?

‒Sim. Depois daria uma vitamina. Mas o ideal é que um profissional veja o cachorro para saber se todas as vacinas estão em dias.

Ela deu um suspiro frustrada, sabendo que seria muito difícil trazer um cachorro ao veterinário sem que tio August implicasse. Sempre que ia à cidade, tinha que andar com variadas sacolas grandes para encobrir os mimos e rações que comprava para o cachorro. Pediu ao veterinário o vermífugo e a vitamina indicada. Ele perguntou somente a raça do cachorro e se era filhote. Bella respondeu que sim. Pelo menos achava que aquele não era o tamanho adulto do cachorro.

Ao chegar em casa, empolgada por ter conseguido comprar o remédio que deixaria o lobo animado novamente, correu para o celeiro. O cachorro estava deitado.

‒Hei, lobo, boa tarde. Eu trouxe uma coisa para você. Abra a boquinha‒ Preparou o vermífugo numa espécie de seringa e colocou na boca do cachorro. Ele iria gostar, pensou. Tinha cheiro de morango. O cachorro tomou tranquilo. Ela sorriu. ‒Mais tarde venho te dar mais doses‒ disse e lhe afagou a cabeça. Surpreendeu-se quando o garoto pequeno apareceu inesperadamente do escuro, com olhos acusadores e ressentidos.

‒O que foi?

O garoto mostrou o cachorro e fez uns gestos com a mão apontando do cachorro para ela. Ele a culpava pela doença do cachorro.

‒Não fui eu quem lhe fez mal. Ele não deve ter nenhuma vacina em dia. A culpa é sua!‒ Ela discutiu. Ele franziu o cenho, como se não tivesse entendido o que ela disse, então abraçou protetoramente o cachorro.

Ela o olhou e compadeceu-se. O cachorro era o único bem daquele garoto, e ele se sentia ameaçado. Ela estendeu a mão num gesto conciliador.

‒Ele vai ficar bem‒ disse baixinho, preocupada e acariciou o dorso da mão dele cautelosa. O garoto abraçou mais o cachorro. Ela os observou pesarosa. Quem era aquele menino? Ele parecia tão frágil.

‒Eu prometo para você que ele vai ficar bem. Prometo‒ garantiu e adulou-o com toques ternos no seu braço. Ele suspirou. Ela deu-lhe espaço e caminhou rumo à porta. Até então nunca se importou em descobrir sua origem. E sabia que se seu pai descobrisse as coisas não ficariam tranqüilas. Intrigada, caminhou rumo à casa do administrador August para questionar sobre o garoto.

‒Tio August, quem é o garoto que vive nos celeiros?‒ Ele fez uma careta e despejou chá numa xícara. Depois se sentou desgostoso e apoiou os cotovelos na mesa de madeira.

‒Ele vai embora em poucos dias‒ avisou nervoso. ‒Estou arrumando uma fazenda de um amigo para ele trabalhar na colheita de uvas‒ informou. Bella abriu a boca pasma.

‒Ele não pode trabalhar numa fazenda. Ele é somente uma criança!‒ Alegou indignada.

‒Mas ele também não pode ficar. Ou meu emprego está ameaçado.

‒Por que ele não pode ficar?

‒Porque ele não tem serventia nenhuma aqui. Ele é retardado. Não entende o que falamos. Nem fala.

Bella abriu a boca surpresa e compadecida. Oh meu Deus, surdo-mudo, sem local para morar, sem família e prestes a perder o teto provisório!

‒Tio, não precisa tirá-lo tão rápido daqui. ‒ Tentou convencê-lo. ‒Ele não representa um problema.

‒Mas isso me compromete. ‒explicou trêmulo.

‒Não se preocupe. Se algum dia meu pai descobrir, eu assumo tudo.

Levantou-se determinada e voltou ao celeiro. O garoto estava sentado ao lado do cachorro, com um caderno na mão, enquanto rabiscava. Bella entrou e sentou-se cautelosamente ao lado dele, acariciando o cachorro. Ele continuou escrevendo. Vez ou outra ela sentiu um olhar sobre si.

No dia seguinte, o cachorro amanheceu melhor. Ela lhe levou um pouco de ração e esperou comer e tomar a água com vitamina adicionada. Viu de longe o dono do cachorro olhando-a de viés enquanto parafusava alguma peça de carro descartada.

‒O que você está fazendo?‒ Aproximou-se. Ele ergueu o olhar e voltou a fazer o que fazia. Ela sentou-se ao seu lado e viu o que tinha escrito no seu caderno. Eram cálculos matemáticos e rabiscos de desenhos de carros.

Ela fez menção de tocar seu caderno, mas, antes que ela fizesse, ele o escondeu do outro lado para que ela não pegasse.

‒Humph, você tem cheiro de mortadela. ‒ Ela acusou e franziu o nariz. ‒Eca, é o mesmo cheiro dos garotos da minha escola que correm o intervalo todo e infestam a sala de cheiro de mortadela e calabresa‒ disse como se ele entendesse. Ele não fez nenhum movimento de compreensão. Ela permaneceu sentada ao seu lado no chão, como se ele não tivesse rechaçado sua companhia. Após um tempo, ele abriu um pacote de biscoito guardado numa mochila e ofereceu o pacote a ela, sem olhá-la. Ela recebeu e comeu sorridente. Era uma concessão.

Nos dias seguintes, estabeleceu-se uma rotina entre eles. Bella respeitava seu espaço, mas sempre o observava. O objeto em que ele trabalhava cresceu e criou forma. Parecia uma espécie de carrinho de neve, feito com restos de fibra descartados da escuderia. Teve uma idéia para ajudá-lo e agradá-lo, foi à oficina e pegou escondida rodas descartadas com pneus.

Ninguém a viu entrar ou sair. Nem mesmo seu pai, a quem não via há três dias. Colocou a roda despretensiosa ao lado do menino e caminhou até o cachorro com uns biscoitinhos na mão.

‒Que tal um banho, hein, meu paciente predileto?‒ perguntou sorridente. O cachorro acompanhou-a até o casarão balançando o rabo.

Bella cantava enquanto ensaboava o cachorro. Deixou a porta da varanda aberta e sentiu a presença familiar observando-os enquanto ela secava e mimava o cachorro. Ouviu um movimento quando ela separou a fitinha vermelha para prendê-la no cachorro. O garoto apareceu dentro do seu quarto e ergueu os lacinhos na mão.

‒O que foi?‒ Ela perguntou incerta ao ler reprovação em seus olhos.

O garoto apontou para a parte detrás do cachorro, para o órgão sexual. Ela entendeu que o garoto defendia o lado macho do cachorro. Esquentou a cola quente tranquila. ‒Me dá isso, Flippy. ‒pediu e prendeu o lacinho dos dois lados da orelha do cachorro. ‒Você devia aproveitar e tomar banho também. ‒ Apontou para o banheiro. ‒Você tá fedendo‒ Fez um gesto abanando o nariz. O menino ergueu a camisa verde ao nariz e cheirou-a. Bella aproveitou que ele pareceu entendê-la, foi até a banheira e a encheu, fingindo naturalidade para não espantar o garoto. ‒Agora tire essa roupa suja‒ Fez um gesto. Ele observou-a submisso e tirou. Ela queria sorrir, mas não sorriu. Derramou produtos de higiene na banheira e voltou para o quarto para perfumar o cachorro e lhe presentear com um osso.

O menino entrou na banheira timidamente, passou o sabonete com cuidado. Ela entrou no banheiro e pegou seus xampus. ‒Fecha os olhos que eu vou lavar seu cabelo‒ instruiu. Ele obedeceu. Ela derramou xampu nas mãos, a seguir o ensaboou nos cabelos longos. Esfregou, fez massagem no couro cabeludo e quando ia pedir que ele mergulhasse para enxaguar, notou que ele sorria, de olhos fechados, como se estivesse se deliciando. E parou observando-o, ainda esfregando sua nuca. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Sentiu pesar por ele, mesmo sem saber sua história. E como nunca o tinha visto sorrir, vê-lo foi como se todo o universo sorrisse. Nunca tinha pensado que no estábulo ele não tinha essa regalia de tomar banho em água quente. O máximo que ele fazia era tomar banho no rio, ou em cuias. E em dias mais frios, como hoje, ele não podia ter esse prazer do banho. Antes que lágrimas de compaixão descessem dos seus olhos, ela deu um tapinha em seu ombro e fez um gesto para que ele mergulhasse. Ele mergulhou e ficou alguns segundo embaixo d'água. Depois ergueu o tronco rindo.

Ela riu de volta e pegou a escova de banho com cerdas macias, espalhou sabonete e passou nos seus ombros. Ergueu seus braços, esfregou os braços magros, o ombro fino. Ele permitiu passivo.

‒Lava, lava, lava. Esfrega, esfrega, esfrega. ‒ Cantou enquanto o esfregava. Ele olhava-a com olhos bem abertos e curiosos.

Após um tempo, ela deixou-o esfregando pés e saiu do banheiro. Ouviu alguns barulhos de mergulho em sua banheira redonda, sons de bolhas de água. Deixou-o brincar até que percebeu que ele já passou muito tempo.

‒Chega. ‒ Entregou uma toalha. Ele voltou ao quarto molhado, as pernas escorrendo água. ‒Seca esse cabelo com a toalha e vista meu pijama‒ Deu outra toalha para seu cabelo e estendeu o pijama amarelo. Ele olhou o pijama como se ela estendesse uma cobra. Ela apontou para a roupa suja dele, fez careta e abanou o nariz. ‒Você vai usar essa roupa fedida?

Ele terminou de secar-se e vestiu cuidadosamente o pijama, que poderia caber dois dele.

‒Senta aqui que eu vou secar seu cabelo‒ Ela ergueu o secador. Ele encolheu-se, negando. ‒Você não pode ir lá fora com o cabelo molhado‒ Explicou. Ele olhou-a desentendido. Ela fez um gesto de lá fora e frio.Ele sentou e permitiu que ela o secasse no cabelo.

Depois de seco, ela ergueu seu queixo para olhá-lo atenciosamente pela primeira vez. Agora que a pele estava limpa, o cabelo escovado e ele vestia uma roupa limpa e clara, ela viu seu rosto. Era lindo. Tão frágil. Com pele clara e lisa, nariz fino, olhos cor de dia cinzento. Mas seu queixo era forte, quadrado, determinado. Um dia ele seria bonito. Parecendo surpreso com o escrutínio, encarou-a.

‒Hei, você está cheiroso agora!‒ Sorriu e inclinou-se para cheirá-lo. Ele encolheu-se com horror. Ela deu um sorriso maior e cheirou o ar, abriu os braços e abraçou-o naturalmente, envolvendo seus ombros num afago protetor, do mesmo modo que fazia com o cachorro após o banho. Ele congelou surpreso e baixou a cabeça. Ela afastou-se e ergueu os lacinhos. ‒Agora que tal um lacinho?‒ Provocou brincalhona. Ele negou.

Ouviu-se trovões lá fora. Ela pensou na tempestade que desabaria e no frio que faria no celeiro agora que o inverno iria começar para valer.

‒Dorme aqui comigo. ‒ Bocejou aludindo sono e apontou para a cama auxiliar. Ele franziu o cenho. Ela apontou para o tempo lá fora e fez um barulho com a boca. ‒Cabrum!‒ E tremeu as mãos, mostrando ter medo. Tinha medo de tempestade, mas, além disso, queria que ele ficasse e não enfrentasse o frio lá fora. Sem olhá-lo muito para deixá-lo à vontade, ela colocou de um a um de seus bonecos e ursos no sofá cama, depois ligou a TV. Ele deitou-se hesitantemente, olhando-a incerto. Ela preparou um pijama para si, deixou o menino no quarto com a TV ligada e dirigiu-se ao banho. Tomou uma ducha e, quando saiu, ele ria para a TV, que passava desenho animados. Cobria-se com o cobertor felpudo e com cheiro de talco. Ela foi ao quarto da avó, vê-la e dar boa noite. Foi ver a mãe, onde a ouviu contar histórias e lembranças. Bella desceu triste à cozinha, preparou vários sanduíches e subiu com duas caixinhas de toddynho.

Sentou-se borboleta na cama, pôs a cestinha perto dele, displicente, e começou a comer assistindo TV, agindo como se o fato dele estar lá fosse a coisa mais natural do mundo. Pelo canto do olho, notou que ele ergueu a mão cautelosamente, em todo o tempo olhando-a, e pegou um sanduíche.

Ela riu disfarçadamente e fingiu ignorá-lo. A chuva desabou lá fora, trovoadas e relâmpagos romperam o céu. Ela desligou a TV, virou de costas para ele e apagou a luz.

‒Boa noite, Flippy.‒ Sorriu contra o travesseiro e dormiu.

Acordou no dia seguinte sem sinal do garoto no quarto. Somente o pijama estava dobrado junto ao cobertor. Ela desceu com o cachorro, saiu para o celeiro e encontrou o veterinário cuidando de Thor.

‒Bom dia, tio Marcus‒ Saudou-o sorridente e afagou Thor. ‒O que o senhor fez para deixar meu potro tão fortão?‒ perguntou ao acariciar os músculos do pescoço do animal.

‒Vitaminas e suplementos‒ disse orgulhoso.

‒Hmmm, essas vitaminas também deixam pessoas fortes e grandes?‒ Olhou de canto para o outro lado do galpão, onde viu o garoto sentado no chão mexendo no carrinho que construía.

‒Quando uma criança é muito miúda, quase sempre os pais dão algum tipo de fortificante para abrir apetite ou vitaminas para ajudar no crescimento‒ elucidou e virou-se para o cachorro que estava deitado na sombra. ‒ Eu trouxe umas vacinas para o cachorro. ‒ Inclinou-se em frente a ele, o cachorro mostrou os dentes. O veterinário ignorou-o e ergueu sua pata para olhar as unhas, em todo tempo olhando-o nos olhos. ‒Realmente ele é um filhote. Deve ter sete ou oito meses‒ Após vaciná-lo, deu um cartãozinho de vacinas para Bella e ajudou-a a montar em Thor para dar uma volta.

Mais tarde, Bella convenceu a avó a ir à cidade comprar presentes de Natal, que seria dali a duas semanas, caminhou pela cidade e entrou em uma farmácia. Contou a avó tudo sobre o menino. A avó ouviu preocupada, mas compreendeu a neta e seu desejo de ajudar.

‒Vovó, você compra pra mim as vitaminas‒ Pediu matreira, após ouvir da avó que a mãe de Bella também precisou tomar vitaminas e estimulantes de apetite quando criança. A avó comprou.

Mais tarde, Bella deitou na rede e balançou-se, enquanto ouvia o familiar barulho de motores longe. Com uma necessidade estranha de companhia apertando seu peito, caminhou até o celeiro e assustou-se quando ouviu um gemido, tosses chiadas e barulho de dentes batendo-se. Alerta, correu até em casa, abriu o armário no quarto da mãe e pegou um termômetro e antitérmico disfarçadamente da enfermeira. Ter a mãe doente em casa, com muitas crises, acostumou-a a estar sempre alerta. Voltou ao celeiro, inclinou-se diante do menino e pôs o termômetro sob seu braço. Ele aceitou com os olhos lânguidos. 38°. Ela suspirou, pôs gotas de Advil infantil no dosador e derramou no canto de sua boca. Ele engoliu. ‒Que foi? Será que você está com lombriga também?‒ Tentou distraí-lo, mas estava preocupada. Ele tremeu de frio. Ficou com ele um tempo e ao perceber que os empregados de sua casa já tinham se recolhido, ajudou-o a levantar-se e atravessou o caminho de sua casa com ele apoiado no seu ombro, o cachorro no encalço. Levou-o para o seu quarto. Uma tempestade se anunciava, e ele não poderia passar a tormenta com febre, no celeiro, onde não teria aquecedor para noite fria. Ela o deitou na cama de suas bonecas e cuidou dele toda a noite. Lembrou-se do que sua mãe dizia, que quando a garganta estivesse vermelha, era só uma inflamaçãozinha e poderia ser tratado com anti-inflamatórios, mas se estivesse branca e cheia de pus, o tratamento seria com antibiótico. Consultou a avó. A avó, enfermeira aposentada, administrou os remédios. Como a avó não sabia idade do menino, nem peso, mas imaginava que ele tivesse de sete a nove anos e que pesasse uns quarenta quilos e seguiu a bula do remédio infantil de Bella. Para ajudar a baixar a febre, Bella passava lenços molhados na testa do garoto. Diversas vezes, a avó veio cautelosamente ver a criança.

O menino abriu os olhos algumas vezes, olhou Bella com olhos sem vida, soprou a palavra mat, depois caiu na inconsciência, apertando os dedos de Bella na mão. Dois dias depois, a febre tinha cedido e suas tosses eram menos chiadas. Esperou-o acordar enquanto tirava uns casacos seus e cachecóis dos armários. Depois foi à cozinha e preparou um cup noodlesde vegetais com frango no microondas. Subiu com o macarrão no copo e acordou o garoto para comer.

‒Bom dia‒ Chamou-o e deu tapinhas em seu braço. ‒Hora de comer.

O garoto abriu os olhos desorientado. Ela riu tranqüilizando-o.

‒Você estava doente, fazia frio no celeiro, e eu te trouxe para meu quarto‒ explicou e colocou o copo com macarrão instantâneo numa mesinha. ‒Vamos comer algo quentinho.‒ Apontou para o copo perto dele e abriu o seu. ‒Lá fora está o maior vento‒ contou. Ele comeu vagarosamente, depois deitou grato, segurou a mão dela e dormiu.

Dias depois chegou o Natal, houve uma festa na fazenda, onde todos os funcionários, mecânicos, engenheiros e pilotos testes participaram. Era uma grande família.

A sala de sua casa estava repleta de pessoas. A equipe de decoração enfeitou a casa com sinos, bonecos de gelo de pelúcia, árvores. Na sala de jantar, o buffet organizou uma mesa repleta de delícias. Castanhas, carneiro assado, doces, pães de gergelim, eram disputados pelas dezenas de famílias.

Bella disfarçou para conseguir afastar-se da prima Jéssica e prima Alice, preparou um refratário cheio de comida, pôs doces e castanhas numa sacola e atravessou o tempo frio rumo ao celeiro. Encontrou o garoto agasalhado com o casaco e roupas de frio femininas que lhe dera. Ele estava dentro do carrinho que construiu. Mais tarde, ele iria para o quarto aquecido dela, essa era a rotina. Ele veria desenho animado depois dormiria.

‒Hei, para!‒ Riu e acariciou o cachorro que a mordeu brincalhão na bota de couro. Tocou-o na cabeça e ficou em silêncio só observando o menino concentrado. Estendeu seu presente de Natal embrulhado em papel de presente. Era uma roupa de frio reforçada, com capuz e isolamento térmico, uma caixa de bombons e uma réplica de carrinho de corrida da escuderia de seu pai. Ele abriu curioso. Ao ver o carrinho, abriu um sorriso maravilhado para ela.

‒Feliz Natal. ‒desejou emocionada e suspirou com uma mescla de encanto e fascinação inocente ao receber seu sorriso. Sentou-se no chão e o observou apertar um parafuso só pelo prazer de estar perto dele. Era confortável. Já adorava sua companhia, mesmo com seu silêncio.

Jéssica, prima de Bella, a surpreendeu. O menino escondeu-se.

‒Bella, os meninos foram para a pista andar de cart. Vamos espiá-los? ‒Jéssica chamou. Este ano ela ia para o colégio de meninas. O pai de Bella iria custear, já que a mãe de Jéssica era sua irmã caçula, mãe solteira e não tinha condições de criá-la. E Jéssica tinha certa paixonite pelo filho do engenheiro, Mike. Bella acompanhou-a.

Sem explicação, tio August e sua esposa foram embora repentinamente, depois de mais de trinta anos servindo na fazenda. A chegada do novo administrador trouxe certa animo a Bella. Carlisle, Esme e seus filhos gêmeos foram uma novidade excitante, mas não deu tempo de conhecê-los já que Bella passava a maioria do seu tempo livre cercando o menino e seu cachorro.

Bella tentou se comunicar com o garoto por sinais e letras no papel. Ele respondia somente com breves assentimentos e negativas. Na maioria do tempo a olhava furtivamente como se ela fosse difícil de entender.

A neve cobriu completamente o chão, oito centímetros de flocos pequenos. O frio aumentava com uma velocidade intensa, adicionado de um vento gelado. Certa madrugada, ela advertiu que ele saíra do quarto antes do dia amanhecer e que deixou ao lado da cama o desenho de um carro e uma mulher bonita segurando a bandeira. Observou bem o desenho. Não era uma mulher. Era uma menina de olhos azuis e cabelos mognos. Sorriu ao deduzir ser ela. Vestiu-se com roupas quentes e foi vê-lo no celeiro. Surpreendeu-se ao avistar o cachorro preso por correias pelo tronco ao carrinho que ele construía, a mochila cheia na parte de trás e o garoto sentado dentro. Ela escondeu-se atrás da pilastra. Ele olhava compulsivamente um mapa desenhado, vestido com reforçada roupa de frio, capuz. Viu-o fazer um barulho com a boca, o cachorro andou e puxou o carrinho. Ela pôs a mão na boca animada com a idéia de divertir-se com aquele carrinho.

Assustou-se quando viu o carrinho pegar velocidade. Correu atrás, a bota afundando na neve. O menino não parecia querer simplesmente brincar. Ele estava indo embora. Seguido da constatação, veio o lamento. Ele estava deixando-a. Depois veio o medo. Ele cortava caminho pelo lago. Bella correu desesperadamente atrás. O lago não estava suficientemente congelado para aguentar peso. Uma tragédia poderia acontecer. Mal o carrinho subiu no gelo, parte do gelo quebrou. O menino saiu do carrinho a tempo de conseguir evitar cair na água, mas o cachorro ficou pendurado pelas cordas que prendiam o carro, com parte do carrinho afundando.

O menino tentou desamarrar as cordas, mas a beirada do gelo a cada minuto se desfazia, aumentando a ameaça. Bella aproximou-se frenética. Uma perna do menino escorregou na água gelada. Ele rodou o corpo e conseguiu sair. O cachorro agitava-se instintivamente para salvar-se, mas as patas traseiras escorregavam cada vez mais. Se caísse, o carrinho o levaria para o fundo gelado do lago. Não havia tempo.

Bella deitou de bruços no gelo e tentou puxar o carrinho para cima para ganhar tempo de o garoto desamarrar o carrinho, sempre tentando distribuir o peso do corpo para que mais partes do gelo não quebrassem. Sentiu o gelo rachar. Não podia falhar. Não podia cair. Dois minutos na água seria mortal. Odiava o frio. Odiava que ainda tivesse escuro. Lágrimas de medo desceram do seu rosto pálido, os movimentos débeis e lentos com a água congelada nos dedos. As forças nos pulsos cediam. O menino finalmente conseguiu desamarrar o cachorro. O carrinho afundou-se num surdo som, as duas mochilas flutuaram.

O cachorro correu para parte segura com instinto de sobrevivência. Bella suspirou e permaneceu deitada, trêmula e ofegante. O menino encolheu-se e abraçou os joelhos. Ela ouviu soluços, engatinhou no gelo e aproximou-se dele.

‒Não chore. Nós conseguimos salvá-lo. ‒consolou-o com a mão em seu ombro. Ele olhou-a cheio de lágrimas nos olhos, as bochechas vermelhas.

‒Buscar mat. ‒balbuciou em meio a lágrimas. Ela surpreendeu-se ao ouvi-lo falar. ‒ Edward ir para mat. ‒choramingou apontando para o buraco de água no gelo. ‒ Me avtomobil. ‒ destacou o carrinho. Ela notou que ele misturava as línguas.

‒O que é mat?

‒Mommy. ‒chorou desconsolado. ‒Ir para mama. Quero mat. ‒desabou a chorar, ficou em pé e caminhou obstinado sobre o lago congelado para o mesmo trajeto que seguia antes. O dia clareava no horizonte. Seus passos curtos e duros eram determinados. ‒Edward ir lá. ‒apontou onde o sol nascia, deixando para trás o cachorro, Bella, a fazenda. Ela que sempre era otimista e calma, raramente chorava, sentiu pesar e pena por ele. Ele queria ir para a mãe. Passou todos esses meses trabalhando num projeto que caiu no lago. O pesar por ele cresceu no peito. Apesar de sua mãe ser doente e estar acamada, Bella ainda tinha um lar. Ele não tinha nada. A emoção foi demais para aguentar.

‒Não vá. ‒ seguiu-o cautelosa por cima do lago congelado. ‒Está frio. Pode vir nevasca. ‒implorou. O lamento era por medo e desespero de perdê-lo. Ele era somente um menino. ‒ele parou e dedicou um olhar a ela. ‒ Não me deixe. Fique. Sua mat um dia virá te buscar. ‒prometeu num improviso. ‒Eu só tenho você para ser amiga. Minha mãe está mal. Ninguém está ficando comigo. Fique até sua mãe vir te buscar. ‒estendeu a mão chamando-o. ‒Deixe-me ser sua amiga. Cuidaremos um do outro.

Ele estudou-a. Viu a preocupação, a solidariedade, a promessa. Olhou indeciso para a mão dela estendida. O vento frio silvou em seus ouvidos. Iria enfrentar o medo, ir procurar a mãe ou encolher-se no calor, no aquecido quarto. Recuou incerto. Ela abriu os braços.

Ele observou os braços abertos num convite para segurança. Viu nela a vulnerabilidade que brilhava em seu próprio rosto. Deixou cair os ombros, deu dois passos até ela e rodeou-a com os braços em sua cintura, trêmulo e inseguro. Ele era pequeno, miúdo. Ela descansou o queixo em sua cabeça, esperançosa e cobriu seus ombros com os braços. O incidente desta madrugada, por mais trágico e ameaçador que tenha sido, serviu para uni-los.

Uma caminhonete aproximou-se. Desceram duas pessoas ansiosas e preocupadas. Um homem forte e louro, uma mulher ruiva e miúda. Os novos caseiros. Observaram, em muda contemplação, o buraco no gelo, as crianças abraçadas. A mulher aproximou-se e cercou-os de cuidados e atenção.

Continua...

Espero que apreciem minha nova fanfic. Grande beijo.

Bia Braz