N/A: Esta é a minha primeira fanfic com o casal Naraku x Kikyou, espero que gostem! No mais, convido vocês a ouvirem a música que serviu de inspiração para a escrita: "Damned and Divine" (Tarja Turunen). Boa leitura!


DARKNESS WITHIN

A chuva caía dolorosa por sobre seu rosto e ombros. O frio era cortante, e só a tristeza quase insuportável já não amortecia os duros açoites em seu corpo.

Vez ou outra, dominado por aquele fatídico sentimento, a infeliz criatura – nem homem, nem demônio – se recolhia em seu próprio asilo. Um plano efêmero para onde toda culpa e arrependimento se canalizavam. O único lugar onde a parcela humana de sua dissimulada existência se atreveria manifestar.

Ali – longe de qualquer ser humano, de qualquer youkai – aquele pobre resquício de vida, destinado a coexistir entre nenhum outro, aproveitava a violenta torrente para se purgar. Purgar-se dos crimes que o demônio não se lamentava.

O pilar de todas conturbadas divagações: a única pessoa que um dia lhe oferecera alguma compaixão. A mesma de quem ele havia usurpado toda luz, só para ver o rosto sempre tão plácido se transfigurar em ódio e rancor. Talvez só pelo fato de que nem em seus mais longínquos devaneios a pudesse ter. E, talvez também, só pelo fato de que outro a tivesse.

A sacerdotisa que caíra em seu golpe há cinquenta anos. A mesma que o alimentara e tão gentilmente havia tratado de seus irreparáveis ferimentos – as queimaduras e todo grave tipo de hematoma naquele inválido Onigumo.

Aquilo fora o que restara – do homem, e seus mórbidos anseios; nada além de um ínfimo fragmento naquele novo ser, nomeado, por ele mesmo: Naraku.

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"Nunca me senti tão viva" Ela disse.

E se foi. Como se nunca houvesse realmente estado ali; surreal, enigmática.

E, pela primeira vez em cinquenta anos, a humanidade – até então letárgica e esquecida em algum canto inabitável daquele enegrecido coração – despertou.

Era como um leve, porém inquietante, desconforto. Uma centelha indivisível, que se não contida, incendiá-lo-ia por completo.

Como se já não houvesse queimado o suficiente.

O que isto significa?, indagava a si mesmo, como se de algum lugar – talvez de sua contraparte recém reanimada – pudesse surgir qualquer resposta. Kikyou... não me odeia?

Arfou, sentindo as costas arderem em brasa. Aquele conhecido flagelo, achando reforços em sua atual vulnerabilidade.

Era como se o inferno insistisse em vir pessoalmente lhe buscar.

A cicatriz de formato aracnídeo voltava a corromper a pele branca. E mesmo arrancando toda vez, aquilo jazia enterrado tão fundo em si que parecia ter raízes.

Maldita Kikyou. Deveria estar morta, não ser mais que resto de ossos debaixo da terra.

Contraiu a mandíbula, atracando os dentes dentro da boca. O rosto se fechou, e embora fosse ódio o que o contornasse, em seu âmago não sobrava espaço para outro sentimento senão a angústia. Uma imensa nostalgia ainda perseguia os rastros daquela mulher. Sua antiga obsessão não cessara, nem tampouco havia amenizado; era como aquelas chamas, que abrandavam sem nunca se extinguir – consumi-lo-ia até a própria morte.

Seu olhar errou pelo chão – distante, perdido. E então os nós da face se afrouxaram, desataram-se em uma expressão indecifrável.

Diferente de Naraku, a joia que Onigumo mais ambicionou havia sido o coração de Kikyou.

Diferente..., Ecoou.

O quão contaminado ainda poderia estar de todo aquele infrutífero sentimentalismo?

Estivera, por todo aquele interminável espaço de tempo, que se arrastava muito esporadicamente desde o momento em que houvera posto seus olhos sobre a figura obsoleta de Kikyou, atônito. Pego em um inédito sortilégio, sentindo-se tolamente incapaz de desviá-los, para onde quer que fosse.

Era ela, pensava. A sacerdotisa de cinquenta anos atrás. Com sua aparência intacta, congelada no tempo. A mesma Kikyou que houvera sido tão cruelmente assassinada, pelos demônios. Mas que ele amara, com solene devoção. O bandido.

Se nem mesmo o tempo era capaz de tocá-la, em sua pureza, quem dirá ele?

...

No que estava pensando?! Que ideia ridícula.

Tudo em sua mente passara a ser confuso e sem sentido desde que ela voltara.

Suspirou. E em um estalo, um agudo tilintar de consciência, seu olhar recaiu sobre uma de suas mãos, que permanecera fechada até aquele momento. Fitou-a, inexpressivo, abrindo-a devagar. Ali jazia boa parte da Jóia de Quatro Almas – aquele precioso artefato, para o qual todo olhar cobiçoso tendia a se voltar. Inclusive o dele próprio.

E havia algo de errado nisso.

Porque Naraku realmente ansiava tê-la. Poucos fragmentos da joia o apartavam de seu objetivo. No entanto, em seu ser, haviam abismos quase tão profundos – como aquele em cuja imperscrutável escuridão havia mantido Onigumo – que ele não sabia se viriam a ser preenchidos algum dia. Mesmo com a joia.

Por cinco décadas, que para um youkai poderiam ser tão efêmeras quanto o transcorrer de um dia, sua própria existência não havia passado de um silente e imperceptível abismo, no qual muitos caíam sem se dar conta. Afinal, quem era Naraku?

Um mal crescente se arrastando feito sombra através do espaço-tempo.

Escravo da escuridão, nascido de um pobre diabo sem propósito. Um pobre diabo que, jamais tendo conhecido o amor, permitiu-se incendiar à primeira vista – com chamas de irrefreável perdição.

Apertou a joia novamente contra a palma da mão, cerrando os longos dedos em torno da mesma.

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"Saia" ordenou, simplesmente, tendo mirado por pouco mais que alguns segundos a imagem refletida no espelho. Eram os dois. A sacerdotisa e o outro hanyou, protagonizando aquela velha e repetitiva encenação. Um riso igualmente falso escapou de sua garganta, quase que estrangulado, sem o menor tom de emoção. Kanna obedeceu mais que prontamente.

A sós consigo mesmo, nenhum disfarce parecia necessário. A máscara se partiu em mil pedaços, dando o ar de sua transtornada compleição. A ira estava mais que evidente no brilho escarlate dos orbes, quando por um ímpeto escandaloso seu punho direito se enterrou no chão, fazendo verter sangue das juntas.

Dobrou-se enrijecido, deixando a cabeça pender, em um movimento que trouxe a franja espessa para os olhos. E com um som gutural, mais parecido com um rosnado, seus dentes perfeitamente brancos e alinhados se expuseram.

Ciúmes?

Deprimente. Muito deprimente, reforçou, em seu latente monólogo; amaldiçoando com todo seu demoníaco ser aquela supérflua massa de carne, palpitante em seu seio, transbordante de todas aquelas estrangeiras sensações. E por mais empenhado que estivesse, em cortá-las desde a raiz, nenhum esforço parecia o bastante.

O coração humano de Onigumo era, ainda que um infortúnio, a peça central na qual todas as outras se encaixavam, dando forma a Naraku. Expurgá-lo implicava em seu próprio fim. Mantê-lo, todavia, poderia incliná-lo à mesma fatalidade.

Fechou os olhos, rendendo-se ao negro absoluto sob as pálpebras – deixando-se cair dentro do próprio abismo.

Não pode evitar pensar em mim... Porque o coração de Onigumo ainda bate dentro de você.

Aquela voz... Doce como um sortilégio.

Soturna como a maldição. Sua maldição. Um amor tão eterno quanto o breu daquele precipício.

Nenhuma luz.

Nem mesmo o brilho puro da sacerdotisa, àquela altura, poderia resgatá-lo. Por muito pouco as trevas não o devoravam inteiro.

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No interior de uma densa mata – há uma distância razoável de qualquer trilha ou habitação humana – recostada às raízes retorcidas de uma grande árvore, a mulher esculpida em barro e ossos repousava.

Os youkais coletores de alma, brancos e esguios, serpenteavam no ar ao seu redor.

"Posso sentir o miasma há quilômetros daqui" Seus lábios se moviam pausadamente, quando decidiu, por fim, falar.

Aquele silêncio forçado já havia se estendido por muito tempo, desde que uma segunda figura se tornou presente, mal camuflada sob a penumbra das folhagens.

"Se é que você pretendia se esconder" Voltou a dizer, agora em um tom quase tão baixo quanto o de um sussurro.

Abriu os olhos, apenas para encontrar a tão bem conhecida pele de babuíno, sobre a pessoa que para ela nunca fora realmente um enigma, há alguns metros de si. Por detrás da pelagem albina, sabia que um olhar tão frio quanto o inverno sustentava o seu próprio.

"Estou curiosa" Provocou, apoiando-se em um ou outro de seus youkais para se levantar. "Está tão cheio de si que não precisou enviar mais uma de suas marionetes? Ou será que não aguentou e veio me ver pessoalmente? " Terminou, curvando os cantos da boca em um sorriso de deboche.

Naraku, até então calado, se atreveu a rir diante daquela exagerada insinuação.

"Você é sempre tão convencida, não é mesmo, Kikyou? " A barra da capa ia se arrastando pela grama, conforme espaçava os pés em sua direção. Poucos passos afastavam-no da sacerdotisa. "Agora, conte-me, qual é a sensação de ver outra garota, exatamente igual a você, nos braços de seu tão amado hanyou? ".

Foi a sua vez de sorrir, triunfante, vendo-a murchar com a menção de Kagome – sua suposta futura reencarnação.

Suspirou, de forma teatral, à medida que suas mãos se erguiam até o capuz, despindo a cabeça.

"Entendo que seja um assunto delicado" repuxou os lábios em um sorriso carregado de ironia, e atalhou: " Devo retribuição ao seu último favor. Foi de grande ajuda".

Viu-a apertar os olhos, cautelosa. E, sem resposta, continuou:

"Por que não me acompanha? " Estendeu-lhe a mão, em um convite, achando em seu silêncio uma brecha para divagações.

Contemplava-a, sem reservas, num desses lapsos fortuitos da razão.

Por um átimo, os olhos levemente puxados nos cantos, negros como o abismo, pareceram-lhe tão inabaláveis quanto há cinquenta anos. Eterna noite de céu sem lua, sem estrelas – quis sugá-lo para dentro de seu universo sombrio.

No peito, em resposta, o coração bateu mais forte.

Onigumo jamais teria resistido àquela aproximação. Naraku, no entanto, não movera um só músculo; sequer demonstrava estar tentado a fazê-lo. Sua expressão não se alterava, independente do rebuliço em seu âmago.

"Por que deveria? " Rebateu, com outra indagação, fazendo-o regressar de seus pensamentos.

Kikyou analisava-o, insistentemente, atrás de qualquer pista. Seria aquela alguma nova armação?

Finalmente despertado de seu transe, piscou, antes de se pronunciar.

"Ora, por que o receio? Não é você mesma quem, com tanta convicção, se diz intocável? " Pontuou, revelando mais um sorriso vazio, à medida em que recobrava a naturalidade. Sem, em nenhum momento, recolher a mão.

A copa das árvores se agitaram em um leve farfalhar, quando uma corrente morna de ar perpassou.

As longas madeixas do meio youkai, obedecendo ao sopro, ondularam contra sua face. E em uma tentativa malfadada de dobrar o braço para então retirá-las, teve o corpo inteiro mobilizado. Uma descarga elétrica atravessou-lhe, com o toque gélido em sua palma.

Assim que o próprio vento os abandonou, os fios de cabelo escuro voltaram a cascatear pelos ombros, desobstruindo seu campo de visão.

Mal pôde crer no que viu.

Firme, Kikyou sobrepunha uma mão à sua.