Uma socialista no Inferno
Como eu fui parar no inferno
Elizia:
Acordei
com uma lágrima no rosto:era minha mãe, que chorava.
Eu
ainda estava confusa, todos falavam ao mesmo tempo. De longe avistei
Raul, meu namorado, que permaneceu sério até o fim.
Recusava-se a chorar, mas estava em silêncio. Tão
socialista quanto eu, nos conhecêramos no partido.
Depois
me lembrei: eu estava morta. Aquele neonazista( ou será
cachorro capitalista?)me matara com um tiro. Raul estava junto, vira
a tudo. Qual de nós dois o
traste queria apagar? De uma
forma ou de outra, eu estava morta. Não contavam as
lágrimas,os pedidos, o partido, o truco. Nada mais.
Foi
quando senti uma mão no ombro. Virei-me. " Sou a
Morte",disse a figura encapuzada: "vim levá-la."
"Tudo bem" concordei." Só me deixe assistir ao
enterro."
Ela concordou.
Alguns de meus amigos estavam lá,
a família também.
Depois, a Morte me perguntou para
onde eu achava que iria."Inferno"-respondi.
Ela me
levou, pediu que ficasse numa fila enorme." Aqui, disse, você
espera para cair lá." E apontou o buraco do Mundo dos
Mortos."Vai ser julgada lá."
Antes de ela sair,
perguntei:"Se tivesse querido ir pro Céu, você me
levaria?"
"Sim, mas a maioria é julgada no Céu
e volta para cá.Se for inocente,eles a levam pro Céu."
Sorri.Ela me olhou: " Não está com medo?""Não,"
respondi."Não tenha" recomendou e saiu. Fiquei
olhando-a e pensei comigo, o que diabos vai acontecer agora?
Socialismo e inferno combinam?
Depois
de cair no buraco do mundo dos mortos e atravessar o Rio
Aqueronte,cheguei à Morada do Juízo:uma espécie
de tribunal onde são julgados os mortos.Uma figura pequena e
engraçada guiou-me até a sala principal,
recomendando-me silêncio. Eu nada disse: estava
cansada.
Coberto por uma toga negra,o juiz me olhou, aquelas
pupilas lilases,opacas,frias.
Era a última, estava
sozinha.Pela primeira vez, senti um leve temor.
- Quem é
você? -Como eu me calasse, repetiu:-Quem é você?Vamos,
responda!-falava de uma forma lenta e pausada, baixo.
Falei o meu
nome, tentando aparentar a mesma calma que ele.
-Isso,ele
disse,agora relate suas transgressões,uma a uma,sem
mentir.
-Mentir?- Eu estava cansada,irritada, e aquela
tranqüilidade fora a gota d'água.-Está-me chamando
de mentirosa?
Ele me olhou de novo:
-Quer
dizer, então,que nunca mentiu?Nem uma pequena mentira,nem uma
meia-verdade,nunca?
Eu tive vontade de rir.Ele tinha razão.Quantas
pequenas mentiras?Quantas meias-verdades?Quantas omissões?
-Já
-concordei.-Quantas vezes disse ao Raul que ia estudar e saí
com minha amiga?
Quantos produtos de multinacionais já
comprei?Quantos...
- Pare. Comprar produtos de multinacionais é
mentir?Não entendo.
- Ah. É que eu sou socialista.
A
figura pequena recuou um passo:
-Majestade!...
-Qual o
problema?-Perguntei.
-Achei que não matassem mais
socialistas hoje em dia.A maioria muda de idéia antes de
morrer.-Pausa.Silêncio.-Como você morreu?
-Meu partido
é bastante ativista.Diziam que queríamos explodir o
Planalto.-Desta vez,fui eu quem fiz a pausa.Depois, prossegui:- Ser
socialista é pecado?
-Não sei.-Disse com
sinceridade.-Não poderia esperar para resolvermos o seu caso
depois?
-Tudo bem. Tenho toda a eternidade.Só queria puxar
um ronco.Posso?
- Claro.Markino -era o pequeno -leve-a para
dentro.
-Mas...
-Agora!
Eu segui o Markino.
-Lune- disse
o juiz.
-Ahn?
-O meu nome. É Lune.
Sorri:
-Tem
nome de anjo.
E segui Markino.Ele ficou lá, paralisado,e eu
pensando com meus botões: como pude dizer aquilo?
O servo
me mostrou uma espécie de divã e, logo que deitei,
adormeci profundamente.
Como vou viver no inferno?
Acordei
devagar.Lune me observava com aquelas profundas pupilas lilases.
Lindo.Lembrei-me de Raul.Ele odiava que eu achasse outro homem
lindo.
-O que está olhando?
Sorri, meio encabulada.
-Já
decidiu o que vai fazer comigo?
Ele fechou os olhos.Sacudiu a
cabeça negativamente.Eu não soube o que dizer.Depois de
um longo silêncio, ele soprou:
-Sua Majestade
Hades.
-Hum?
-Ele decidiu o que fazer com você.
- O
Poderoso Chefão?-Ri, meio sem graça, da minha piada e
da cara dele.-O que vai acontecer?
-Você vai viver.
-Vou
voltar pra Terra?!
Ele sorriu da minha
ingenuidade.Não,linda,disse.
-Como,então?
-Você
viverá aqui no inferno, eternamente jovem,uma morta -viva,mas
livre para fazer o que bem entender.Desde que,claro,nisso não
se inclua dar um golpe de estado aqui.
-Morta -viva?
-Pelo que
entendi,apenas seu cérebro vai funcionar.O resto do corpo será
mero apêndice.
Eu
entendia menos ainda.Lune percebeu e explicou melhor:
-Os mortos
apenas sofrem.Você vai ser capaz,além de sofrer, de
sentir prazer,o vento, o que puder.Mas não vai respirar ou
comer. Do seu corpo vão funcionar os cinco sentidos,mas
só.
-Hummmmmmmmmm. Interessante. E onde vou ficar?
-Aqui,
no inferno.Vai poder andar pelo inferno todo.
Não respondi
de imediato.Os olhos ansiosos não desgrudavam de mim.
Depois
de um longo silêncio, perguntei:
-Mas por que isso?Sou mais
importante que os demais?
-É comunista.
-Socialista-
resmunguei entredentes.-E daí?
-O último que
trataram como os demais tentou dar um golpe aqui. Foi rapidamente
contido, mas parece que Zeus tira sarro de Sua Majestade até
hoje por isso.
-Foi para evitar,então...
-Sim...
-Mas
me conte: quem era?
-O comunista? Não sei.
Depois disso,
ficou um silêncio horrível entre nós.Lune,constrangido,
pediu licença e saiu. Fiquei observando-o se afastar:passos
firmes,porte esguio e atlético,elegante.Lindo.
Lune:
Voltei
ao trabalho.Markino me olhava com curiosidade.
-O que
foi?-perguntei irritado.
-O que disse àquela
comunista?
-Veja como fala comigo!E isso não é
da sua conta!
Ele se recolheu em si, amendrontado, mas
replicou:
-Sua Majestade Radamantis mandou perguntar...
Senti um frio percorrer a espinha.O que Sua Majestade podia querer
com aquela menina?
Peraí!Eu estava preocupado com
ela?!
Ouvi
uns passos firmes aproximarem-se do tribunal.A comunista ainda estava
lá dentro e eu preocupado.Mas não era Sua Majestade
Radamantis.Respirei aliviado.Majestade Minos entrava devagar.
-Lune?
-sim?
-Onde está a menina?
-Lá
dentro,mas...
-Não.Só não queria vê-la.
Não entendi de imediato.Ele me mandou descansar,eu já
trabalhara demais por aquele dia.Saí sem entender vírgula.
Elizia:
Passou
o tempo.Não vou ficar chateando vocês com miudezas, mas
o inferno era bom.
Lune cuidava de mim. Um pouco distante,mas ele
estava ali.Minos nem me olhava:odiava "comunistas".
Radamantis
era cínico e eu o detestava.Creio que era recíproco.
Mas
tinha o Eaque.Era assim que eu o chamava.Ele chegava a ser chato,de
tanto que me o eu odiava a roupa com que me
enterraram,ele me trouxe um vestido.Um minúsculo vestido,que
me apertava o corpo até demais e com uma sainha rodada
curtíssima.E essa roupa foi minha companheira um bom
tempo.
Entenda-se:como eu não suava,não precisava
trocar de roupa,elas não sujavam.
Lune:
Distante,eu?Confesso
que tive medo de me aproximar.Não estava acostumado com
garotas,e ela me assustava.
Sua Majestade Minos detestava,ou
melhor,odiava comunistas mesmo,dizia que eram o lixo da
sociedade.
Sua Majestade Radamantis a via como uma garota.E
mulher,pra ele...Não era sua praia.
E Sua Majestade
Eaque?Comunista ou não,era uma moça,e bem bonita.E
aquele vestido...Não sei não,acho que aí tem
coisa...
Eaque:
Não
sei qual o problema com o vestido que comprei pra ela.Ficou
lindo!
Não muito depois,chegou o inverno. Não sei se
vocês sabem, mas no inferno fica um frio insuportável. E
a pobrezinha com aquele vestidinho minúsculo.Consegui um
casaco grosso de pele,que a cobria toda.Ela continuou a tiritar de
frio.
Alguém me lembrou que nenhum casaco esquenta,eles só
conservam o calor de nosso corpo.E,como o coração dela
não batia,ela não produzia calor.
Acho que foi Lune
quem teve a idéia de despi-la...Do casaco, claro, e
abraçá-la,para passar-lhe calor.E foi o que ele fez.Ao
vê-la aconchegada em outros braços,fui eu quem senti
calor:a raiva subiu-me à cabeça e,quase a tapas,separei
os dois.
Abracei-a.Gelada.
Lune
a olhou de um jeito diferente.Não sou exatamente um
especialista,mas tinha algo a mais naquele olhar.
Foi rápido,ela
logo me afastou."Que calor insuportável!"
Estranhei,e
me disseram que frio ou calor é relativo,depende do seu
corpo.Se perde calor,sente frio.Se ganha calor,sente-se quente.E a
temperatura dela era pouco maior que a do ambiente.Por isso,ela
sentia frio e junto comigo não dava pra suportar o calor. O
jeito era esperar que ela atingisse a temperatura ambiente,o que não
demorou. Fomos tomar café.
Lune:
Enquanto
caminhávamos,os três,em direção ao salão
de refeições conjunto,enlacei uma mão dela entre
meus dedos.
Senti aquele frio subir pelo braço,junto ao
arrependimento:por que fizera aquilo?
Ao pensar em soltá-la,vi
seu olhar,não incomodado ou encabulado,mas um olhar
simples,como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Não
tive coragem de afastar minha mão,apenas afrouxei o abraço.Foi
ela quem apertou forte dessa vez,com aquela palma gelada,gelada como
o resto do corpo,pensei como ela podia agüentar uma temperatura
tão baixa,lembrando em seguida que a tinha abraçado,senti
um calor subir para o meu rosto,devia estar vermelho como um pimentão
maduro.
Ela sorria.Sua Majestade Eaque a nada vira,devia estar
perdido nos próprios pensamentos.
Ao chegarmos ao
refeitório ela me soltou,mas minha mão estava dura de
frio e o rosto vermelho,corado de vergonha.
Ninguém disse
nada,mas acho que Sua Majestade Radamantis percebeu.
Eaque:
Ela
tinha-me afastado e Lune estava apaixonado por ela.E vice-versa.Do
contrário,por que aceitaria o definitivamente "quente"
abraço dele?
Amaldiçoei a todos os deuses e a mim
mesmo,perdera todas as chances.
Resolvi "tirar o cavalinho da
chuva".Fingi que não vi os dois de mãos dadas ao
meu lado.Respirei fundo e me resignei:dali a pouco ela apareceria com
outro vestido,dado pelo Lune.
Elizia:
Esses
caras são engraçados.Cheguei a pensar que Eaque nutria
algo por mim,mas ele
nem ligou quando Lune tomou minha mão.Não
ligou ou não viu?
E o Lune?Por que pegou minha
mão,avermelhou,tentou se soltar e não o fez?E,já
que toquei nesse assunto,por que parece que ele teme o Radamantis?
Eaque:
O
"dia" passou normalmente e, na manhã seguinte,quando
ela acordou,eu estava ao seu lado.
-Bom dia!
-'Dia.
-Dormiu
bem?
-É,dormi.
Fomos juntos tomar o café e ela,a
primeira coisa que fez,foi cumprimentar o Lune,que não a olhou
nos olhos,apenas acenou a cabeça.Notei uma mancha roxa no
pescoço dele.A comunista também viu,acho,mas
disfarçou.
E dou-lhe um doce se o autor do chupão
não for alguém conhecida!
Se
tem alguém que conhece a rotina do Lune é ela,mas
duvido que diga alguma coisa.Apesar de tudo,fui jogar um verde pra
ela:
-Você viu?
-O quê?
-Ora,o roxo no
pescoço do Lune.
-Roxo?Que roxo?
-Um hematoma.
-Vi
não.
-Ora,por favor.Todo mundo viu.
-Não sou de
reparar.Mas por que veio falar sobre isso comigo?
-Achei que
soubesse.Afinal,você vive aqui.
-Não sei de nada.Não
vou ficar me metendo na vida do Lune.
-Ah,pára. Vai ficar
fazendo o que aqui o resto da eternidade se não falar dos
outros?
-Me poupe.Além do mais,o que você tem a ver
com o que o Lune faz ou deixa de fazer?
Não.Nada.Nada que
pudesse inocentá-la ou incriminá-la.
Depois
que saí,lembrei-me de que ela era a única mulher capaz
de fazer isso,ali no inferno,e que Lune não fora à
Terra naquela noite.
Foi ela,ou então...
Um dos servos
de Hades!Um de nós!Um homem!Tentei afastar esse pensamento,sem
sucesso.
Se bem que isso a deixaria livre,para mim.
Reunimo-nos,
Minos,Radamantis e eu,para discutir alguma coisa que não
lembro o que era,mas logo começamos a falar da
comunista.Radamantis provocou:
-Ela fica lá,no seu
tribunal,o dia todo-disse ao Minos,que fez uma cara feia.Para entrar
na onda,concluí:
-É,com o Lune.
Só faltou
o Radamantis me morder,de tanto ódio que demonstrou no
olhar.Minos não deve ter percebido,porque disse:
-O que
Lune faz ou deixa de fazer com ela não me interessa.
-Você
acha que aquele roxo foi obra dela?
-Claro.
-E
você,Radamantis?
-Não foi.-Disse com raiva.-O dia que
ela fizer isso,o Lune vai aparecer morto.
E saiu,pisando duro.
Fiquei pensando o que isso poderia significar.Radamantis estaria com ciúmes da comunista ou do Lune?
Lune:
Eu
já tinha terminado o trabalho quando a vi entrar no
tribunal.Rindo e cantando,como de costume.
-Lune!...-Ela me
chamou,séria.Era uma atriz.
-O que foi?-Só a
presença dela me deixava de bom humor.
-Você é
um viciado!
-Em trabalho!-E desatou a rir outra vez.
-Já
acabei.
-Mesmo?
-Claro.
-Então,tem um tempinho para
mim?
-Tenho.Pra
você,tenho todo o tempo do mundo-disse,arrependendo-me em
seguida.Desde quando tinha aquelas liberdades com a pequena?-O que
quer?
Ela franziu o cenho.Pensou,pensou e concluiu:
-Não
me lembro!
Ri.Mentira que não se lembrava:ela queria ter
tempo pra inventar uma bobagem qualquer pra puxar conversa ou uma
desculpa para ficar ali comigo.Eeeeeeeeeeei!o que eu estava
pensando?!
-Lune...-ela interrompeu minhas
ponderações.
-Diga-balbuciei,intrigado com aquele
tom de voz tão inesperado.Estava séria,doce,diferente.
-Por
que pegou a minha mão aquele dia?
Fiquei vermelho,branco,
todas as cores que você quiser o fora
inconseqüente!Agora,o que dizer?Ela não aceitaria um "não
sei".Mas a verdade era essa: não sabia.
Olha,eu
gosto muito de você...-Surpreendi-me com minhas
palavras.Não,não era isso que eu queria dizer.-Eu...Eu
te...
Ela me olhava com ternura.Perdi a fala.Se foi medo,não
sei.Vergonha,talvez.
Aproximou seu rosto do meu e beijou-me de
leve os lábios.Meu coração disparou.E eu
retribuí!
Quando nos soltamos,ela perguntou:
-Era isso
que queria me dizer?
Não,não era.Mas agora é!
E
beijei-a outra vez.Devo ter dado meu coração junto.
-Eu
te amo,Lune!-E me abraçou.
