Disclaimer: Este é um fan work, feito totalmente sem fins lucrativos. Os direitos de Saint Seiya, Saint Seiya Episódio G e de todos os seus personagens pertencem à Toei Animation e Masami Kurumada. A exploração comercial do presente texto por qualquer pessoa não autorizada pelos detentores dos direitos é considerada violação legal.


Informação para o leitor:
Yaoi (contém relacionamento amoroso entre homens).
Avaliação etária: M/NC-17 (situações adultas, violência, sangue)
Par citado: Saga X ?

Texto concluído em 5 de fevereiro de 2006


A CASA DOS ESPELHOS PARTIDOS
Por: Deneb Rhode

I

Alta madrugada, como sempre. A sombra é companheira que oculta os atos, aliada silenciosa. O vulto estranho, nada mais que um capuz e manto negro de fazenda rústica seguindo pela beira do mar. Caminhava a passos velozes pela praia, como se entendesse aonde ia mesmo sem entender o porque. Não havia porque.

Ele simplesmente precisava ir até lá, de novo.

Para isso arriscava nas noites, oculto na escuridão: tudo o que conseguira de modo tão penoso, tudo poderia ruir de uma vez só se fosse visto ali. Respirou fundo "As pessoas tem uma memória ruim", disse para si mesmo, tentando manter a coragem. Uma estupidez total: não havia nada para se ver, ele sabia disso. Mas continuava indo.

"Devo estar louco."

Chegou ao lugar, tudo igual. Ouriços e algas grudados nos rochedos, a maré alta quase encobrindo a grade de uma cela esculpida na rocha. Não tinha nada lá. Estremeceu, em confuso desalento. Em algum lugar de si guardava uma esperança de que ainda o encontrasse ali, resistindo à maré entre juras furiosas de vingança. Não tinha nada lá. E pensar que ele mesmo o trancara naquele lugar de danação, da morte lenta trazida aos poucos pelas ondas. Fizera o certo, não podia se culpar por ter agido como um homem honrado.

Pelas galáxias, não tinha nada lá! Nada! A execução foi levada a cabo, o mar algoz cumpriu seu papel, justiça foi feita em nome dos deuses. Deveria sentir-se aliviado, mas como? Olhou as próprias mãos, o brilho da lua cheia iluminou-lhe os dedos, o reflexo branco sobre a pele que raramente via a luz. Tão pálidas. Por que tinha a impressão de vê-las sempre manchadas de sangue?

Estava feito, não podia voltar atrás. Em nada. O vento pareceu gritar em seus ouvidos estranhas vozes misturando choros de criança, gritos de medo e fúria e preces de inocentes condenados. As coisas tinham ido longe demais? Não, tudo foi necessário! Ele era um homem bondoso, todo mundo sabia disso..

Era amado e venerado, cultuado como um messias, não estava fazendo nada de ruim. Não era ele que sempre se preocupava com os menos afortunados? Não deu quase todo seu soldo aos pobres, comprou-lhes pão e lentilha para que não passassem fome? Não deu um teto para quem não tinha onde morar e esperança para quem não tinha mais nada? Ele fez isso sim, sempre fez, ainda mais agora! Ainda de manhã tratou das feridas de uma mãe leprosa e ajudou seu filho aleijado a andar, deu alimento e remédios à família, lembrava bem! Então não estava errado! Nunca em tempo algum um Mestre do Santuário de Athena foi tão generoso com o povo humilde, e é dessa matéria que são feitos os santos.

E se sentia tão...culpado. Como se carregasse nos ombros toda a abóbada celeste, os olhos das testemunhas de seus atos sangrentos. Mas foi tudo necessário, tudo necessário!

"Mas, por que?"

Temeu pelos menores, justificou-se; se isso queria dizer ter que eliminar um mestre implacável como Shion houvera sido, ou um bebê dito sagrado, mas que seria marionete de outros, profanos e sórdidos, até ter idade para governar, então que fosse! Quanto tempo aquela gente ainda iria sofrer se tivesse que agüentar mais? Teria lentilha na mesa ou quem curasse suas chagas?

Foi tudo necessário.

"Mas, por que?"

A imagem que o perturbava, os olhos azuis tristonhos de Aioros, ele parecia não entender. Ele não entendia nada mesmo, não entendeu porque estava errado quando o Mestre o escolheu como sucessor, porque estava errado que tentasse interferir em seu plano, que era errado que a reencarnação de Athena continuasse viva. Não eram os grandes feitos, as batalhas e guerras, eram as coisas pequenas, as dores do povo que precisavam de socorro imediato. Isso não era Aioros, era ele-e só ele-que podia dar. "Não nos vale ganhar de exércitos se nossa gente não tem o que comer! Você não devia ter entrado nessa história nunca!"

"ENTÃO, POR QUE, SEU DESGRAÇADO? EU TINHA RAZÃO, NÃO TINHA?"

O vento uivou de novo, carregando palavras malditas. O mar arrebentou dentro da cela no rochedo, trouxe de volta uma pedra branca e lisa, um pedaço de osso talvez. Agarrou-o e caiu de joelhos, em prantos. Não agüentava mais a tortura das vozes. Gritou a plenos pulmões, tentando abafar o vento, por para fora toda a angústia.

—EU FIZ SIM, EU ESTAVA CERTO! EU TRANQUEI VOCÊ AÍ, VOCÊ ERA MALIGNO, FOI POR ISSO! EU NÃO PODIA...NÃO PODIA DEIXAR...ATHENA...

—Não podia deixar o que?

A inesperada resposta o fez gelar: temia que a dor o houvesse entregado. Trêmulo dentro do capuz virou-se lentamente para trás, viu na outra extremidade da enseada a lua iluminar claramente aquele rosto que conhecia tão bem, da vida e de pesadelos:

—Kanon?...Meu...irmão...?

O homem não disse palavra, apenas sorriu cinicamente, os olhos de um azul profundo faiscando em uma expressão misteriosa. Olhando Kanon, que trancara há anos atrás na cela da morte, sem conseguir saber se era fantasma, delírio ou realidade, se agitava por dentro como se houvesse levado um choque. Deixou a capa cair, revelou sob a lua sua figura tão igual a do irmão, os mesmos cabelos e olhos, o mesmo porte físico, o rosto quase idêntico, talvez um pouco mais consumido pelo tormento.

Kanon deu-lhe as costas. Se dirigiu com passos lentos ao rochedo no seu extremo da enseada, o irmão ainda tentou detê-lo, mas a voz não saiu. O homem que voltara dos mortos ainda deu um último olhar enigmático antes de entrar no mar revolto, sumindo entre as pedras.

—KANON!

De um susto destravou pernas e garganta. Esqueceu capa , osso e segredo, correu o quanto pôde até o outro extremo da angra sombria, buscou alguma pegada ou sinal que o levasse ao irmão. Por fim divisou-o em pé sobre uma rocha no meio das ondas furiosas, semi-encoberto pela espuma do mar.

—Kanon!...Volte! Sou eu, eu preciso...Eu preciso muito falar com você!

Subiu nas rochas enfrentando a arrebentação e o vento, tentou chegar até seu gêmeo, saltando como conseguia, de pedra em pedra. Era quase impossível manter os olhos abertos na borrasca repleta de sal. Com dificuldade agarrou-se nas bordas ásperas de cracas, lanhou as mãos não soube quantas vezes, tingindo a espuma de vermelho. Não ia desistir. Mais alguns saltos apenas e...

—Kanon! Irmão!

Uma onda mais forte quebrou-se sobre eles, fazendo-o perder o equilíbrio. Enquanto o oceano o devorava, ainda pode abrir os olhos ardidos e divisar a figura de Kanon em pé sobre a rocha, sorrindo mais uma vez para ele com os venenosos olhos lampejantes. Tentou nadar, tentou gritar, a água encheu seus brônquios, silenciando-o. Afundou de uma vez, puxado pelo mar tormentoso em direção ao fim.


continua...