iSe um dia fores embora/i
iTe amarei bem mais do que esta hora/i
iMe lembrarei de tudo que eu não disse/i
iE de quando havia tudo que existe/i
A procissão continuava, ela estava entediada, o teatrinho encenado por todos eles a indignava. Tanto esforço de uma pessoa para terminar assim? Estava revoltada com a situação, mas não podia fazer nada, de todos os modos como podia acabar, esse foi um dos melhores jeitos.
Espirrou.
Maldita chuva. Por que sempre chove em enterros memoráveis? O que o sol tem contra enterrar heróis? Por que tudo sempre tinha que parecer cada vez pior? Ela estava triste, óbvio, mas o ambiente em que estava a deixava um pouco mais rebelde. Sua tristeza não era muito clara, tudo misturado à indignação, vazio e desespero lhe dava um ar de estar alheia a tudo o que acontecia em volta. Mas não era bem isso, só não sabia se expressar.
Não vira o caixão aberto, só teve tempo de se vestir e acompanhar a multidão. Como ele odiaria isso, ele odiava muitas pessoas em torno dele, odiava ser um mito, um tabu. Ela agora odiava isso tanto quanto ele. Tantas coisas que ambos perderam, momentos, palavras, até mesmo discussões que fazem parte do dia-a-dia. Não tiveram rotina pra se queixar, não tiveram cansaço pra lamentar ou lua cheia pra desperdiçar. Não cometeram nenhum erro dos casados, só viveram a lua-de-mel dos amantes apaixonados. Sua vida incompleta, uma vida paradisíaca, a fazia sentir uma mentira, uma fantasia.
iQuando choramos abraçados/i
iE caminhamos lado a lado/i
Quando vamos embora? –perguntou ela para Rony.
O irmão a olhou espantado, ele também não a entendia. Novidade.
As pessoas querem lhe desejar os pêsames, Gina.
E eu quero dormir, podiam tentar me desejar os pêsames através dos sonhos.
A aparência arrogante que transparecia dela fazia com que muitos desistissem de cumprimentá-la, mas isso não era o suficiente, ainda havia muitos. Toda aquela gente desocupada, deviam ir pra casa cuidar de suas próprias vidas e deixar ela tentar viver a dela.
Sinto muito pela senhora -disse um homem vestido de preto e com uma tristeza parecida como se tivesse perdido um irmão.
Eu também sinto muito pelo senhor, respondeu ela.
iPor favor amor acredite/i
iNão há palavras para explicar o que eu sinto/i
iMesmo que tenhamos planejado/i
iUm caminho diferente/i
iTenho mais do que eu preciso/i
iEstar contigo é o bastante/i
Se pensasse bastante por um lado tinha sorte. Apesar de tudo ela sobrevivera, e apesar de tudo ela acordara a tempo. E se acordasse alguns dias depois e tudo o que tivesse fosse uma lápide fria para olhar e tentar conversar? Pelo menos ela podia descarregar toda sua raiva e desespero em toda essa pobre gente, que estava ali tentando confortá-la.
Nunca tivera muita sorte, mas agora tinha quase nenhuma. Sobreviver foi seu pior azar, não que agora toda sua vida fosse ser dedicada às lágrimas, e que nunca fosse se apaixonar de novo, mas seus sonhos cor de rosa nunca aconteceriam, ela seria mais uma pessoa comum enfrentado as barreiras da vida. Não teve uma vida poética e não teria uma morte poética, o mais poético que a vida lhe deu foi continuar uma vida medíocre às custas das pessoas que amava.
Precisava dormir.
"Harry, por que tinha que ser assim? Viver com um raio na testa não foi muito bom pra você, e agora não é bom pra mim. Pena que um dia te conheci. Pena que um dia te amei".
Tinha essa lembrança para guardar, era o suficiente para lhe amenizar parte da dor, talvez pudesse apagar a lembrança de todos os momentos e substituí-las simplesmente pelo sentimento de perda, e guardar a tristeza bem no fundo do coração, para que nunca tivesse que viver com a sombra de ter sido a mulher de Harry Potter, não viver na escuridão de ser a viúva do homem-que-não-sobreviveu.
iCertas coisas de todo dia/i
iNos trazem a alegria/i
iCaminhamos juntos lado a lado por amor/i
Aquilo era uma despedida, mas ela não queria dizer adeus. Queria dizer "olá, tudo bem? A gente se encontra por aí...". Era mais fácil pensar que estavam se separando porque não deu certo, queria ter a ilusão que dia desses o encontraria na rua, que veria seu rosto e que talvez pudesse xingá-lo assim que ele virasse as costas. Prefira odiá-lo a sentir falta dele. Não gostava de solidão, mas odiava inexistência. Quem é só é só porque quer, mas ela não tinha querer.
Ao sair do cemitério ela não olhou para trás, não deixou uma rosa branca no chão, não derramou uma lágrima, não pensou nele e esqueceu dos problemas. Precisava dormir.
iE quando eu for embora/i
iNão, não chore por mim/i
