PICTURES OF YOU

katniss' pov

Tudo é vazio e solidão nessa manhã.

Os Jogos. O bombardeio do Distrito 12. A revolução. Peeta, Annie e Johanna na Capital, sendo torturados. As mortes de Cinna, Finnick e Prim. Minha mãe indo embora. A reconstrução. Pensar nisso me deixa destruída por dentro. Durante os quatro meses que se passaram desde que eu voltei para o Distrito 12, estive perdida dentro de mim mesma, das minhas lembranças, do meu sofrimento. Contar os dias é uma tortura; cada um deles demora milênios para passar. Os meses se fundem, e eu não sei mais sequer se é outono ou inverno ou primavera. Eu me sinto terrivelmente mal ao pensar que, mesmo com todas as tragédias da minha vida, eu ainda estou aqui, viva, o coração batendo e o sangue fluindo em minhas veias. Aos meus olhos, parece um tipo de brincadeira bizarra do destino me deixar viva quando praticamente todas as pessoas que importam no mundo já não estão mais aqui.

Levanto da cama com o coração mais pesado do que o habitual. Todas as manhãs, como num ritual bizarro, eu me obrigo a levantar e me arrastar até a sala, onde deito no sofá e passo horas encarando a lareira apagada ou a casa de Peeta pela janela. Desde que ele voltou ao Distrito, eu o vi apenas algumas vezes, e em nenhuma delas eu ou ele tivemos coragem ou forças para trocar mais do que meia dúzia de palavras. Dói pensar no garoto do pão, e eu evito ao máximo lembrar de qualquer coisa a respeito dele. Mas há dias em que eu simplesmente não consigo evitar deixar meus pensamentos vagarem e encontrarem o cheiro dele, o sorriso dele, o jeito como o sol refletia em seus cílios claros, o calor dos braços dele em volta do meu corpo nas nossas noites no trem... Nesses dias, eu sempre tenha meus piores pesadelos. E nunca há ninguém para me fazer acordar.

Eu estou terminando de escovar os dentes quando ouço um barulho na cozinha. Buttercup, provavelmente. Sempre que ele está com fome ou se sentindo sozinho, pula em cima da pia e acaba derrubando alguma coisa. Cuspo a pasta de dente na pia, enxáguo a escova e, ainda de pijama, desço as escadas, pronta para dar uma bronca no gato mais desastrado do universo. Mas, quando eu chego no andar de baixo, meu coração pára. Não é o gato de Prim que fez o barulho. É Peeta.

Ele está parado no meio da minha sala, parecendo um pouco envergonhado por ter sido encontrado ali. O sol da manhã que entra pelas janelas reflete em seus cabelos dourados, fazendo-os parecerem mais claros do que realmente são. Numa das mãos, ele traz uma cesta coberta por um guardanapo vermelho, e na outra, um pacote de presente muito bem embrulhado em papel verde-escuro. Eu o encaro, sem saber o que dizer. Faz semanas que não nos vemos. Peeta dá um sorriso tímido.

"Desculpe pelo barulho, eu acabei pisando no rabo do gato sem querer e ele derrubou o vaso da mesa... Eu só queria trazer o café da manhã.", ele diz, me oferecendo a cesta. Pego-a, levanto o guardanapo que a cobria, e o cheiro de canela invadindo minhas narinas.

"Rolinhos de canela... Você gosta?", Peeta pergunta, com um olhar inocente em seus olhos infinitamente azuis. Não consigo evitar o sorriso que se forma no canto dos meus lábios quando respondo "Sim, eu adoro. Obrigada, Peeta.".

Sinto os olhos dele me seguindo quando eu cruzo a sala e entro na cozinha. Coloco uma toalha na mesa, xícaras, e encho a chaleira de água para o chá. "Fique comigo para o café, eu odeio comer sozinha", eu falo, e ele se senta numa das cadeiras. Termino de preparar o chá e ofereço uma xícara para ele, que aceita, silencioso e ainda com os olhos pregados em mim. Mordisco um rolinho de canela e o encaro. Ele tem uma ruga de concentração na testa, enquanto seus olhos percorrem as linhas do meu rosto. Sem conseguir me conter, disparo a pergunta que está nos meus lábios desde o momento em que o vi na minha casa:

"Você voltou para o Distrito há dois meses, e, desde então, nunca veio me visitar. Você mal fala comigo. Você não responde as minhas ligações, e nunca vai visitar Haymitch quando sabe que eu estou lá. Por que você está aqui hoje, Peeta?"

O garoto do pão me encara por alguns segundos, parecendo surpreso. Então, como se estivesse explicando algo a uma criança, responde "Porque hoje é seu aniversário. Você não devia ficar sozinha no seu aniversário, Katniss.".

Eu ergo as sobrancelhas, surpresa. É meu aniversário? Talvez seja. Eu não faço ideia de que dia é hoje. Continuo comendo os rolinhos de canela que ele havia trazido, sem dizer uma palavra.

O resto da refeição é silenciosa. Peeta fica o tempo todo me olhando como se nunca tivesse me visto antes; eu noto que ele passa muito tempo olhando para as minhas mãos, para o meu pescoço, para a trança que desce pela lateral do meu ombro. Eu estou terminando o meu chá quando ele parece voltar à realidade. Diz baixinho "Eu trouxe um presente" e levanta da sua cadeira. Ele volta trazendo o pacote que estava segurando quando chegou na minha casa e o colocou na mesa, de frente para mim. Com cuidado, eu desfaço o embrulho.

É o quadro mais bonito de todos os quadros dele que eu já vi. Uma praia de ondas calmas e areias claras. Um céu estrelado, e uma lua cheia iluminando a cena toda. E, no centro, uma garota de cabelos escuros presos em uma trança e um garoto de cabelos claros. Eles estavam sentados na areia, os braços se tocando, os lábios unidos num beijo que, mesmo numa pintura, significava muito mais do que um beijo. Era carinho, amizade, desejo. Era amor.

Sinto meus olhos se enchendo de lágrimas ao lembrar daquela cena, e mordo meu lábio inferior para evitar que elas rolem pelas minhas bochechas. Eu quero agradecer, dizer que é o presente mais lindo que eu já ganhei na minha vida, mas minha voz some quando eu tento falar. Em lugar disso, eu apenas estico a minha mão e seguro a mão de Peeta, que está em pé ao meu lado.

"A praia do Quell. Johanna, Beetee e Finnick estavam dormindo. Nós estávamos de vigia. Essa foi a primeira vez em que eu senti que você estava me beijando por você, não pelas câmeras ou pelos outros. Verdadeiro ou falso?"

Eu levanto meus olhos para olhar aqueles olhos que eu tanto amo, dos quais eu tanto sinto falta. Peeta me encara com o rosto sério, como se estivesse se esforçando para fazer as coisas tomarem sentido dentro de sua cabeça confusa. Ainda segurando a mão dele, eu respondo, num fio de voz "Verdadeiro".

O garoto do pão sorri e eu sorrio de volta. É o meu primeiro sorriso genuíno em dias, meses, milênios. Meu coração, de repente, parece estar muito mais leve do que estivera nos meses que se antecederam. E de repente, eu sei.

Por mais que estejamos destruídos, por mais que nosso mundo esteja fora do lugar, por mais que tudo esteja errado, nós ainda temos um ao outro. E sempre teremos.

Nós vamos sobreviver.

"I've been looking so long at these pictures of you

that I almost believe that they're real

I've been living so long with my pictures of you

that I almost believe that the pictures

are all I can feel."

(Pictures of You - The Cure)