Conto de Fada
Se alguém espera encontrar nessas minhas palavras um conto sobre amor, valores éticos e honra, está plenamente equivocado.
Admito que, até certa idade, acreditei que um homem era feito de honra e valores, que todos os seus atos, sem exceção, seriam usados pelos demais para construir uma imagem sólida de sua pessoa.
Estava errado. Digo isso sem nenhum rancor ou arrependimento. Essa tola crença me ajudou a ser como sou, fazer o que eu faço sem medo ou pena.
Não serei cínico de alegar que éramos uma família feliz. Minha mãe casou-se muito jovem com um nobre a quem não amava. A idade entre meu pai e minha mãe quase a torna, por poucos anos de diferença, uma possível filha dele.
Muito me surpreende que ela tenha vivido o suficiente para gerar três filhos. Alguns alegam que não somos filhos do mesmo pai, porém, Treize, meu pai não poupou esforços para mostrar, com o sangue dos que foram pegos alegando isso, que esse boato não lhe agradava.
Quando completei quinze anos, meu pai matou a esposa, tenho quase certeza que o motivo disso atende pelo nome de Chang WuFei.
Treize estava cansado da esposa, era o que Trowa, meu irmão mais velho, falava constantemente, e eu não poderia discordar dele uma vez que não era tolo o bastante para não notar isso. No entanto meu irmão caçula, Duo, acreditava que esse tratamento frio e distante era comum entre casais, e acredito que em casamentos entre nobres esse comportamento seja normal.
Embora a nossa diferença de idade seja, vergonhosamente, menor que um ano, Duo costumava ser bastante infantil.
E foi para mim que ele correu, através das sombras noturnas de nosso castelo, para chorar a morte de nossa mãe. E eu o recebi em meu quarto e o deixei chorar a morte, que ele pensava ser natural, dessa jovem mulher.
A verdade era que ele jamais notou o que as frias frases de nosso irmão mais velho queriam dizer. E ele também não viu o corpo, frio e sem vida, onde violentas marcas deixavam claro o estrangulamento.
Não fazia diferença, pensar nela não a traria de volta. Eu não a desejava viva, não suportaria vê-la caminhar aos prantos pelo seu quarto. A amava e odiava, por ser a mulher que me gerou e amamentou, por ela tinha um grande carinho, porém podia ver dentro de seus olhos claros o nojo que ela sentia por nós, por sermos fruto de seu casamento com o lorde Treize.
Acredito que sou um péssimo irmão. Embora a pouca diferença de idade permita-nos uma certa intimidade, nunca fomos realmente próximos. Ou talvez eu nunca tenha me aproximado dele. Enquanto ele vivia a doce ilusão infantil gerada por minha mãe, eu já era um homem no corpo de uma criança. Rejeitado por minha própria figura materna, por carregar em minha aparência e mentalidade fortes traços peculiares ao meu pai, e ignorado por meu irmão mais velho, me tornei uma pessoa intolerante e intolerável.
Porém nada disso foi grande ou relevante o bastante para que Duo rejeitasse os meus lábios contra os seus, e coube a minha pessoa arrancar dele o ultimo traço de inocência, juntamente com suas roupas, e torná-lo meu amante.
Deveria me condenar por trazer meu querido irmão para o mundo cruel, destruindo toda a sua noção de que a vida era um conto de fadas? Não me sentia fora de meu direito e quase podia ouvir a voz irritada de minha mãe dizendo que eu estava sujando meu irmão e desrespeitando as leis de Deus. No entanto, a única coisa que minha mente conseguia decodificar naquele momento era os altos sussurros entrecortados pelos gemidos que saíam dos lábios rosados de meu irmão mais novo.
Senti seu corpo suado e exausto desabar inconsciente sobre mim e só então, longe de seus tristes olhos violetas, pude pensar que eu poderia tê-lo usado.
O medo que essa dúvida me gerava era incalculável. E por um momento tive a certeza que colocara meu desejo acima do desejo de meu, agora não mais, inocente irmão.
Levantei-me lentamente, temendo acordá-lo, e vesti rapidamente minha roupa. Pouco tempo depois eu caminhava pelos frios corredores de pedra. Apenas uma única pessoa poderia me ajudar e eu, definitivamente, não me sentia confortável frente a ele.
Bati em sua porta com força o suficiente para acordá-lo, embora soubesse que estava acordado, e esperei que viesse me abrir à porta.
A pesada porta de madeira escura deslocou-se para trás dando espaço a um rosto moreno com expressão neutra. Vi seus olhos verdes me fitarem com interesse enquanto sua voz quebrava o silêncio da noite.
O que faz aqui, Heero?
Estou com um problema, preciso conversar.
...Trowa...
Ouvi uma voz sussurrar o nome de meu irmão e soube que ele daria a conversa por encerrada.
Já é tarde, Heero, conversamos amanhã.
Antes que ele fechasse a porta me jogando nas sombras da noite e de minhas dúvidas, eu disse a única coisa que o faria parar.
É sobre o Duo.
Seu rosto ficou sério ele fechou a porta do quarto nós deixando sozinhos no corredor, senti sua mão agarrar o meu braço e me guiar até uma sala que sabíamos que estava vazia.
Vi quando ele fechou a porta do cômodo nós dando a privacidade que desejávamos para conversar sobre o caçula.
O que houve com o meu irmão?
Seu corpo parou frente ao meu, cobrindo-me com sua sombra, sua voz me soava preocupada. De alguma forma Trowa encontrou em Duo algo que não encontrou em mim, ele também foi desprezado por nossa mãe e isso o tornou extremamente parecido com nosso pai, pois dele recebeu muita atenção, e através de nosso irmão mais novo ele recebeu, ele sentiu, o tão desejado amor materno. Duo tinha a pureza e alegria que nós não tínhamos.
Responda, Heero.
Mordi meu lábio inferior.
Eu dormi com ele.
Você o que?
Pensei que sua voz estava cheia de raiva, no entanto era apenas a surpresa.
Eu dormi com o Duo. Não pude resistir. Ele estava tão perdido, chorando em meus braços.
Por um momento estive perdido em minhas próprias lembranças, porém senti meu corpo ser puxado e minhas divagações foram interrompidas pela boca dele.
Senti sua língua invadir minha boca de uma forma violenta e decidida, não pude evitar corresponder o beijo.
Deixei minhas mãos correm por seu corpo enquanto sentia suas mão tocarem o meu, em um contato completamente diferente ao que tivera com meu irmão mais novo, porém não o estranhava. Conhecia cada caricia que Trowa podia me dar e sabia, quase que inconscientemente, como agradá-lo.
De repente seu corpo afastou-se do meu e ele deixou-me sozinho com suas palavras.
Lembre-se dos velhos tempos, irmãozinho. Acho que é seu dever cuidar do Duo, assim como era o meu dever cuidar de você.
Compreendi com perfeição o que meu irmão me falara e o vi sair,despreocupado, do local onde estávamos.
Memórias da época que meu irmão acabara de mencionar invadiram a minha mente.
A vida, certamente, é cheia de ironias. Provavelmente o fato de ter dormido com meu irmão mais novo seria um bom motivo para ser morto por meu pai ou condenado por minha mãe, se ela ainda estivesse viva, certamente a igreja também o faria. No entanto, chegava a ser cômico, pensar que apenas fizera o mesmo que Trowa fizera comigo.
Creio que não fui amante dele por muito tempo, jamais parei para pensar por quanto tempo estivemos juntos e isso não é uma coisa relevante. Ele buscou em mim algo que não encontrou, no entanto nunca me escondeu isso.
Sei que ele finalmente encontrou o que buscava na inocente presença de Duo e no corpo de um lindo camponês, Quatre se não me engano.
Caminhei para o meu próprio quarto, havia algo muito melhor lá do que ficar divagando sobre as noites em que não dormir por estar com Trowa.
Entrei silenciosamente em meu quarto e vi o pálido corpo despido de meu irmão estirado de barriga para baixo, como um gato ao sol num dia de inverno, em minha cama.
Debrucei-me sobre seu corpo e encostei meus lábios em seu ombro direito, assustei-me quando senti sua mão quente segurar a minha. Afastei-me apenas o suficiente para que pudesse fitá-lo.
Escutei sua voz infantil e sonolenta sussurrar para mim.
Não me deixe. Não suportaria estar sozinho, irmão.
Estou aqui, Duo.
Deitei-me ao lado do garoto e abracei-o.
Por que ela tinha que morrer, Heero?
Deixei meus olhos azuis escuros vagaram pelas paredes escuras de pedra e pararem na janela da alta torre por onde podia ver o céu azul estrelado, não desejava encarar o rapaz sonolento e saudoso da figura materna, a quem costumava ser tão apegado.
Ela foi embora, para nunca mais voltar, Duo. Ela está, agora, feliz, ao lado de Deus.
Senti pesadas lágrimas tocarem o meu braço, porém nada pude fazer além de deixar o embalo de seu próprio pranto levá-lo para um sono pesado.
Os dias passaram rapidamente desde a morte de minha mãe. Tentei a todo custo ensinar meu irmão como ser o homem que orgulharia a falecida.
Tentei negar a todo custo à minha consciência que não estava fazendo isso pela minha progenitora, mas sim por meu irmão. Sabia que, de certa forma, as duas alternativas não correspondiam à realidade.
Estava ensinando-o como ser um homem do qual eu teria orgulho. Não me orgulhava de ser nobre, de ser filho de uma linda mulher que foi obrigada a casar com um lorde que odiava, não me envaidava o fato que tive um caso com meus dois irmãos, muito menos meu pai ter estrangulado minha mãe para que ela parasse de intrometer-se em seu relacionamento com um camponês que tinha a idade de seu filho mais novo.
Ensinei-lhe todos aqueles valores e crenças nos quais eu já não acreditava, ensinei-lhe a lutar, como se portar frente a várias situações, falei-lhe sobre Deus e sobre o Diabo, sobre o pecado, os santos, o casamento, o amor.
Duo devorava cada ensinamento como um homem faminto devora uma refeição. Creio que jamais lhe haviam falado sobre as coisas que eu estava lhe mostrando.
Durante o dia ele era meu aluno e me deixava exausto com sua fome de saber, à noite ele era o meu amante e eu o deixava exausto com minha fome de seu amor.
Imagino que de todas as lições que lhe dei, a única que Duo não aprendeu, ou não quis aprender, foi que o nosso relacionamento não era aceitável, que ia contra as leis dos homens e contra as leis de Deus. E me culpo por não insistir nessa lição, por não fazê-lo me rejeitar.
Talvez ele tenha pensado que viveríamos esse amor para sempre, que todas as noites seriam as nossas noites, que em meus braços ele poderia se esconder da realidade, e, definitivamente, essa ultima afirmação era verdadeira. Meus braços sempre estariam abertos para ele, e apenas para ele, se esconder de seus medos quase infantis e se entregar ao seu sono e a mim.
Sei que o sofrimento que eu lhe trouxe foi inigualável a perda da figura materna.
- Eu vou me casar, Duo.
Nada que poderia ter me feito sofrer mais do que a sua expressão de dor. Sei que ele se sentia traído e eu não podia fazer nada em relação a isso.
- O nome dela é Relena, ela é a prima mais nova de nossa mãe.
- Quando ela chega?
Sua voz era triste e distante e eu realmente desejei mandar meu pai para o inferno. Não desejava casar-me com essa garota, porém o meu desejo de nada valia. E me vi obrigado a responder essa tola pergunta e encarar as conseqüências.
- Amanhã.
Vi o olhar entristecido de meu irmão, a derrota espelhada naqueles orbes violetas. Senti seus braços envolverem o meu corpo e então ele se afastou, correndo para longe de mim, como se sua vida dependesse disso.
Durante a noite ele não foi ao meu quarto, tão pouco o encontrei no seu. Passei a minha ultima noite de paz, sozinho, a primeira noite que passava sem a adorável presença de meu irmão mais novo.
No dia seguinte vi, através da minha janela, uma carruagem atravessar os portões do castelo. Corri pelos corredores até o portão, então me deparei com Duo.
Ele estava armado e dois gigantescos cães de caça o acompanhavam. Meu irmão me sorriu tristemente e eu compreendi tudo antes mesmo que ele me explicasse.
- Pedi ao meu pai autorização para caçar os lobos que estão atacando o vilarejo. Desculpe-me, Heero, porém não estarei, hoje, em seu casamento.
Continua...
Nota da autora--
Bem... eu amei esse texto desde o momento em que surgiu a idéia, me parecia uma situação tão diferente e incrível.
A idéia era degradar o máximo possível a imagem familiar para "justificar" o caráter dos personagens, eu achei que ficou bom, não tão bom quanto eu queria, porém eu gostei.
Eu gostaria de agradecer a Ju (Sakuia) que me aturou durante todos esses longos 6 anos de amizade, a Lila que me ajudou a entender esse site e não reclamou de minha lerdeza, a BelaYoukai , a Athena Sagara, a Hinas, a Serennity Le Fay que leram e comentaram meu outro fic.
Era isso! Espero que vocês tenham gostado e que comentem.
Beijos, Isis.
