UMA ESTRANHA MISSÃO

Carlos Abraham Duarte

PRÓLOGO

O Senhor fumava um cigarro e ouvia atentamente cada palavra que "John", com o dossiê na mão, tinha a dizer. Não fez nenhuma tentativa no sentido de interromper o subalterno, porém seus olhos refulgiam friamente que nem duas opalas negras à luz das lâmpadas fluorescentes.

- Ela se chama Kaguyahime Kurayama – Santo Deus, que nome incrível! – e não parece ter mais que dezessete ou dezoito anos, pelos padrões humanos, é lógico... Se bem que ninguém conheça a sua verdadeira idade. Sua pele é negra, mas ela é uma japonesa. Tem mãos com unhas compridas feito garras, orelhas pontiagudas de elfo e olhos verdes de pupilas elípticas e variáveis, como convém a uma bakeneko, uma metamorfa da tribo dos youkais-gatos. Seus poderes inatos abrangem a telepatia, a hipnossugestão, a levitação, a projeção astral, além de uma vidência de curto alcance que lhe dá reflexos rapidíssimos. Pode fazer crescer garras afiadas de até dez centímetros de comprimento, cortantes como espadas, ou torná-las venenosas. Pode camuflar-se criando névoas ou sumindo nas sombras. Também é capaz de mudar a frequência vibratória de seu próprio corpo e transitar entre as dimensões, tal como muitos metamorfos. Suas armas usuais são shurikens, um par de katares e um chakram, confeccionados em "bronze espiritual" ou Tian-Yu, cuja fabricação é um segredo exclusivo dos "Dragões de Metal", uma ordem antiquíssima de magos arcanos do Oriente. Sua verdadeira forma de youkai é a de uma pantera negra gigante – seis metros de comprimento por dois de largura e dois de altura - , mas também pode se metamorfosear num gatinho preto inofensivo, para despistar. Kaguyahime-sama é uma mercenária ninja que se faz passar por humana e viaja disfarçada de repórter freelancer. É mestra na arte da espionagem e disfarce. Conta com uma clientela muito variada: Yakuza, Tríade Chinesa, Mafiya, Mossad, CIA e NSA; há rumores de que chegou a trabalhar para a Al-Qaeda! – Ele deu uma risada seca. – Como se o Bin Laden...

Sob o olhar impassível do Senhor, "John" voltou a se concentrar no dossiê em suas mãos. – Além das armas mágicas que mencionei, Kaguyahime-sama emprega outras duas técnicas sobrenaturais para matar, que ela aprendeu com os rakshasas, demônios-tigres de Lanka, na Índia. Uma é o "Olhar da Morte", com que dispara seu jyaki para DENTRO do corpo de sua vítima, ao encará-la fixamente olhos nos olhos, tirando-lhe a vida; a outra é o "Rugido do Tigre", capaz de despedaçar completamente qualquer matéria organicamente viva. Uma matadora de respeito, Senhor.

O Senhor esmagou a ponta fumegante de seu cigarro no cinzeiro sobre o tampo de mármore azul-ferrete da mesa.

- Isso é tudo? - ele indagou com a voz macia, a um só tempo grossa e aveludada, que jamais subia nem baixava de tom. – Ou há mais?

- Bem... Pessoalmente, ela odeia humanos mais que tudo. Profissionalmente, trabalha para quem pagar mais, sem fazer acepção de raça ou espécie, cor de pele, credo, opção sexual, orientação política ou nacionalidade. Ah, acima de tudo, nunca, em hipótese alguma, se deve chamá-la de neko-chan, "gatinha". É quase morte certa.

O Senhor acariciou pensativamente o pequeno amuleto de jade verde-escuro de desenho estranho e grotesco – espécie de monstro quimérico, misto de dragão, leão e morcego, com as faces horrendas escancaradas numa expressão de ferocidade bestial - , primorosamente entalhado à moda do antigo culto demonista Bon-Po do Tibete, que pendia da corrente de jade verde-claro em seu pescoço.

- Contrate-a.

Em sua casa em Chiba City, nos arredores de Tóquio, onde vivia sozinha com dúzias de gatos, Kaguyahime Kurayama vestia-se com um tsukesage, um bonito quimono de seda verde caindo para o marrom-dourado, estampado de folhas de outono de cinco pontas em tom vermelho-escuro, fechado com um obi de brocado dourado amarrado num grande laço nas costas. Os cabelos preto-azulados, lisos e longos, enfeitados com flores tsukimisou cor de salmão, caíam que nem um manto de escuridão até a altura dos quadris. Seu rosto ebâneo, quase negro, marcado pelos imensos olhos verde-amarelados de pupilas verticais e pelas orelhas pontudas, não espelhava o menor sintoma de remorso. Fora fácil liquidar o candidato do Partido Liberal-Democrático ao governo de Tóquio, por encomenda do poderoso Kenichi Shinoda, oyabun da Yamaguchi-gumi, voando em seguida para o lado oculto da Lua – para o Tsukiokoku, a "Terra dos Oito Milhões de Sonhos", o mundo onírico entre o plano material e o espiritual, lar de seus feéricos "primos", os nyan, fadas de formas felinas. No dia seguinte Hiroshi Tendo, o candidato a governador da megalópole de Tóquio que não passava de pau-mandado da Sumiyoshi-kai, fora encontrado morto numa suíte de hotel em Akasaka, aparentando ter experimentado um terror indescritível. Antes de morrer, Tendo-san rabiscara na parede do quarto, junto à ampla janela de vidro, com traços toscos e trêmulos, a palavra "MONONOKE" em kunyomi.

A bela youkai abriu seu notebook e começou a digitar com rapidez a matéria sobre a morte "inexplicável" do famoso político – do homem que ela própria assassinara por meios sobrenaturais. Depois de digitar seu texto, sob o pseudônimo de Yuri Anno, enviando-o por e-mail à redação do grande jornal Asahi Shinbun, Kaguyahime verificou as mensagens recebidas em suas múltiplas contas fantasmas, de várias partes do Japão e do mundo. Ela recebia um bom número de e-mails cifrados por dia, de interessados em contratar seus serviços de matadora, e respondia apenas a quem oferecia o melhor pagamento.

"Como os humanos são otários", pensou, torcendo os lábios num meio-sorriso, ao escanear com os olhos a procissão de mensagens desfilando na tela colorida do notebook. "Eles se esquecem de que mercenários e assassinos de aluguel podem ser pagos pelo outro lado para fazer serviço oposto".

O olhar da metamorfa se deteve sobre certo e-mail, lacônico, que lhe chamara a atenção. Ela o marcou, respondeu e em seguida o deletou. Desligou o notebook e fechou-o.

Levantou-se. Seus pensamentos gravitavam em torno daquela proposta, a mais instigante desde que a CIA a infiltrara na Al-Qaeda. Suas missões quase sempre tinham por cenário os grandes centros urbanos, os polos de poder do mundo moderno: Tóquio, Seul, Hong Kong, Moscou, Paris, Londres, Nova Iorque, Los Angeles, San Francisco, Toronto, Vancouver... e até mesmo Ciudad México, Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro. Quase sempre os grandes centros onde se concentrava o poder no mundo dos humanos. Exceto quando, recentemente, fora contratada por Kurohara-sama, da Liga das Sombras, para matar Rowena Shirabara, Grã-Sacerdotisa do País da Neve – mas deixara de fazê-lo, por intervenção do cientista ocultista Cyrus Abrahams, um homem vindo de outro Universo e o único ser humano que soubera granjear a sua confiança e o seu afeto. Agora, porém...

- Eu sabia que cedo ou tarde este dia chegaria, Sayoko – disse ela para a linda gata de raça sagrado da Birmânia, de pelo sedoso azul-acinzentado e grandes olhos ligeiramente oblíquos, de um azul intenso e brilhante, que se achava languidamente deitada numa almofada em sua cadeira favorita. – Sabia desde a missão abortada no País da Neve. – Falava em tom pausado, porém a comunicação entre ambas – a gata normal e a youkai-gato – era essencialmente telepática. Sayoko respondeu com um miado doce.

A voz de Kaguyahime endureceu. – Eu devo matar o Diretor da Academia Youkai.