Laws of Motion (Leis do Movimento)


Capítulo Um: Mulher Morta Andando


Mulder entrou no apartamento de Scully carregando a pequena mala dela; a que não pede muitos artigos de higiene e itens pessoais quando se vai ao hospital para morrer. Mas Scully e suas coisas receberam uma trégua no último minuto, e, ao invés de estar a sete palmos, ela estava três metros à frente dele, admirando sua mobília.

Ele parou perto da porta enquanto ela alisava seu sofá listrado de azul e branco, pegando um romance quase terminado e segurando-o contra o peito. Mulder se sentiu um intruso. "Talvez eu devesse ir embora" ele disse, "Talvez você queira desfazer a mala".

As palavras soaram ridículas quando ele as disse. Quanto tempo demoraria para guardar uma escova de dentes, algumas roupas íntimas e os óculos? Ele pôs a mala no chão.

Scully se virou, ainda segurando o livro, e sorriu para ele. Ele não tinha certeza do que fazer com essa mulher sorridente que ela tinha se tornado na última semana. Ele estava contente por ela estar feliz, mas quando ela deu aquele sorriso em sua direção, aquilo o deixou nervoso. Ainda havia tanta coisa que ele não contara a ela.

"Não, fique", ela disse, seu sorriso se transformando num bocejo. "Além disso, prometo fazer um almoço para você."

Mulder, tendo comido dois donuts antes de pegá-la no hospital, não estava com muita fome, mas Scully já estava indo para a cozinha. Ele foi até a prateleira de livros e levantou a proteção de vidro do relógio. Ele tinha parado em algum momento do passado, às 05:05, mas se teria sido de manhã ou à tarde, ou há dez dias atrás, Mulder não sabia dizer. O melhor que ele podia fazer era ajustá-lo para funcionar novamente.

Na cozinha, ele ouvia Scully abrindo e fechando portas de armários. Ele admirava seu trabalho com o relógio, os ponteiros começando sua dança suave uma vez mais, quando Scully saiu da cozinha, parecendo desgostosa. "Parece que não tenho comida nenhuma", ela admitiu.

Mulder exalou, alívio palpável. "Então eu vou comprar comida e você pode descansar," ele disse, já indo para a porta.

"Mulder, espere. Você não tem que me comprar comida, não depois de tudo..."

"Você deveria estar na cama, Scully, não num corredor de comida congelada"

Ele arqueou os ombros, incapaz de se virar e olhar para ela. Scully, ele queria dizer, acorda. Eu dancei com o diabo e você tem um microchip no pescoço. Quando isto acontece, o troco será uma droga.

"Mulder, olhe para mim."

Mulder se forçou a encará-la. Os olhos dela ainda mantinham aquele olhar marejado de gratidão, um olhar que ele sabia que não merecia. A face dela estava pálida, sua clavícula visível sobre a gola do suéter fino. Ele pensou sobre como este poderia facilmente ser o dia do enterro dela ao invés de sua volta para casa e, de repente, seus olhos se encheram de água.

"Eu estou bem. Você precisa se acostumar com a idéia, ok? Eu percebi que nosso azar acumulado faria uma pequena arma recuar, mas os testes não mentem. Não há tumor e nem sinal do câncer. Eu tenho minha vida de volta e com certeza planejo vivê-la."

"Isso é ótimo, Scully, de verdade."

Ela cruzou os braços. "Poupe-me do entusiasmo forçado."

Deus, ele não tinha força emocional para essa conversa agora. Agora não. Talvez nunca. "É que é tão cedo," ele disse.

"Quanto tempo para termos certeza, então? Duas semanas? Um mês? Um ano?"

Isso era tão Scully. Ponha um flukeworm na frente dela e ela negaria a existência mesmo que ele a mordesse no traseiro. Ponha um chip no pescoço dela e ela ainda teria certeza das regras: tudo estava bem agora! Mulder não podia culpá-la por não querer olhar mais a fundo nesse pedaço de evidência em particular, mas ele temia que, neste caso, o presente seria um cavalo de Tróia. Ele não acreditava que o Canceroso curara Scully por bondade de seu pequeno e cinzento coração.

"Ninguém quer acreditar nisso mais do que eu", ele disse a Scully suavemente.

A postura dela suavizou e ela balançou a cabeça "Tem sido uma longa semana para nós dois."

"Então deixe-me ir até a loja. De verdade, não é nada de mais. Você não deveria gastar o seu primeiro dia de liberdade numa fila, de qualquer maneira."

Scully cedeu, então ele escapou pelo corredor, onde podia respirar novamente, praticamente saltando pelas escadas e para fora do prédio dela. Outono caía sobre D.C., dando cores fortes às árvores e ao céu um azul quase doloroso. Folhas se curvavam em finas esculturas abstratas antes de caírem no chão. A mãe Natureza era bonita em sua morte lenta.

Mulder andou pelos corredores do supermercado, seu apetite voltando à visão de maçãs vermelhas, abóboras redondas e galinha congelada para churrasco. Ele pegou os itens essenciais e alguns -– Scully precisava de papel higiênico? Ele parou com um pacote nas mãos por uns trinta segundos antes de jogá-lo no carrinho. E outro itens de higiene pessoal, e Scully estaria por conta própria.

O apartamento estava silencioso quando ele voltou. Ele pôs as sacolas na cozinha e andou na ponta do pé pelo corredor até o quarto, onde ele abriu a porta para dar uma espiada. Scully jazia imóvel sob as cobertas, cortinas fechadas contra o sol. Ele não podia ver seu rosto ou ouvir sua respiração.

Mulder hesitou um momento, o lábio preso entre os dentes, mas enfim ele saiu e deixou-a dormir. Uma hora ele teria que confiar nisso: Scully estava viva.

Ele voltou para a cozinha e começou a brincar de esconde-esconde nos armários. Onde ficava a manteiga de amendoim? O açúcar? Ele estava decidindo o lugar correto para o pão quando o telefone tocou.

Mulder correu para alcançar o telefone junto à parede antes que acordasse Scully. "Alô", ele disse, um pouco sem fôlego.

Houve um momento de silêncio no outro lado da linha.

"Alô?" Mulder tentou de novo.

"Eu – Eu estou tentando localizar Dana Scully", disse um homem aflito do outro lado da linha "Esse era o número dela." Mulder não conseguia identificar a voz.

"Ainda é o número dela", Mulder respondeu, "mas ela não está disponível no momento. Quer deixar algum recado?"

"Eu preciso falar com a Dana. Por favor, é muito importante."

"Eu temo que isso não seja possível agora."

"É o Mulder?" Disse a voz. "Você é o Mulder, não é?"

"É o Mulder." Ele ainda tentava descobrir de onde conhecia a voz "Quem está falando?"

"É o Ethan. Ethan Minette. Lembra-se? Eu realmente preciso falar com a Dana. Pode encontrá-la para mim?"

"Mulder?" Scully apareceu atrás dele, piscando sonolenta. "Quem é no telefone?"

Ele entregou o telefone para ela, mesmo sabendo que se arrependeria disto. "É o Ethan."

A surpresa no rosto de Scully mostrou a ele que ela estava tão chocada por encontrar o ex-noivo ao telefone quanto ele estava. Ela pegou o receptor e entrou na cozinha. "Ethan?"

Mulder ficou por perto, escutando abertamente.

"Você o que?" Scully disse. Ela agarrou a cadeira da cozinha e afundou-se nela. "Espere, vá devagar. Quando isto aconteceu?"

Mulder pegou a cadeira oposta a ela, assim ele poderia ver seu rosto. Ela parecia em choque.

"Sim, claro que eu posso ir," ela estava dizendo. "Onde você está?" Uma pausa. "Eu sei onde é. Ok, estou saindo agora. Certo? Estarei aí assim que puder, e, enquanto isso, não diga uma palavra a ninguém. Ninguém, você me ouviu?"

Ela desligou o telefone e sentou com ele no colo por um momento. "Era o Ethan," ela disse.

"Eu percebi."

"Ele foi preso." Ela levantou os olhos para ele. "Por homicídio."

"O que?"

"Eu preciso ir até lá falar com ele." A cadeira bateu alto no chão quando ela se levantou.

Mulder a seguiu pelo corredor. "Scully, espere um minuto. Você saiu do hospital há apenas algumas horas." Ele entrou no quarto logo atrás dela somente para se virar bruscamente quando ela começou a tirar o suéter. Mulder encarou a parede, mas não parou de argumentar. "O médico disse que você deveria ir devagar."

"Tenho certeza que o Dr. Harris entende que isto é uma exceção."

"O que aconteceu?"

"Eu não tenho os detalhes. Eles o estão mantendo na 16-6."

Mulder ouviu o zíper da calça se fechando e virou-se para encontrá-la vestida em roupas de trabalho. Ela tirou o cabelo do colarinho e colocou um coldre sobre um ombro. Ele não podia olhar para ela sem vê-la afundada e debilitada numa cama de hospital. Uma brisa leve ainda poderia derrubá-la.

"Quem é a vítima?" Mulder perguntou, e Scully congelou.

"Ele não disse," ela respondeu, não olhando para ele. "Olhe, eu sei que não é o ideal, mas ele pediu minha ajuda e eu não posso deixar de ir."

"Ele sabe que você esteve doente?"

Scully tremeu dentro do casaco. "Não. Nós não... eu não falo com ele há muito tempo."

Conformado, Mulder tirou as chaves do bolso. "Eu dirijo," ele disse.


Detetive Franklin, um homem negro alto num elegante terno e sapatos lustrados, mascava um palito no canto da boca e os informou com um olhar cético. "Este não é território do FBI," ele disse. "Só um homicídio puro e simples."

"Ethan Minette pediu para me ver," disse Scully.

"Sim, essa é a parte que eu me confundiu, sabe. A maioria das pessoas pede um advogado."

"Ele não tem um advogado?" perguntou Scully, espantada.

"Um telefonema e você é a advogada. Você pode compreender minha confusão sobre isso."

"Estou tão no escuro quanto você," Scully replicou. "Posso vê-lo agora?"

"Claro. Diga-lhe que uma confissão faria a coisa toda menos dolorosa para nós dois, sim?".

Mulder e Scully o seguiram para os fundos, mas ele parou Mulder com a mão no seu peito. "Ele a chamou, não você."

"Somos parceiros," Mulder explicou.

"Bem, você pode ser o parceiro que espera no saguão ao lado da máquina de refrigerantes."

"Eu vou ficar bem, Mulder, obrigada."

Franklin a levou para os fundos e por um corredor para uma sala de interrogatório que estava guardada por um oficial uniformizado. O coração de Scully acelerou quando ela pensou no que poderia encontrar do outro lado. A última conversa de verdade que ela teve com Ethan, ela devolvera o anel de compromisso dele.

"Lembre-se do que eu disse sobre a confissão," Franklin disse quando abriu a porta.

"Tomarei isso como um conselho."

Ela entrou na sala de tijolos brancos e encontrou Ethan parecendo suado e pálido na mesa. Na mente dela, ele sempre foi o mesmo da última vez que ela o viu – infantil e inocente, com o olhar magoado enquanto ela se esforçava para dizer-lhe que não o amava mais. Este Ethan estava mais velho, ainda bonito, mas com menos cabelo e com uma barriga saliente.

"Dana," ele disse, se levantando. "Obrigado por vir."

Scully estava olhando para a camiseta branca dele, que estava pontilhada de respingos de sangue secos. Ele olhou para si mesmo e de volta para ela. "Não é o que parece."

"Isso é bom, porque parece realmente ruim, Ethan." Ela se sentou. "O que aconteceu?"

"Que reencontro, hein? Eu sinto muito por trazê-la para isso tudo, mas eu não sabia para quem mais ligar." O lábio inferior dele tremeu e ele engoliu fundo. "Melinda está morta."

"Melinda, a sua câmera?" perguntou Scully, e ele assentiu.

"Oh, Ethan."

"Eu fui acordado de manhã por policiais batendo na minha porta. Aparentemente, alguém deu uma dica dizendo que houve uma perturbação no meu apartamento. Eu nem notei o sangue, no começo. Eu só fui até a porta, e lá estava ela, deitada de bruços no chão da minha sala de estar. Eu não a matei, Dana. Eu juro que não."

"Ela estava no seu apartamento quando você foi dormir?" Scully perguntou, com cuidado.

"Eu não sei," ele respondeu, uma sombra abatendo sobre suas feições enquanto ele balançava a cabeça. "Eu estava bem bêbado ontem à noite. Melinda me levou para casa. Eu lembro de ter caído na minha cama, mas não me lembro de ela ter ido embora. Alguém a esfaqueou, D. Talvez ela estava na sala ao lado, morrendo, enquanto eu estava desmaiado. Talvez ela gritou por socorro e eu nem ao menos ouvi."

"Por que você bebeu?" Nos anos que ela o conhecia, Ethan nunca havia bebido o suficiente para apagar. Uma vez ele tomara champagne demais na festa de Ano Novo e contou algumas piadas nojentas em companhia de várias pessoas. Era isso. Ele não era de beber muito, ponto final. Duas cervejas e ele geralmente parava por aí.

Scully examinou seus olhos vermelhos, cabelo sujo, e mãos trêmulas, enquanto tentava achar o homem que ela amara. Ethan deu um suspiro trêmulo.

"Melinda estava indo embora e nós fizemos uma reunião no bar para ela. Uma festa."

"Indo embora?"

"Ela arrumou um emprego em Seattle. Ela queria sair." Apesar do medo e fadiga óbvios, as palavras ainda continham um pouco de raiva.

"Sair do serviço de câmera ou de você?" Scully perguntou.

"Ambos. Nenhum." Ele correu uma mão pelo cabelo e recostou na cadeira. "Foi a história do Ryerson, principalmente. Ela cansou."

"Ryerson," Scully repetiu, tentando localizar o nome. "O congressista Ryerson? O com a esposa morta?"

"Amante morta." Ele estreitou os olhos. "Tem estado em todos os lugares sem parar nos últimos dois meses, Dana. Onde você esteve?"

Scully pensou nas noites longas que ela passou tremendo sob os lençóis com o banheiro a uma distância cruel. Sem TV, sem rádio. A luz cintilante e o barulho só pioravam sua náusea. Com a morte tendo se tornado tão clara, Scully não tinha prestado atenção a indiscrições insignificantes de políticos. Os jornais e sites de Internet corriam atrás de lençóis sujos e desarrumados, enquanto mulheres eram abduzidas de suas casas, e seus corpos virados do avesso e então devolvidos para uma lenta e dolorosa sentença de morte, na frente de suas famílias e amigos que nada podiam fazer.

Scully fechou os olhos com força ante a súbita onda de raiva.

"Dana?"

Ela os abriu novamente. "Eu estive fora," ela disse. "Mas agora estou de volta. O que tem a história do Ryerson?"

"Ele matou Rachel Campenella, a assistente com a qual ele estava dormindo. Todo mundo sabia. Ninguém pode provar. Não acredito que você não conhece o caso. Deus." Ele olhou para a parede por cima da cabeça dela. "Acho que tem sido minha vida há tanto tempo, que agora esqueço que são apenas notícias para as outras pessoas."

Uma batida forte na porta fez Scully pular, e Detetive Franklin entrou acompanhado de outro homem. "Sargento Millard aqui vai precisar de sua camisa," Franklin disse, apontando para a camiseta de Ethan. "Arrumamos outra para você por enquanto."

Ethan olhou em defesa para Scully. "Eu preciso mesmo? Eles não precisam de um mandado?"

"Temo que terá que entregar-lhes a camisa, Ethan."

"È evidência o que está usando," Franklin disse a ele. "Nós podemos apreender qualquer coisa que esteja à vista, e nada está mais à vista do que o sangue de uma mulher em todo o seu pijama."

Franklin rodou o palito para o outro lado da boca enquanto Ethan tirava a camisa suja e vestia a que a polícia trouxera.

"Você contou a ela sobre a arma do crime?" Franklin perguntou.

Cansado, Ethan balançou a cabeça. "Faca de cozinha," ele murmurou para Scully.

"Da cozinha *dele*." Franklin entregou a camisa ensacada para o sargento e disse, "É melhor seu garoto aqui começar a falar, se espera alguma ajuda nossa."

Quando eles saíram, Ethan chutou sua cadeira. "Eu não acredito nisso! Eu nunca machucaria Melinda, nunca! Ao invés de procurarem por quem realmente fez isso, eles me mantêm trancado aqui como um animal. Você tem que me ajudar, Dana. Por favor. Você é boa nisso. Você sempre me contava sobre sua taxa de resolução e como você e Mulder encontravam coisas que os policiais deixavam passar. Bem, eles, com certeza absoluta, estão deixando passar alguma coisa aqui, porque eu não fiz isso."

Ele estava tremendo, ao final do discurso. Scully deliberadamente se fez ficar mais calma, mantendo o tom ameno e as palavras cuidadosas. "Você precisa de um advogado, Ethan. Eles vão te processar."

"Eu sei disso. Eu sei. Mas um advogado não vai descobrir quem matou Melinda."

"Você sabe quem a matou?"

Ele piscou. "Eu – eu fico pensando, e não dá em nada. Quero dizer, para fazer isso a ela, alguém deveria odiá-la, certo? Você não... você simplesmente não esfaqueia alguém desse jeito. É preciso muita raiva. Ninguém odiava Melinda. Você a conhecia. Todos gostavam dela."

Scully sorriu, triste. "Sim, todos gostavam dela."

"Então, você vai me ajudar? Você vai me ajudar a descobrir quem fez isso a ela?" Ele agarrou as mãos dela e segurou firme.

"Ethan, eu quero te ajudar, mas não tenho nenhuma autorização neste caso."

"Isso nunca pareceu impedi-los antes." Ele tentou dar-lhe um sorriso torto.

Scully se soltou do aperto dele. "Verei o que posso fazer."

"Obrigado. Muito obrigado."

"Não posso prometer nada."

"Eu sei disso. Só de você estar disposta a tentar, significa tudo para mim." Ele deu um suspiro pesado e pôs as mãos nos quadris. "Então, como você está? Bem?"

Scully tocou no braço dele. "Bem," ela replicou, e ele assentiu. "Eu vou até o necrotério ver o que consigo descobrir, ok? Acho que conheço bem o legista. Você fica aqui." Ela inclinou a cabeça para tentar encontrar o olhar abatido dele. "E arrume um advogado."

"Vou arrumar. Obrigado de novo, Dana. É, hum, muito bom ver você novamente."

Scully gostaria de poder dizer o mesmo.

Ela tocou as bochechas com as duas mãos enquanto caminhava pela delegacia para encontrar Mulder. Como requisitado, ele estava perto da máquina de refrigerantes, com uma soda na mão e os restos de um pacote de Cheetos no colo. "Hey," ele disse, quando a viu. "Como foi?"

"Nada bom," ela respondeu. "Vamos sair daqui, ok?"

Ele a seguiu em silêncio até o carro. Já dentro, ela encostou as costas no banco e fechou os olhos. Mulder pôs as chaves na ignição, mas não ligou o carro.

"Você está bem?"

"Sim. Não." Ela suspirou e sentou-se reta. "É o Ethan lá, sabe? Eu mal posso acreditar nisso ainda. Eu nunca imaginei vê-lo assim."

Mulder mastigou o polegar por um momento. "Como você imaginava vê-lo?"

"Humm? Eu não imaginei, não mesmo. Eu só..."

"O que?"

Ela se mexeu para olhar para ele. "Você pensa que tudo e todos do seu passado permanecem bem onde você os deixou, como se você pudesse dar a volta e refazer os passos, e encontrá-los da mesma maneira que os deixou."

"Não sei se estou entendendo."

"O Ethan que eu conheci nunca teria uma mulher morta em seu apartamento," ela disse, pensativa. "Acho que o que descobri é que... aquele Ethan não existe mais."

"E você quer saber se ele já existiu?"

Scully enquadrou os ombros e pegou o cinto de segurança. "Temos que ir até o necrotério."

"Espere um minuto." Ele tocou no braço dela, parando-a. "Você acha que talvez Ethan tenha feito isso?"

"Não, acho que ele não fez. Ele diz que nunca machucaria Melinda, e eu acredito nele."

"Melinda? A câmera dele?" Mulder recostou-se, surpresa aparente. "Eu tive um encontro com ela."

"É mesmo, você teve." Scully olhou para ele de cima a baixo. "Eu tinha esquecido disso."

"Foi um encontro muito bom." Ele pareceu repentinamente tímido e começou a tirar farelos de Cheetos da camisa. Mas a curiosidade de Scully estava irritada.

"Então, por que foi um encontro somente?"

"Oh, eu não sei. Foi há muito tempo atrás."

Sim, Scully lembrou, logo antes da abdução e do retorno dela – tempo perdido em mais de um sentido. Ela e Mulder raramente falavam sobre isso, como se mencionando, isso trouxesse à tona velhos fantasmas como que chamando o Diabo pelo seu nome.

"Ela era legal," Mulder terminou, sem convicção.

"É, legal." Scully não havia conhecido Melinda muito bem também – só para dizer oi. Muitas vezes, ouvira sobre ela pelas histórias que Ethan contava dos muitos encontros de Melinda.

Mulder e Scully tiveram um momento de silêncio no Taurus pela perda de uma mulher que ambos mal conheciam.

"Como ela morreu?" Mulder perguntou finalmente.

"Esfaqueada, aparentemente, com uma das facas da cozinha do Ethan."

Mulder estremeceu. "Ai."

"Ele disse que devia estar dormindo quando aconteceu."

A expressão de Mulder dizia o que ele achava dessa possibilidade. Do jeito que estavam as coisas, Scully tinha que concordar. Melinda era uma mulher jovem e saudável. A menos que o atacante a tivesse pegado enquanto ela dormia ou, de algum modo inconsciente, ela deve ter lutado muito. E, segundo Ethan, Melinda estava sóbria, apenas deixando-o no seu apartamento antes de voltar para o dela.

"O que diabos deve ter acontecido?" Mulder perguntou.

"É isso que temos que ir ao necrotério descobrir."


"Deixe que eu falo," Scully pediu enquanto eles cruzavam o estacionamento, no sol franco da tarde. Mulder olhou para ela por trás dos óculos escuros dele, e se sentiu só um pouco culpado por estar seguindo-a para um necrotério. Eles estavam de volta à ativa, remexendo em cadáveres que não eram realmente deles, e, por um momento, quase pareceu uma vida normal novamente.

Ela usava os saltos altos, o passo rápido e confiante, como sempre, e ele tentava não notar o modo como as calças dela estavam largas na cintura fina demais. Só uma visita rápida ao legista, Mulder pensou, e ele poderia tê-la de volta na cama, no pôr-do-sol. Além disso, a mãe dela provavelmente estava ligando para o apartamento de Scully a cada dez minutos, em pânico.

Mulder andou pelo longo corredor com as mãos enterradas nos bolsos. O necrotério nunca havia sido seu lugar favorito. Ele não era enjoado, mas ultimamente, ele estava achando difícil olhar para corpos como pedaços objetivos de evidência.

Ele alcançou Scully no escritório do legista quando ela cumprimentava Henry Kwan com um aperto de mão caloroso. "Agente Scully, é bom vê-la," Kwan estava dizendo enquanto Mulder punha a cabeça na quina. "Agente Mulder, seja bem vindo também."

Mulder assentiu e lhe deu um aceno distraído. Ele podia entender o gosto de Kwan por biologia misteriosa. Kwan tinha uma coleção de esquisitices em jarros na sua estante que rivalizavam as de Mulder.

"Da última vez que soube, você estava no hospital muito doente," Kwan disse para Scully, enquanto Mulder admirava uma mão de sete dedos. "Você deve estar melhor agora."

"Muito melhor, obrigada."

"Bom, bom. Não quero vê-la aparecendo aqui como uma cliente."

Mulder olhou adiante, com desconfiança, mas Scully sorriu. "Isso nós dois queremos," ela assegurou a Kwan.

"Então, eu presumo que essa não é uma visita social?" O médico perguntou, enquanto ajustava os óculos de aros redondos.

"O caso McKenn," Scully disse. "Presumo que ela esteja aqui?"

"Ela está lá esperando sob as luzes por mim, agora mesmo. Detetive Franklin liga a cada cinco minutos, como se eu não tivesse mais quatro casos em aberto hoje. Mas este é um simples homicídio, não é? Qual o interesse do FBI neste caso?"

"Extra-oficial," Scully disse, prontamente.

Os olhos de Kwan dobraram num sorriso. "Ah, entendo. Está no QT. Debaixo do pano. Atrás da moita."

"Alguma coisa assim," Scully concordou. "Acha que podemos dar uma olhada nela?"

"Claro. Vamos todos entrar e dar uma olhada agora mesmo."

Mulder seguiu os dois patologistas enquanto eles entravam na sala de autópsias. Scully e Kwan colocaram luvas e máscaras; Mulder não planejava chegar tão perto.

Ele parou cerca de três metros de onde Melinda jazia, nua e limpa. Ele nunca poderia lembrar seu rosto antes disso, mas, agora que a vira, ele quis saber como faria para esquecer. Melinda era bonita, com cabelos escuros, cheios, lábios carnudos e uma pele com tonalidade clara. Uma mancha preta fazia sombra na pele pálida sob os olhos dela.

"Alguém realmente queria ferir essa garota", Kwan observou.

"Eu contei dezessete feridas," Scully disse, enquanto levantava um braço para Mulder. "Vê?" ela chamou por ele. "Ela lutou mesmo com ele."

"A rigidezveio e se foi," Kwan disse. "Ela está morta há algum tempo." Ele apontou para baixo. "Há lacerações nos ombros. Provavelmente pelas costas também."

"Mulder," Scully disse, levantando os olhos. Ela o levou para perto do corpo.

"O que é?"

"Olhe para isso. O sangue se instalou nas costas dela, isso significa que ela ficou virada para cima por algum tempo depois de morta."

"E daí?"

"E daí que Ethan disse que os policiais a encontraram de bruços na sala de estar dele. Ao que parece, alguém deve tê-la virado."


Eles ficaram tempo suficiente no necrotério até que o anoitecer caiu como um cobertor sobre a cidade, quando eles saíram. Scully apertou mais o paletó do terninho enquanto eles voltavam para o carro, seus olhos ainda escuros e ilegíveis.

"No que está pensando?" ele perguntou a ela.

"Que alguém está tentando incriminar Ethan por assassinato."

"Acha que o policial Franklin vai ouvir?"

"Kwan fará o melhor para que ele entenda. A evidência não mente." Ela encostou no banco e olhou fora da janela, para a noite.

Mulder esticou o braço e tocou o joelho dela. "Essa luta não é sua, você sabe"

"Ele me chamou."

"E você o ajudou."

"Ajudei pouco. Ele provavelmente está trancado com estupradores e assassinos de verdade agora." Ela suspirou e cobriu o rosto com as mãos. "Eu tenho que fazer alguma coisa. Eu devo isso ao Ethan, fazer algo mais para ajudá-lo."

"Eu não entendo. O que você deve a ele?" Por alguma razão, o coração dele começou a bater mais rápido, como se estivesse com medo da resposta.

"Você sabe." Ela olhou para ele. "Você sabe melhor do que ninguém, Mulder, porque você estava lá."

Mulder estava calado. Scully engoliu com esforço.

"Ele – ele esperou por mim todos aqueles meses. Estava tão feliz que eu tinha voltado. E então, eu..." Ela não podia dizer as palavras.

Mulder podia. "Você o deixou."

Ela assentiu, balançando a cabeça. "A parte mais horrível é que eu nunca tive certeza por que. Talvez não importe mais. Mas talvez esta seja a minha chance de descobrir."


Fim do capítulo 1