Sakura
...
"Um campo... Grama aparada e de um verde vívido que me tira o fôlego. O sol começava a perder sua timidez e aparecia no céu levemente rosado. A brisa da manhã estava fria e me fez arrepiar, mas junto dela algumas flores de cerejeira eram levadas. Lindo. Olhando um pouco acima enxerguei uma construção, bem antiga. Queria poder enxergar com nitidez... Comecei a me aproximar..."
-SAKURA! - Pulei da cama com o grito da minha mãe. Me assustei mais por ela estar em casa, corri atrás dela tão rápido que me senti o próprio Flash. Abri todas as portas e a sonolência também não me ajudava. Ouvi barulho de chave e já descobri.
-Mãaaaaaae! - Choraminguei enquanto descia as escadas toda desconcertada e coçando os olhos.
-Bom dia filha. Mamãe já está atrasada, então já sabe né? Vá pra escola logo, já providenciei o seu bilhete Toku*, está ali em cima – apontou para a mesa - Não tive tempo de preparar o seu lanche, então seja uma mocinha e resolva isso – ela fechou a porta e me deixou sozinha. Como sempre, ela me larga e fica dizendo tudo que tenho que fazer, eu queria gritar de raiva!
-Ah, e quase me esqueci – me segurei pra não pular de susto quando ela abriu a porta de novo – Lave a louça e deixe a casa um brinco, ceeerto? Byee.
E assim foi o meu primeiro encontro cara a cara com a minha mãe em muito tempo. Como sempre só temos contato assim, na correria dela. Ela diz ser para o nosso bem, mas agora eu não sei se isso é certo... Eu tenho apenas 9 anos e vivo praticamente sozinha. Eu arrumo a casa em geral, faço minha comida. Quando algo falta, deixo um bilhete pra ela e no dia seguinte o que eu pedi está lá. Aliás, eu não me sinto uma criança, me sinto uma velha gagá.
-Por Kami, EU ESTOU ATRASADA! - dei meia volta em direção as escadas quando vi o relógio, e novamente o modo Flash foi ativado. Minha sorte é que deixei o uniforme em cima da mesa do meu quarto(além de tudo, sou organizada hoho), coloquei ele o mais rápido e calcei os sapatos, não tive tempo nem de tomar banho. Na frente do espelho coloquei os meus cabelos rosas em um coque e pronto, tudo estava ok.
-Sakura, força, hoje é o seu primeiro dia na escola nova, tudo vai dar certo! - Disse pra mim mesma. Com o modo Flash ainda não desativado, fui até a cozinha, peguei o meu bilhete, as chaves e tranquei a porta.
O dia lá fora estava bem cinza e já tinha bastante gente na rua. Minha sorte é que moro bem perto da linha Meiji, mais próxima da estação Sakae. Como sou prevenida fui lá ontem pra checar e ver qual caminho eu pegaria hoje.
Em poucos minutos eu já tinha passado na catraca e esperava o meu trem ansiosa. Ficava imaginando que tipo de escola seria, e que tipo de pessoas estariam lá. Eu vou fazer o meu melhor pra ter muitos amigos dessa vez! Uma pontada de dor atingiu meu coração... Eu sempre fui sozinha. Desde que me lembro. No pré tentava fazer amigos mas sempre era isolada, e foi bem difícil pra mim. Mas agora tudo vai ser diferente! Eu vou tentar! Tenho certeza que meus olhinhos estavam brilhando, e fiz um sinal de YES com a mão, mas sinto um puxão no braço. Foi questão de segundos:
1- Estava ultrapassando a linha segura do trem
2- Eu ia cair na linha e o trem já estava vindo
3- Fui puxada por um garoto da minha idade com cabelos pretos.
-Cuidado, sua avoada! - Disse ele se afastando de mim pra pegar o outro vagão. Que abusado! Mas ele me salvou
-O-Obrigado! - gritei a contra gosto e corri pra dentro do meu vagão.
Muito estranho mas o vagão estava 'vazio', fiquei encostada na porta pra poder observar a paisagem. Pelo o que eu entendi, vou descer na estação Shiyakusho, daqui 2 estações. É bem pertinho.
Olhei ao redor e vi algumas meninas com o mesmo uniforme que o meu, e elas olhavam pra mim com cara de deboche. Kami-sama por favor, eu não quero ficar sozinha de novo... Desviei o olhar e voltei a encarar os trilhos do outro lado do vidro.
A estação Shiyakusho era a próxima, fiquei em frente a porta pra evitar problemas. Quando a porta abriu fui empurrada com muita força, cai com os joelhos no chão, e aquilo doeu muito. Olhei pra minha frente e eram as mesmas garotas que me encaravam.
-Saia da frente, testuda! - gritou a menina do meio, tinha os cabelos pretos na metade das costas e ela estava muito brava comigo. Suas amigas só deram risada e seguiram ela para a saída da estação.
Eu não consegui ter reação. A vontade de chorar era gigantesca, mas como sempre engoli o choro. Quando levantei vi o estrago no meu joelho. Levantei mais as meias pra tampar o machucado, não tinha tempo pra limpar, e corri pra escola.
O caminho até lá era pequeno mas meu joelho estava me matando, mas quando cheguei no portão, assumi a postura e entrei, não queria parecer uma fracassada. Continuei andando e muitos olhares estavam em mim, me encolhi com vergonha e continuei o trajeto. Observei todos os corredores e por sorte encontrei a minha sala, corri pra dentro dela pra me esconder de tantos olhares estranhos. Quando entrei a maioria das pessoas já estavam lá, e foram mais olhares em cima de mim.
-Você está atrasada! - Disse uma mulher de meia idade, que parecia a professora.
-Me desculpe! - me curvei na frente de todos enquanto meu rosto esquentava, faltava explodir.
-Faça sua apresentação, e sente-se no lugar que sobrou. Não quero ninguém atrapalhando a minha aula - disse ela num tom autoritário fora do normal. É a hora Sakura, seja uma boa garota e faça as pessoas gostarem de você.
-Meu nome é Sakura Haruno, tenho 9 anos. Vim de outra cidade e agora estou morando em Sakae. Espero contar com todos, e quero ser amiga de vocês! - falei com a voz bem trêmula, quando abri os olhos para observar as pessoas, gelei. Todos os olhares eram de reprovação e a única cadeira que tinha sobrado era no meio das garotas que me empurram no trem.
-Está esperando o que? Sente-se! - fui até o meu assento e tentei fingir que não conhecia aquelas garotas que trocavam olhares maldosos.
As aulas foram passando e um professor era pior que o outro. Na hora da fazer as duplas eu sempre sobrava, e fazia sozinha. Todos riam e se divertiam enquanto eu tinha vontade de chorar. Quando o intervalo chegou, eu fiquei feliz porque... droga! Esqueci a comida. Fiquei triste na verdade. Meu estômago roncava, mas não tinha nenhum dinheiro.
Sentei em uma cadeira no canto tentando esquecer a fome, enquanto observava as outras crianças. Elas eram brilhantes, riam a toda hora, e já tinham seus grupinhos formados. Eu fiquei com certa inveja... Levei um susto quando as mesmas garotas do metrô ficaram na minha frente.
-O que você está fazendo no meu lugar? - disse a de cabelos longos e pretos.
-Mas... como eu iria saber que é o seu lugar? - retruquei com a voz um pouco baixa.
-Garota, veja como fala com a Akane! - uma menina de cabelos castanhos e curtos entrou no meio.
-Yuki-chan, deixe ela comigo - respondeu a tal Akane. Ela me segurou pela blusa e me encarou nos olhos - Não fique no meu caminho, eu tenho nojo de gente como você. Quer parecer a boazinha? Aqui você não vai conseguir! - Ela me deu um tapa e a outra garota que não sei o nome me empurrou no chão.
Silêncio
Eu estava no chão...tinha levado um tapa sem motivo. E tudo de repente ficou quieto. As lágrimas não pediram licença e simplemente foram caindo. De novo Sakura? Parece que sofrer já é parte de você.
Ninguém impediu nada, observaram e fingiram que nada aconteceu. Alguns riam, e eu só estava perdida, jogada no chão. O que eu fiz pra receber tanto ódio? Eu nem conheço eles! Quando me toquei que estava chorando na frente de estranhos, corri e me tranquei no banheiro. Ali eu poderia me soltar, e chorar, sem controle. Eu chorava e gritava. Por que Kami? Por que sou largada? Por que pareço não existir a não ser para apanhar? Por que sou rejeitada pela minha própria familia? Minha respiração se tornava difícil e eu sabia que não estava chorando só pelo tapa, mas sim pela minha vida toda. É difícil ter essa idade e suportar tanta dor sozinha. Ninguém poderia entender, e nem fazem questão.
Meu pai e minha mãe simplesmente só trabalham, sempre estão em viagens e fazem o máximo pra não ficar em casa. A única lembrança que tenho dos dois juntos não é lá muito agradável.
FLASHBACK
" Eu tinha ido dormir como meus pais ordenaram mas acordei com uma gritaria. Fui até a sala andando com dificuldade pela surra que levei na escola. Quando cheguei na sala me escondi atrás da parede e meu coração foi partido.
-PORRA, QUE INFERNO, VOCÊ NÃO CONSEGUE CUIDAR DA SUA PRÓPRIA VIDA? EU TO CANSADO DE VOCÊ SE METENDO E QUERENDO ESTRAGAR TUDO! EU TENHO A MINHA VIDA E COISAS A FAZER, VOCÊ ACHA QUE É QUEM PRA EU TE DAR SATISFAÇÕES, SUA PUTA?- meu pai gritava com a minha mãe.
-VAI PRA CASA DO CARALHO, EU ME FODO PRA CUIDAR DESSA CRIANÇA QUE É UM SACO, VOCÊ TAMBÉM É PAI, DEVERIA ME AJUDAR, NÃO FIZ ELA SOZINHA. EU NÃO AGUENTO OLHAR PRA CARA DELA MUITO MENOS PRA SUA. EU SOU SUA ESPOSA E VOCÊ ME DEVE EXPLICAÇÕES! AONDE VOCÊ ESTAVA NESSE ÚLTIMO MÊS? NUM PUTEIRO? AONDE A GENTE SE CONHECEU, SEU MERDA?- ela retrucou em uma voz mais alta. Em seguida meus olhos se arregalaram. Meu pai agarrou ela pela pescoço e a levantou do chão.
-CALA A SUA BOCA, VADIA. EU NUNCA QUIS ESSA CRIANÇA PRA COMEÇO DE CONVERSA. E SIM, EU ESTAVA NO PUTEIRO FODENDO UM MONTE DE MULHERES COMO VOCÊ, PORQUE NEM PRAZER VOCÊ ME PROPORCIONA MAIS. VOCÊ É UM LIXO – ele apertava mais o pescoço dela e então cuspiu na sua cara. Não consegui, eu sai correndo e gritando, cai na frente deles por não conseguir andar.
-PAPA... A MA... MÃE...- Foi a primeira vez que eu disse mãe... Tinha por volta dos 4 anos, mas não sabia falar uma palavra. Seu olhar furioso se voltou a mim, e ele me deu um chute, rolei pro outro lado da sala e bati as costas. No chão, eu estava perdendo a consciência... O meu pequeno corpo doía de uma forma horrível, meus olhos ardiam... O cheiro de álcool invadiu o meu nariz. Vi minha mãe cair no chão e então desmaiei."
Esse foi um dos motivos que mudamos de casa, a vizinhança nos odiava pelas diversas discussões. Uma vez uma senhora me viu com alguns hematomas e foi tirar satisfação com a minha mãe, ela quase bateu na mulher e então ninguém nunca mais quis se aproximar. Depois daquilo meus pais se separaram e eu vim morar com a minha mãe. Nós nunca tivemos um dia juntas, ela sempre arranjava um jeito que estar fora de casa. Eu tentava me convencer que eles disseram aquelas coisas porque estavam bêbados, mas no fundo meu coração sabia que eu era odiada.
Sempre fui sozinha na escola, e permanecia sozinha lá. Nunca fiz nada pra ninguém mas sempre recebia ódio em troca. Talvez por ter uma infância tão solitária eu pareça tão velha. Minha infância foi tirada de mim. Não tinha parado de chorar a nenhum momento quando o sinal tocou. Infelizmente teria que voltar pra lá, com a cara totalmente inchada de tanto choro.
Lavei o rosto, arrumei o cabelo e voltei, sorrindo. Sempre mantinha uma postura falsa pra tentar atrair as pessoas, eu tentava ser feliz, todos os dias, mas algo sempre me apunhalava.
Foram assim que se passaram os próximos 12 meses. Sempre apanhava de Akane e suas amigas, elas me afogavam na privada, sujavam a minha roupa, faziam piadas péssimas, e todos só riam, motivando elas a continuarem. Em casa, arrumava tudo e continuava nessa rotina robótica. Único dia que se salvava era quando tinha aula de História. Eu sempre amei e desde pequena tenho um interesse gigantesco, aquilo fazia meu coração bater forte, era a matéria que eu tinha a nota mais alta.
O tempo passava e nada mudava, eu continuava com meus esforços pra vencer a tristeza mas tudo piorava. Passei a me conformar com isso e fiz dali o meu lar.
O final de semana tinha chegado, e eu tinha bastante tempo livre. Arrumei a casa como de costume e decidi sair, se eu ficasse em casa tudo se tornaria pior. Peguei a linha Meiji de novo e desci na mesma estação que pego pra ir pra escola.
Já era Março e fazia mais de um ano que nos mudamos para Aichi e eu não conhecia nada da cidade. Todas as vezes que descia em Shiyakusho me dava um frio na barriga imenso e um monte de sensações estranhas. Algo sempre me dizia parar ir a direita, mas a esquerda era a escola, então seguia esse caminho, mas dessa vez minha intuição me puxou para a direita e simplesmente fui seguindo a rota. Eu estava na região central e tudo era gigantesco. Tinha muitas pessoas e comércios. Era realmente lindo. As luzes, conversas, e cores da cidade sempre me fascinavam e só de estar ali me deixava feliz.
Me sentei num banco, e continuei tomando o meu sorvete. Não percebi mas já estava escurecendo e a beleza da cidade só se destacava mais. Fiquei um bom tempo admirando quando ouvi algumas pessoas comentando:
-Ei, vocês sabem né? Hoje é o dia que das Sakura Kaika**! - falou um jovem um pouco distante de mim.
-Ah! Não acredito! Temos que ir no Castelo Nagoya, é aqui pertinho!
O tempo parou
Castelo Nagoya
Meu coração se tornou num misto de desespero, felicidade, dor, euforia ao ouvir esse nome. Meus passos simplesmente não eram mais controlados e sai correndo no meio da cidade. Corria como se a minha vida dependesse disso. No trajeto só via os vultos das luzes dos carros e comércios. Um grande aglomerado de pessoas estavam na rua e isso só me atrapalhava. Avistei um aglomerado maior ainda e me infiltrei nele. Sai empurrando as pessoas, pedindo licença e quando finalmente ultrapassei todas... A sensação foi inexplicável.
"Um campo... Grama aparada e de um verde vívido que me tira o fôlego. A lua começava a roubar a atenção no céu levemente azulado. A brisa da noite estava fria e me fez arrepiar, mas junto dela algumas flores de cerejeira eram levadas. Lindo. Olhando um pouco acima enxerguei uma construção, bem antiga. Queria poder enxergar com nitidez... Comecei a me aproximar... Consegui vislumbrar, era o Castelo Nagoya!"
Comecei a chorar de novo, mas... era de felicidade... Comecei a rir. Uma felicidade fora do normal me tomou e não me pergunte o porque. Esse foi o marco da minha infância, sempre sonhei com esse lugar por noites seguidas, como se fosse o meu refúgio e lá estava ele, exatamente na minha frente. O cenário era o mais lindo possível. Havia uma imensa árvore de cerejeiras emoldurando o grande castelo, exatamente como no sonho. Havia uma enorme quantidade de pessoas admirando, lanchando com suas famílias, turistas. Era 25 de março, o dia que começava Sakura Kaika**. Por sorte, eu tinha levado dinheiro e pude pagar a entrada, para observar mais de perto. Aquilo me atraía de uma forma que eu nunca tinha visto antes. Sua estrutura era magnífica, tudo reconstruído com todos os detalhes fiéis. Eu me sentia... em casa... Como não fiquei sabendo desse lugar antes? É como se o mundo tivesse escondido esse lugar de mim. Continuei seguindo o meu coração e entrei em todas as partes possíveis do castelo.
Minha respiração parou quando parei na frente do último cômodo. Havia uma porta típica da época. Passei a mão por toda a extensão e fechei os olhos. Puxei a porta para o lado e entrei. Quando abri os olhos novamente encontrei um menino... Ele se virou rapidamente e no seu olhar percebi que estava muito surpreso. Era o mesmo que tinha me salvado no trem. Ali havia uma espécie de varanda, e ele estava apoiado, resolvi fazer o mesmo.
Trocamos olhares profundos. Eu senti um frio na barriga uma sintonia gigantesca e sabia que ele estava no mesmo estado. Não tinha vergonha como na maioria das vezes, aquilo estava totalmente anulado. Eu só tive vontade de abraçar ele, e fiz isso. Ele me abraçou de volta. Aquele foi o melhor abraço da minha vida, e quando percebi estávamos soluçando e chorando juntos.
-Você também está triste não é?- ele disse acariciando o meu cabelo.
-Sim, algo fora do normal te trouxe aqui?- falei com a voz trêmula, sem ter controle nas palavras.
-Sim...
Depois de muito tempo abraçados sem dizer mais nenhuma palavra ele segurou a minha mão, e eu corei instantaneamente. Kami-sama o que eu estou fazendo com um estranho?
-Vamos observar as flores – Essa foi sua última palavra e passamos o resto da noite ali, juntos, trocando energias de uma forma linda. Era como se minha vida tivesse propósito para alcançar aquele momento. Era como se eu estivesse finalmente completa e pudesse deixar todos os sofrimentos pra trás...
-Ei... - chamei ele com vergonha- Poderia me dizer o seu nome? - Ele sorriu, e quando foi abrir a boca, uma tontura me abalou, e então eu desmaiei.
Foi a última vez que eu o vi...
...
