"Sobre a cabeça os aviões/ sob meus pés os caminhões/ aponta contra os chapadões meu nariz/ eu organizo o movimento/ eu oriento o carnaval/ eu inauguro o monumento no planalto central do país"
"Pode parar" – o diretor Schuester levantou-se da cadeira – "Finn, tente colocar um pouco mais de força na voz. Ainda não está no ponto. Pense que essa é a epifania do personagem. É preciso ser enfático."
"Estou dando o meu melhor, senhor Schue, mas é que não entendo essa música."
"O espetáculo é sobre purismos versus..."
"Como esse panaca conseguiu o papel principal mesmo?" – Santana Lopez, que estava sentada no fundo do teatro, sussurrou para a colega ao lado enquanto o diretor explicava pela enésima vez o conceito do espetáculo.
"Porque ele é o namorado de Rachel Berry, a estrela do show, e o senhor Schue não colocaria um ator numa cadeira de rodas, mesmo que ele seja o melhor ator do grupo, para ser o centro das atenções ou um gay que dificilmente conseguiria fazer papel de machão" – respondeu Mercedes Jones.
"Não sei se te agradeço ou de amaldiçôo por ter me lembrado" – Santana resmungou.
"Você sabe que o senhor Schue tem ambições neste ano" – Artie Abrams procurou amenizar – "É a primeira vez que o nosso teatro trabalha com um orçamento não-miserável. Finn é um sujeito popular nesta cidade e tem o padrasto certo."
Finn Hudson era enteado de Burt Hummel, aspirante a político que fazia parte do Conselho Municipal. Era o tipo do cargo em que pessoas bem intencionadas, ainda sem vinculação partidária ou um belo montante de dinheiro para campanha, conseguiam se eleger dentro de cargos políticos de uma cidade pequena. Ou isso ou simplesmente entrar para o conselho educacional que fiscalizava e legislava sobre alguns aspectos escolares locais desde que não firam os princípios estaduais e federais. Um conselho escolar poderia, por exemplo, proibir que atividades possam ser desenvolvidas na escola às quartas-feiras à noite porque essa é a hora em que ocorrem normalmente as missas das igrejas instaladas na cidade. Mesmo que a pessoa se declare ateu, precisa respeitar à regra, afinal, os 99% da população que acredita em Deus precisa cumprir a obrigação religiosa e a escola não pode competir com isso. Isso também se aplica aos agnósticos.
Enfim, Burt faz parte do Conselho Municipal responsável por legislar sobre as regras que regem o condado. Conseguiu se eleger não por ser o proprietário da maior oficina mecânica da cidade, mas sim por ser auxiliar técnico e um dos patrocinadores dos Razors de baseball, time de high school mais popular da cidade e dono de 16 títulos estaduais e quatro regionais ao longo dos 43 anos de fundação da escola em que se baseava. Ele ganhou a cadeira numa eleição direta realizada de quatro em quatro anos que ocorria um ano depois das eleições municipais para prefeitos, comissários de polícia e dos chefes da Promotoria.
Na teoria, Burt Hummel era um voto privilegiado que recebia um salário para discutir e propor regras de condutas sociais e políticas daquele condado. Na prática, era apenas um conservador cuja maior campanha de cunho liberal foi em prever punições às práticas de preconceito racial, de credo e sexualidade. Ação motivada pelo bullying sofrido por Kurt Hummel, seu único filho biológico, durante determinado momento da vida escolar. Kurt era homossexual.
Finn Hudson era o enteado de Burt e se beneficiava da figura pública do padrasto. Aparecia na coluna social do jornal local patrocinado pelo governo. Não era academicamente esperto o bastante para ser aceito na universidade sediada na cidade. Tampouco teve interesse em cursar qualquer matéria na faculdade comunitária. Finn era mecânico que ajudava a administrar a oficina de Burt e duas vezes por semana trabalhava como assistente técnico dos Titans, o time de futebol americano de uma grande e tradicional da Junior high cidade. Isso bastava para ele ser admirado. E também pela aparência física que o tornava um partido desejável. Finn, assim como Kurt, pertenciam ao teatro amador e foi por causa deles e da influência política de Burt no Conselho que William Schuester conseguiu a surpreendente verba para viabilizar a montagem do espetáculo Tropicália. Surpreendente dada a natureza da história esquerdista da peça.
Não que a verba fosse tão grande assim e havia certas economias a se considerar. Um exemplo: nenhum dos atores estava ali por um salário. A começar pelo próprio diretor, que ganhava a vida como professor de História. Muitas das pessoas também faziam trabalho voluntário, como Emma Pilsburry, a diretora assistente (e esposa de Schuester).
A estrela do grupo era Rachel Berry. Era a melhor cantora, apesar de não ser a melhor atriz. Era uma esforçada estudante de Artes Cênicas e Comunicação da faculdade comunitária, garçonete e cantora do restaurante elegante da cidade, e namorada de Finn Hudson. Ela, Kurt e Finn formavam um trio unido e influente dentro do teatro comunitário. Os três eram ex-alunos de Schuester durante a high school, época em que integraram o teatro amador. Eram também os remanescentes originais do projeto ao lado de Noah Puckerman e Tina Chang. Ao longo dos seis anos de existência do grupo, muitas pessoas entraram e saíram, como Sam Evans, outro do grupo original que deixou a cidade para continuar a formação acadêmica em outro lugar. O grupo atual havia se firmado há cerca de um ano quando Tina convidou colegas da Universidade para integrar o teatro.
Santana Lopez, Mercedes Jones e Artie Abrams se mudaram para a cidade por causa da Universidade. A estudante de jornalismo Mercedes costumava cantar no coral da igreja da cidade natal. O teatro foi uma forma de continuar alimentando a suposta veia artística, muito embora ela fosse uma boa cantora, mas um fiasco como atriz. Santana, estudante de arquitetura e urbanismo, estava mais interessada em entrar nas calças da professora de dança (e coreógrafa do espetáculo juntamente com Mike Chang) Brittany Pierce. Artie Abrams, que fazia engenharia de rede, apenas acompanhava as amigas e, por um acaso, era um bom ator.
Fora do trio maravilha e do grupo universitário estavam Quinn Fabray, vendedora na livraria e mãe. O teatro funcionava como terapia. Matt Rutherford, melhor amigo e carpinteiro, a acompanhava.
"Isso não está dando certo..." – Schuester lamentou após a performance sempre abaixo do aceitável de Finn Hudson.
"Que tal tentar o substituto?" – Santana gritou do fundo do auditório.
"Que tal calar a boca?" – Rachel protestou do palco.
"Conheço um ótimo jeito para manter a minha boca fechada" – ela estampou um sorriso confiante, olhar desafiador e braços relaxados contra a poltrona do pequeno teatro. Era o tipo de atitude que deixava Rachel Berry louca de raiva.
"Pessoal!" – o diretor chamou a atenção – "Concentração aqui, por favor. Finn, mais uma vez. Rachel, Puck, Quinn e Brittany nas marcações."
O ator amador alto respirou fundo. Ele olhou para o fundo do teatro onde os demais colegas de elenco estavam assistindo entediados ao ensaio de uma das cenas que em teoria deveria causar impacto no espetáculo em construção. Mas não estava fácil para Finn Hudson. Ele nunca foi um bom ator e só estava ali por causa da namorada e por consideração ao mentor e amigo. Apesar de ouvir que era especial da boca de pessoas que amava, as provocações de Santana Lopez e a frustração de Schuester o faziam lembrar e reconhecer que ele era sim medíocre para tal ocupação.
O reconhecimento de que não era tão bom não era algo simples para o jovem de 21 anos habituado a mimos. Os colegas não faziam idéia do exercício de humildade que precisava fazer para não estourar ou desistir. Por outro lado, a chance de ele ser a estrela ao lado da talentosa namorada era um recado que dava aos demais que, apesar de intelectuais e espertos, nada poderiam fazer dentro de um terreno em que ele dominava. Ele podia não saber fazer cálculos como Artie, escrever como Mercedes, dançar como Mike e Brittany, cantar como Rachel, atuar como Quinn, dissertar sobre urbanização como Santana, não importava, nada tirava o fato de que ele podia ser um líder.
Quem não queria ser destaque de alguma coisa? Mostrar para as pessoas que era bom. Finn era um perdedor popular e conformado. Mas também tinha vaidade. Respirou fundo e procurou cantar novamente.
"Sobre a cabeça os aviões/ sob meus pés os caminhões/ aponta contra os chapadões meu nariz/ eu organizo o movimento/ eu oriento o carnaval/ eu inauguro o monumento no planalto central do país/ Viva a bossa-sa-sa-sa/ Viva a palhoça-ça-ça-ça..."
"Parou!" – ouviu mais uma vez o grito do diretor. Schuester, frustrado, levantou-se da poltrona e passou a mão no próprio rosto. Ele próprio estava exausto – "Finn e pessoal, fica o dever de casa: pratiquem. No nosso próximo encontro retomaremos ao ensaio desta cena, ok?"
A movimentação da saída do teatro foi rápida. Os "universitários" foram os primeiros a deixar o teatro. Santana tinha um velho Ford, presente de 16 anos que recebeu dos pais e fez questão de levar o carro para a faculdade. Passou a ser o transporte principal dos outros dois amigos. Puckerman comentou em particular com Finn que havia uma namorada esperando. Ele sempre tinha alguma entre mocinhas deslumbradas e mulheres que só estavam atrás de uma boa noite e usava o tal puckssauro como alívio para as respectivas coceiras. Quinn pegou habitual carona com Matt, que morava no mesmo edifício, dois andares abaixo. A vendedora não via a hora de chegar em casa e colocar os pés para cima. Com sorte, a babá colocou a pequena Beth para dormir, e assim ela pagaria o 20 dólares devidos e comemoraria o descanso extra. Tina transportaria Mike e Brittany. Ainda morava com os pais (achava que não fazia sentido pagar por um dormitório quando estudava da universidade da própria cidade natal), e as casas de Mike e Brittany era caminho.
Brad, o pianista, foi embora. Assim como o pessoal da sala de luz e som. Kurt, Finn e Rachel, além do diretor, foram aqueles que apagaram as luzes e trancaram as portas. Era uma quarta-feira. O diretor apertou a mão do comandado e disse um até logo. Finn passou a mão nos ombros de Rachel e andou cabisbaixo até a caminhonete no estacionamento.
"Foi só um ensaio ruim" – a namorada procurou motivá-lo – "Tenho certeza que sexta-feira tudo será bem melhor. Essa é mesmo uma música difícil, cheia de nuances. Eu vou te ajudar com os exercícios e você vai melhorar cem por cento."
"Sem querer cortar o romance, mas será que podemos ir embora?" – Kurt disse entediado no banco de trás.
Finn acenou para a namorada sempre entusiasmada e ligou a ignição. Rachel procurou no rádio uma estação que julgasse interessante e os dois voltaram para casa embalados na suave voz de Nara Leão, por coincidência, uma artista que tinha representação na peça. Mas a melodia que a musa das bonitas pernas entoava não era Lindonéia, canção composta por Caetano Veloso numa sugestão da própria intérprete para o disco-manifesto do movimento. As más línguas diziam que era uma canção em resposta a triste e popular Carolina de Chico Buarque, mas a verdade é que o bolero brega de imagens fortes foi inspirado no quadro impressionista de mesmo nome do pintor Rubens Gerchman. Mas a canção suave que saia das caixas de som da caminhonete tinha imagens suaves: "o barquinho vai, a tardinha cai."
"Te deixo em casa?" – o namorado perguntou, na esperança de que a namorada tivesse outra ideia. Felizmente, para ele, Rachel negou e decidiu seguir com o namorado na quitinete que recebeu de herança do pai morto. Ainda assim, seria preciso passar pelo apartamento em que Rachel dividia com Kurt que ficava no bairro que ligava downtown ao campus universitário. O amigo estava no banco de trás da caminhonete, afinal.
"Odeio bossa nova" – Kurt resmungou.
Bossa nova não tinha divas interessantes o suficiente para o gosto exótico dele, apesar de reconhecer que Nara Leão foi uma mulher fenomenal. Kurt era fã de cantoras como Dolores Duran. Oras, apesar da crença popular de das músicas melancólicas, meramente por ser moda na época, Dolores Duran era uma mulher alegre, divertida, que trepava, bebia e cheirava. Escreveu uma das obras primas, Estrada do Sol, num guardanapo com um lápis de olho na mesa de um bar enquanto Tom Jobim tocava a melodia. Bebeu um conhaque, acedeu um cigarro e escreveu. Apresentou a letra ao maestro alguns minutos depois como alternativa à letra que supostamente estava sendo desenvolvida por Vinícius de Moraes. Letra alegre de uma suposta pós-transa: "É de manhã/ Vem o sol/ mas os pingos da chuva que ontem caíram/ ainda estão a brilhar/ ainda estão a dançar/ vento alegre/ que me traz esta canção..."
"Eu não me importo" – disse Finn.
"É relaxante" – Rachel encerrou a breve discussão.
Kurt foi deixado em frente ao pequeno edifício de três andares. Despediu-se dos amigos e entrou. Finn e Rachel seguiram para a quitinete. Subiram as escadas como um velho casal entediado, entraram no espaço privado cumprindo rotinas como pendurar o casaco e deixar os sapatos à porta.
"Com fome?" – Finn perguntou. Rachel gostava de forrar o estômago antes das atividades sexuais que tinha certeza que aconteceriam. A namorada nunca dormia ali se não fosse para trepar.
"Um pouco."
"Posso preparar um sanduíche para nós."
"Faça isso. Só que eu vou tomar uma chuveirada antes, ok?"
Finn acenou. Enquanto Rachel foi tirar o sal do corpo acumulado por um dia intenso, Finn foi até o balcão da cozinha mínima e retirou da mini-geladeira um tomate, um pequeno pote de maionese e embalagens com queijo e presunto. Ligou a televisão. Passava o noticiário. A imprensa ainda repercutia a ação de um suposto grupo de justiceiros anônimos que deixou à porta da delegacia dois sujeitos amarrados e amordaçados com provas de que eles estavam envolvidos num esquema de pedofilia.
"Quem disse que batmans só vivem em metrópoles" – ele colocou o típico meio sorriso no rosto e terminou o lanche.
"Vendo algo de interessante" – Rachel saiu do banheiro em apenas uma camisa do namorado. Finn achava sexy quando ela se apossava das roupas dele.
"Agora estou" – o sorriso tapado aumentou.
Rachel o beijou antes de comer o sanduíche. Perdedores também tinham momentos de prazer.
