N/A: Shake the Disease, inspirada na música de mesmo nome, do Depeche Mode ( Na verdade, esse é o resultado de uma maratona de DM. Várias, tipo, várias mesmo, me ajudaram com inspiração aqui. Outros títulos eu citarei em capítulos futuros.) Essa é uma ideia que já fez vários aniversários na minha cabeça, e eu só estou tendo coragem de levar adiante agora. É.

Aqui vão alguns AVISOS:

É uma short-fic, ou seja, um conto de poucos capítulos ( eu tenho essa mania de sintetizar as coisas, é).

O "DARKFIC" e a classificação estão aí por bons motivos: Temas adultos? Confere. Psicologia do terror? Confere. Parafilia, fantasmagoria e romance inconvencional? Confere, confere, confere! Se você não sabe o que isso tudo significa, ou se sente desconfortável com qualquer desses tópicos, não leia. Sério. Preciso mencionar o YAOI?

Dúvidas, sugestões, críticas? A autora está aí pra responder, sintam-se a vontade.

No mais, se eu tiver esquecido de mencionar outros detalhes, eles eventualmente surgirão nas próximas notas.

Boa leitura!


Os primeiros flocos de gelo se formaram, àquela tarde. A neve pura e recém caída emudecia os sons da cidade. À noite, esse silêncio só fazia agravar a completa monotonia que se tornava as ruas de Mushiyori, que, embora fosse movimentada, mais parecia um distrito fantasma nessas horas soturnas do inverno.

Com uma xícara de chá fumegante nas mãos, Kurama assistia as pessoas se recolherem mais cedo para o conforto de seus lares, sentado em uma poltrona próxima à janela. Seu olhar esmeraldino se enchia dessa melancolia, fomentado pela insipidez do cenário.

Já fazia algum tempo desde que o grupo de detetives havia debandado. Hiei continuava a prestar seus serviços ao atual rei do Makai, vivendo no castelo de Mukuro; Yusuke havia finalmente assumido o matrimônio com Keiko; e Kuwabara, o único com quem o menino-raposa havia mantido algum contato até então, estava agora ausente devido as ocupações da universidade.

O ruivo suspirou e, tão entretido em suas divagações nostálgicas, teve um sobressalto quando ouviu o telefone tocar.

Pestanejou algumas vezes, virando o rosto na direção do aparelho, que continuava a chamar, impacientemente. Ergueu-se, com a xícara nas mãos, e foi andando até ele – no caminho, deixou-a sobre um móvel. E então atendeu.

"Moshi moshi "

"Shuichi? " Reconheceu a voz materna que lhe falava – era Shiori.

"Mamãe! Está tudo bem? " Ele retornou, num misto de entusiasmo e preocupação.

Há exatos dois anos, o mais velho dos Shuichi havia tomado a decisão de se mudar para um apartamento próprio ( por mais que adorasse a mãe humana, sabia que ficar o resto da vida com ela não era uma opção – especialmente porque agora Shiori tinha um companheiro e, mesmo que ela insistisse pelo contrário, o ruivo sabia que sua permanência estava se tornando um tanto inadequada na vida do casal).

"Mamãe? " Kurama insistiu, cismado com a demora; mas tudo o que ele teve como resposta foi um chiado, e a ligação caiu. "Que estranho... "

O ruivo devolveu o aparelho ao gancho, e ficou ali, estático, a encará-lo – como se ele fosse voltar a tocar a qualquer momento. O que não aconteceu. Kurama pegou o telefone outra vez e o reaproximou do ouvido, pretendendo retornar a ligação, só para notar que a linha estava temporariamente inativa. Seria o mau tempo?

Estranhou, mas decidiu que faria uma nova tentativa mais tarde. Com o cenho levemente franzido, ele fez o caminho de volta para a poltrona, não se esquecendo do chá.

Quando levou a xícara aos lábios, pronto para sorver um gole, sentiu que, estranhamente, a bebida já estava fria.

"Eu não deixei a janela aberta... " Ele percebeu, com terror, a vidraça escancarada. E não foi o ar gélido que o fez estremecer.

E sim a criatura empoleirada no para-peito.

"É só um corvo... " O garoto-raposa tentou convencer a si mesmo, em pensamento, mas só o nome causava nele calafrios.

Assim ele decidiu tirar uma rosa de sua escalpa, pronto para transformá-la em chicote.

Mas a ave não se moveu. Continuou ali, imperturbável. E a sua permanência era como uma charada aparentemente impossível de se resolver.

Se, por um lado, o fato de não ter percebido a ameaça o levava a crer que aquele não passava de um animal comum; por outro, o olhar fixo que o pássaro lhe dirigia não era como o de um. Algo na insistência daquele contato o fazia se sentir como que na presença de um velho conhecido.

Engoliu a seco.

"Bobagem. Isso tudo é paranoia minha. " Kurama pensou.

Ele estava morto, não existia a menor chance de que pudesse voltar. E mesmo que fosse esse o caso, já havia se passado muito tempo desde aquele torneio; nesses últimos anos, Kurama havia enfrentado adversários bem mais poderosos. Não tinha absolutamente nada a temer.

Nada.

Então por que ele não conseguia parar de reviver aqueles terríveis momentos? Por que sua memória insistia em fazer ruminar as palavras que o assombraram no corredor do estádio, sussurradas em seu ouvido? Ou a sensação angustiante de ter os dedos da morte brincando com os seus cabelos?

Cada vez mais perturbado com o visitante indesejado, que tinha olhos terríveis, como os de um verdadeiro demônio ( com desespero, ele havia notado que eram violetas), Kurama, pela primeira vez na vida, agiu com veemência: atirou a xícara pela janela; e só assim a ave voou, para longe.

No silêncio que se sucedeu, ele quase pôde ouvir as batidas de seu próprio coração, como tique-taques de uma bomba relógio.

Aquele estranho sentimento ainda o faria explodir. Literalmente.

Quando deu por si, arfava. E a consciência dessa insensatez se abateu sobre ele com uma realidade ainda mais perturbadora.

Onde fora parar sua frieza? Seu tão estimado autocontrole?

Por que só a recordação do ex-adversário o levava a cometer tamanha imprudência?

O manipulador de vegetais fitou a rosa esquecida em sua mão. O vento soprou mais forte e ela se desfez em pétalas.

Sua arma mais letal voltara a ser uma simples flor.

O que estava acontecendo com ele?

...

Aquela noite, Kurama custou a pegar no sono.

Flashes de memória revolviam em sua cabeça, o faziam reviver com riqueza de detalhes os momentos precedentes à final do torneio das trevas. Ele se revirava na cama, se cobria e se descobria, sem conseguir relaxar. Suava frio.

Respirava fundo e tentava pregar os olhos, mas quando as imagens ameaçavam a surgir com mais força ele os abria imediatamente, nunca se rendendo ao pesadelo.

"E se for real? " Ele considerava, na privacidade de seus pensamentos – se bem que, se tratando de um youkai, e especialmente de um espírito ( porque, até onde se sabia, Karasu estava morto) nem a sua própria mente era um lugar seguro para se especular.

Não que ele pudesse evitar o rumo de suas divagações, de qualquer forma.

"E se ele nunca tivesse sido levado ao mundo Espiritual? "

Franziu o cenho, fitando o teto, compenetrado. E de repente a sua linha de raciocínio o levou a uma variável que ele ainda não havia ponderado.

O telefonema.

Shiori.

"Droga! "

Estivera tão impressionado com o último e perturbador evento, que havia se esquecido completamente.

Ele se levantou em um movimento fluido, praticamente correndo até o outro cômodo. Quando alcançou o aparelho telefônico, este ainda não operava. Kurama o devolveu ao gancho outra vez, sentindo-se frustrado.

Precisava ver Shiori, precisava confirmar por si mesmo que ela estava bem. Não seria a primeira vez que alguém o chantageava dessa forma; e, se Karasu estava de volta, Kurama não poderia correr o risco. Não importava que ele estivesse vulnerável. Ele a protegeria a qualquer custo.

Apressado, calçou os sapatos e pegou um casaco qualquer no mancebo, antes de correr para a janela. Ao abri-la, uma rajada de vento soprou para dentro e fez suas madeixas vermelhas esvoaçarem, enquanto, com uma insólita sensação de vertigem, ele calculava a altura que deveria descender até seus pés atingirem o solo. Um súbito sentimento de impotência o fez recuar e fechar a vidraça.

Mexendo nos cabelos com nervosismo, ele voltou ao quarto.

Muito bem guardado no fundo falso de uma gaveta em seu armário, ele achou um frasco. A poção feita com o fruto da encarnação passada. Ele não imaginava que precisaria usá-la outra vez. Graças ao fenômeno conhecido como biorritmo, ele havia se acostumado a tomar a forma do Youko de tempos em tempos, sem o auxílio de qualquer método extraordinário. No entanto, por algum incógnito motivo, ele sentia que o seu caráter ancestral se tornava ausente – o abandonava, para se recolher em qualquer canto mais obscuro de sua subconsciência.

Tomou a poção em um gole generoso. E partiu.

...

O frio açoitava o corpo, a neve calava o mundo completamente. Minutos haviam se passado e ele não sentia qualquer mudança sobrenatural acontecer. Ao menos, não dentro de si.

A poção estava demorando para fazer efeito.

Enfrentando as condições adversas e o próprio medo, o ruivo continuou o seu trajeto. Ignorando os batimentos acelerados do coração, ignorando os apelos da mente para o raciocínio. Ele só conseguia pensar em Shiori, no bem-estar de sua querida genitora. A essa altura, ele praticamente corria.

Eventualmente ele percebeu que as ruas se tornavam mais escuras, à medida que avançava. E algum mau-pressentimento o refreou em seus passos, obrigando-o a olhar para trás.

Em um giro lento e cheio de hesitação, que começava na cabeça e terminava com os calcanhares, ele se virou. E do mesmo jeito que se deteve, ele congelou.

Devido à barreira sonora que a precipitação criava, fora impossível ouvir os estouros; uma a uma, lâmpadas de postes se explodiam, sem aparente explicação. Contudo, uma voz em sua cabeça o elucidava – tão convicta e irrefutável que o desnorteava: "Karasu! "